Arquivo do mês: agosto 2020

Escrita e luto

Antonio Caetano

    Créditos da imagem: ‘Still Life with Skull, Leeks and Pitcher’, Pablo Picasso, 1945

O ano de 2020 certamente já ficou marcado mundialmente como o ano da pandemia do coronavírus. Como parte do combate à propagação do vírus, as medidas sanitárias recomendadas, somadas ao isolamento social, impactam certas lógicas de convivência social, proporcionando, por um lado, demandas de fala e de exposições de experiências (reportagens, entrevistas, lives, postagens em redes sociais, projetos, artes) e, por outro, o impedimento (ou modificação) de atividades sociais e culturais importantes, dentre elas, os rituais fúnebres.

Recentemente encontrei o Palavra no Agora, site criado pelo Museu da Língua Portuguesa, que abre espaço para uma espécie de ritual fúnebre simbólico, uma maneira de expressar o luto por meio da escrita. No site estão dispostos três espaços: em um deles há uma coletânea de trechos literários com a temática da dor da perda; em outro, resenhas de livros, filmes, músicas (também com a mesma temática) e há ainda um espaço denominado Escritos do público, no qual podem ser postados “os registros de quem encontrou nas palavras uma forma de alívio”.

Tais registros são textos variados, prosa e poesia, memórias e ficção. Segundo o próprio site, o objetivo é “ajudar as pessoas a atravessar esse momento complexo e mutante”. As narrativas que li no site me fizeram pensar sobre esse “eu” que, através da escrita, se faz presente e performa narrativas que o reconstituem na pós-perda.

Enfatizando a importância do caráter simbólico do ritual fúnebre, Miranda de Souza e Pantoja de Souza (2019), no artigo “Rituais Fúnebres no Processo do Luto: Significados e Funções”, afirmam que ele “fornece sentido à realidade, ajudando a simbolizar a morte do ente querido”. Ou seja, tais rituais seriam significativos no início dos processos de luto pois expressam, simbolizam e comunicam (para si e para outros) um encerramento de um período de vida, de um ciclo, de uma relação etc.

Lendo os registros ficcionais no site, imagino que escrever sobre essa perda pode representar não apenas uma forma de luto sobre a morte, mas também uma forma de reelaborar a própria subjetividade marcada pela ausência do ente querido.

Pensando assim, a seção Escritos do Público no Palavra no Agora me parece tanto um veículo que permite simbolizar, comunicar e expressar a perda de alguém –especialmente diante da impossibilidade de se realizar um ritual fúnebre adequado às necessidades dos viventes –  como pode oferecer ao sujeito enlutado a oportunidade de se reconstruir por meio da narrativa que elabora ali. Dessa forma, sendo o trabalho de luto um processo que auxilia o indivíduo a lidar com a perda, e que, por isso mesmo, é capaz de agenciar histórias, lembranças, memórias, registros sob a perspectiva do sujeito enlutado, é interessante pensar em como o luto também pode ser pensado como um processo de constituição de si, de (re)constituição de um sujeito que tem de lidar com a perda e a falta.

Manchete: “Morta pelo marido”

João Fonseca

Créditos da imagem: Anna Bjerger, familiar shadows.

Mulheres empilhadas, Patrícia Melo.

Ed. Leya, 2019

Logo nos primeiros parágrafos do último romance publicado por Patrícia Melo, o leitor acompanha de perto a história, contada em primeira pessoa, de uma advogada paulistana que foi agredida pelo namorado numa confraternização com colegas de trabalho. A partir da leitura da violência ficcionalizada que relata o assassinato de personagens da narrativa, também ficamos conhecendo os nomes e as circunstâncias da morte de outras doze vítimas reais de feminicídio que são lembradas pelo livro de Patrícia Melo.

A narradora conta que, depois de um ano de namoro, seu namorado revela sua face mais cruel, então ela conhece o “verdadeiro Amir”. Assim, o leitor vai acompanhando uma espécie de retrospectiva que começa com uma primeira impressão de um Amir culto e dócil, delicado e divertido: “O início era borbulhante, cheio de gargalhadas”, até o momento em que Amir, durante uma festa de trabalho, bêbado e enciumado, dá um tapa na narradora:

“Só o que consegui fazer, enquanto tentava me defender e me livrar de seus braços, foi dar uma risada. Só isso. E aquele meu sorriso tenso, meio atrofiado, fez com que seus olhos ganhassem um brilho selvagem, como o de certos cães antes do ataque. Paf. Até então, nunca tinha levado um tapa na minha vida. No rosto. – Vadia – me disse ele antes de deixar o banheiro.”

Esse episódio inicial abre muitas perspectivas para a narrativa. Não só a narradora-personagem faz uma espécie de análise sobre seu auto-engano, já que ficamos sabendo que Amir já tinha dados mostras de um machismo que poderia culminar na violência física, mas também porque vamos conhecendo aos poucos o passado da narradora, um antigo trauma familiar, e também sua percepção sobre o que um tapa representa numa sociedade que banaliza o assassinato de mulheres, pois a narradora sabe o roteiro que vai de uma primeira agressão até a morte de muitas mulheres vítimas de violência:

 “Bebe e comunica: ‘Vai morrer.’ Mas antes, ele espanca a infeliz. Às vezes, sem beber. Queima a mulher, com cigarro. Estupra a mulher. Arranca uns bifes do corpo dela. Joga a moça escada abaixo, quebra seus braços, suas pernas, sempre avisando. ‘Vai morrer!’ No mercado de trabalho, isso tem nome: aviso prévio. No abate de mulheres, trata-se da fase seguinte a de Amir.”

São essas questões que a levam a se decidir pelo rompimento com Amir e a embarcar em uma viagem a trabalho para o Acre, onde acompanhará durante alguns meses o julgamento dos mais diversos casos de feminicídio acontecidos na região. Durante esse período, a narradora destrincha os julgamentos registrados por ela, explicitando a negligência do estado e da justiça no combate e punição dos crimes de violência contra as mulheres. A narradora aos poucos vai estreitando laços com a promotora de justiça do tribunal, Carla, e a partir disso, abre-se para o leitor um cenário que mostra o desprezo da sociedade em relação às mulheres pretas, pobres e indígenas.

Carla entra na narrativa como a personagem que cativará a simpatia e admiração do leitor assim como da narradora, por representar uma mulher livre e avessa aos padrões impostos pelo machismo, e sobretudo uma mulher muito forte que luta por outras mulheres vulneráveis à violência. Seu cargo como promotora de justiça também funcionará para inserir uma certa carga ‘técnica’ ao romance, explicando ao leitor de forma sutil como o sistema penal brasileiro também atua como uma engrenagem que contribui para a normalização do assassinato de mulheres em larga escala.

Em meio a uma dicção realista e muito violenta, um estilo próprio à autora, surgem também capítulos inteiros nos quais acompanhamos uma espécie de dimensão onírica paralela, já que participando de rituais indígenas e ingerindo uma beberagem alucinógena, no mundo dos sonhos da narradora, espíritos da selva e deusas das crenças indígenas se unem a ela para caçar e matar homens assassinos de mulheres e vingar cada uma das vítimas.

Temos, então, três núcleos textuais –o jornalístico, em que podemos conhecer algo das vítimas reais do feminicídio- a narração realista, que aproxima a história da protagonista a de milhares de mulheres vítimas de violência, e o onírico, no qual as mulheres são vingadas. Estes três núcleos são responsáveis por manter um equilíbrio difícil entre o verdadeiro e o verossímil, pois a autora usa a realidade das estatísticas do Brasil atual para cativar seu leitor e fazer com que ele se sinta na vida real, e logo depois ela o apunhala com o ‘diferente’ que a arte proporciona, chocando o leitor pela forma crua que a violência contra mulheres é mostrada, e imaginando uma solução ficcional que não seja apenas desalento.

A narrativa trabalha sobre mortes e dá ao leitor a sensação do empilhamento, caracterizado pelo descaso e pelas atrocidades cometidas contra as mulheres. Nesse sentido, a falta de nome da narradora é simbólica: sua história é uma mescla das histórias de vítimas reais com a elaboração ficcional da narrativa da protagonista, que apesar de todo o medo e sofrimento, não desiste de reagir e lutar por justiça.

A autoficção no Brasil

Caroline Barbosa

Crédito da imagem: Tobias Schwarz/Reuters (2012)

Como me referi em um post anterior, a variação dos termos que surgiram a partir da discussão sobre a autoficção (como, por exemplo, alterbiografia, autonarração, autofabulação) poderia contribuir para a recusa dos autores brasileiros de nomear suas obras como autoficcionais. Entretanto, ao longo da pesquisa, pude pressupor que a própria recepção do termo por parte dos pesquisadores brasileiros têm influência na forma como os escritores o recebem.

Luiz Costa Lima acredita que o problema para a existência de um termo como autoficção está na falta de análise crítica do que seria realmente ficção. De acordo com o teórico, a autoficção seria “um grau mais acentuado das autobiografias” e que o termo apenas contribui para enfatizar o trabalho com a subjetividade, já demasiadamente presente em nossa produção ficcional. Já Alcir Pécora comenta que toda ficção diz respeito a formas de produção de uma subjetividade, mas, na opinião do crítico e professor da Unicamp, a autoficção “está bem mais próxima da falsificação da experiência e da história como espetáculo vulgar”.

Por outro lado, Luciene Azevedo realça a instabilidade epistemológica provocada pelo termo, que o mantém em uma zona nebulosa, mas prefere destacar as possibilidades que ele abre para as obras contemporâneas. Para a pesquisadora, o termo permite que as fronteiras entre realidade e ficção sejam redefinidas, modificando, dessa forma, nossa própria relação com o literário.

Outra pesquisadora que  analisa as potencialidades da autoficção é Luciana Hidalgo. Ela acredita que o termo entrou em processo de banalização ao ser usado para obras muito diversas, inclusive para o que chama de um excesso de subjetivação, em alguns casos. No entanto, Hidalgo valoriza o fato de que a autoficção explora um “eu” que, durante muito tempo, foi vetado na especulação teórica e na produção ficcional e que agora a autoficção revela sem repressão e sem os tabus do passado.

Assim, considerando as posições de alguns pesquisadores brasileiros, pude perceber que o termo ainda não é totalmente aceito e continua indefinido. Alguns teóricos, apesar de reconhecerem que a autoficção possui muitas pontas soltas, conseguem analisar a sua importância para a literatura, enquanto outros, acreditam ser apenas mais uma forma de autobiografia com foco excessivo no “eu”.

A maioria dos escritores brasileiros não recebe muito bem o termo. Daniel Galera acredita que o termo é passageiro; Itamar Vieira Junior vê a autoficção como um excesso de subjetividade que serve para afirmar certa visão da branquitude nas obras literárias; Michel Laub discute que há mais de um conceito para o termo e que essa diversidade pode levar a classificar obras como autoficcionais sem que as obras sejam autoficção; Cristóvão Tezza minimiza e rejeita para suas obras o termo, pois acredita que o elemento biográfico é apenas mais um dispositivo narrativo a ser usado na ficção.

Esse breve esboço deixa ver que a autoficção permanece um termo instável. No entanto, a problematização que desperta já é motivo suficiente para prestarmos mais atenção nele.

O diário e a (não)ficção

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Peter Doig – Walking Figure by Pool, 2011

Minha pesquisa atual tenta delinear o que venho chamando de romance diário.  Embora já tenha tratado disso em posts anteriores, me dei conta, durante esse período de incertezas em que tantos escrevem os diários de suas quarentenas, de que explorei pouco a forma do diário como gênero autobiográfico.

Após anos dedicando-se a estudar os gêneros autobiográficos, Philippe Lejeune afirma que propositalmente deixou de lado o diário, mas o crítico não só passou a pesquisar sobre essa forma, como também manteve um diário como parte do processo de sua investigação.

Para o autor, o diário é, antes de tudo, uma atividade, uma prática, um “modo de viver”. Como prática, o diário é irregular e não possui nem uma forma única nem objetivos únicos. Por vezes diaristas escrevem em cadernos, outras em folhas soltas. O diário pode ser escrito para o eu que o escreve ou para um interlocutor imaginário; pode incluir imagens, passes de metrô ou outras lembranças do dia.

Como texto, o diário é mais próximo do manuscrito do que do livro, mais próximo da lógica do hipertexto que da linearidade dos livros mais convencionais. Em seu furor de caracterização, Lejeune afirma que diários são repetitivos, descontínuos, fragmentados e neles cabem diversos temas, o que indica uma tendência a divagações tangenciais. As repetições e as variações ficam ao sabor do ritmo de escrita de cada diarista e, segundo Lejeune, isso pode se tornar um problema para o leitor, pois ele encontrará na leitura das entradas muitos implícitos e a ausência dos pontos de referência.

São essas características que fornecem a síntese para a definição do diário pelo crítico: uma série de descontinuidades organizadas de maneira contínua. Uma série de traços que registram um momento, sempre datado, que podem trazer imagens, uma atividade discreta de coleta de vestígios que serve à reflexão, à memória, ao gosto de escrever.

Em The diary as “antifiction,  Lejeune afirma ter criado o termo antificção porque se irrita muito com a compreensão de que a autoficção realça a inventividade dos autores no tratamento que dão aos dados biográficos para criar uma narrativa de si mesmos. Muitas vezes, diz o crítico, o que se chama de autoficção é apenas um modo de escrever a autobiografia dando voltas para chegar à “verdade”, estimulando a dúvida no leitor.

A preferência teórica pelo termo antificção é justificada porque Lejeune diz que prefere  ler textos que se comprometem com o enfrentamento com a “verdade”, que é o que faz o diário na sua opinião. Assim, o diário, como forma exemplar de escrita do presente, rejeitaria a ficção.

Mesmo determinado a tentar separar as esferas da “verdade” e da ficção, da vida e da literatura, Lejeune reconhece que o diário pode ser entendido como um gênero capaz de promover a inovação das formas narrativas, ainda que não se arrisque nessa direção.

E é essa afirmação que interessa à minha investigação sobre a existência de uma possível forma de romance diário.

“Tantas fiz”: os vários retratos de Ana Cristina Cesar

Raquel Galvão1

Créditos da imagem: The swan collective. O começo do fim do mundo (2007)

Eucanaã Ferraz, ao organizar Inconfissões: Fotobiografia de Ana Cristina Cesar (IMS, 2016), propõe a exposição de um álbum daquilo que não se revela (o íntimo), assumindo, previamente, a obra como “um documentário errático e parcial”. Trata-se de um teatro fotográfico extenso e imperfeito? Limitado, mas raro!

Para quem pesquisa Ana Cristina Cesar, a obra funciona como um acesso facilitado à parte do acervo pessoal da escritora, que sai dos arquivos do Instituto Moreira Salles para vir a público com um tratamento editorial sofisticado e uma tiragem inicial restrita a 3 mil exemplares. Como registro do percurso de uma poeta, tradutora, professora e pesquisadora, observando a relação com sua época (Brasil, décadas de 1970 e 1980) e classe (média, intelectual), a fotobiografia oferece, à primeira vista, o movimento de curiosidade em torno dos retratos de família e de viagem. Mas sua potência, para os estudos acadêmicos, está na presença de documentos históricos (publicações em jornais, edições da geração marginal, fotos de happenings e lançamentos de livros) e da cronologia sobre a formação e a atuação de Ana Cristina Cesar no campo da cultura, traçada por Elizama Almeida e Manoela Daudt.

Com a pretensão de gerar comentários sobre algumas fotografias de Cesar, a edição se coloca entre o pessoal e o artístico, publicando textos inéditos do círculo de amigos de sua convivência e de outros escritores e intelectuais contemporâneos. Marcos Siscar, respondendo à proposta do organizador, expõe uma descrição criativa e, ao mesmo tempo, filosófica sobre um dos retratos de Ana Cristina Cesar, uma espécie de perfil contraluz em relação à janela de um apartamento (Foto de Cecília Leal, 1979), a partir do qual reflete: “Se a nomeação do mundo se dá pelo contorno, o contorno de um sujeito é seu perfil. O perfil é a assinatura visível de um corpo. O sujeito perfilado não é aquele que abre mão do sujeito real, mas que coloca em primeiro plano a questão de uma possibilidade.”. Frequentamos, então, a escritora, cuja assinatura já é conhecida no campo literário brasileiro, amparados por retratos de diversos e novos ângulos. Variados corpos, em momentos distintos da infância até a fase adulta, fazem saltar na leitura a experiência literária e o sentido precoce da poesia na vida.

A edição da fotobiografia desemboca em uma exposição técnica da intimidade? Fora da academia, para os apreciadores e amantes da produção da escritora, a obra possibilita a entrada em um ambiente pessoal, em uma narrativa biográfica composta por fotogramas, mas, como sugere Siscar, a representação da autora dada pelos retratos também aponta para o desejo de se reinventar literariamente, sujeito real, sujeito inventado.

CESAR, Ana Cristina. Inconfissões: Fotobiografia de Ana Cristina Cesar. Organização e prefácio de Eucanãa Ferraz – São Paulo: IMS, 2016.

1 Raquel Galvão é doutoranda em Teoria e História Literária (Unicamp). Pesquisa “A crítica jornalística de Ana Cristina Cesar”, é bolsista FAPESP e realizou um sanduíche na Sorbonne Université em 2019.