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“A internet está destruindo a literatura. E isso é bom”

Por Sérgio Santos

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Fonte da imagem: https://twitter.com/RaminNasibov

Em uma de suas obras, Uncreative writing (“Escrita não–criativa”, 2011), o professor e performer Kenneth Goldsmith vê na internet possibilidades para a expansão da literatura a partir da utilização de toda a linguagem que ela produz, sobretudo a partir do ato de “copiar–e–colar”.  Para ele, toda reprodução feita na rede e fora dela é uma reescrita com potência de nova obra, e é isso que ele chama de escrita não–criativa.

Dentre os exercícios propostos por Goldsmith está a cópia de obras inteiras, baseada na operação de “apropriação” como a transcrição feita por ele de um exemplar inteiro do jornal The New York Times, ou mesmo quando Vanessa Place “copia” processos judiciais em que casos jurídicos peculiares ganham e reivindicam a condição de escrita não criativa. Na opinião do crítico, a apropriação implica em mudança, pois ao alterarmos a fonte ou o tipo de suporte em que a “cópia” se assenta, já mudamos “o enfoque do conteúdo para o contexto”, e isso é o que significa “ser um poeta na era digital”.  A frase que dá título a esse post é de um tuíte recente de Goldsmith e parece indicar que a destruição que a internet propõe à literatura está ligada mais a um renascimento (ou reapresentação) que a seu fim.

Mas, embora copiar e colar esteja tão presente em nosso dia–a–dia, e esteja se transformando também em prática literária, como se apropriar das obras sem levar em conta as regras que controlam os direitos de propriedade? Vejamos uns poucos exemplos de como a literatura tem lidado com essa situação.

Começo lembrando da obra O Aleph engordado (2009), do escritor argentino Pablo Katchadjian. Essa obra, como o nome sugere, engorda o célebre O Aleph de Jorge Luís Borges acrescentando parágrafos ao conto. Muitos encaram o empreendimento como “uma piada menor”, já que em sua obra, Borges utilizou citações apócrifas, histórias falsas, ficções inventadas, reescrita de textos clássicos e toda a sorte de efeitos intertextuais. No entanto, a viúva do bardo argentino, María Kodama, moveu uma ação contra Katchadjian sob a acusação de plágio e violação do texto original, e o autor acabou sendo condenado em primeira instância. Não contente, Kodama recorreu à chamada corte de cassação e só recentemente saiu a decisão final dando a vitória ao autor de O Aleph engordado, após longos e, acredito, custosos anos.

Podemos mencionar ainda o romance Felix culpa (2018, ainda inédito no Brasil) de Jeremy Gavron. Trata-se de uma trama detetivesca a partir de uma colagem de centenas de trechos de obras de cerca de oitenta escritores. Estão lá F. Scott Fitzgerald, Cormac MacCarthy, Raymond Chandler, Italo Calvino e George Orwell. Alguns críticos veem semelhanças entre Felix culpa e The clock, a obra de Christian Marclay com relógios sincronizados em tempo real. Por enquanto, não se sabe de processos judiciais à vista por conta dessa “apropriação”.

Ainda podemos lembrar o nome do artista Tim Youd, que viaja pelos Estados Unidos datilografando (leia–se, “apropriando-se” de) obras de vários escritores em uma máquina Remington portátil. Dentre as “obras” do autor estão Medo e delírio em Las Vegas de Hunter S. Thompson e Adeus às armas de Ernest Hemingway. Para “recriar copiando/datilografando” cada livro, Youd viaja até a cidade onde o escritor viveu.

Em obras como as de Goldsmith, Katchadjian, Gavron e Youd parece não estar em jogo a mera citação de obras e autores para demonstrar a aura de sua origem, mas uma tentativa de incorporar à literatura algo já tão corriqueiro na vida de todos, cujo propósito reside na percepção de que cada cópia seria um novo texto. Resta saber como e se as leis do copyright poderão frear essa expansão da literatura.