Arquivo do mês: março 2019

Barthes e o romanesco

Luciene Azevedo e Carolina Coutinho

Créditos da imagem: “Personas”, Paulo Bruscky, 1993.

O termo “romanesco” desponta em diferentes textos de Roland Barthes ao longo de sua produção crítica. Mas no final dos anos 70, o termo parece se relacionar ao projeto barthesiano de escrever um romance, ao menos é o que podemos entender lendo as anotações de aula do último curso que ministrou no Collège de France, intitulado A preparação do romance. É, então, à leitura das aulas desse curso, no qual Barthes se propõe a interrogar quais as condições em que se lança um escritor para se arriscar a escrever um romance, que nos debruçamos para pensar um entendimento do romanesco para o crítico. Quanto a proposta do curso, o “futuro autor” faz suas ressalvas: não está empenhado em fazer análises sobre o gênero romance, nem mesmo em extrair uma fórmula sobre como os autores de ontem preparavam/escreviam seus romances, mas em seu próprio empreendimento para escrever uma obra que conecte a literatura com a vida. Assim, segundo Barthes, o curso funcionará como uma preparação para a escrita, “para saber o que pode ser o Romance, façamos como se devêssemos escrever um”.

O primeiro volume de A preparação do romance, que cobre as aulas do primeiro ano do curso (1978-1979), se debruça sobre a anotação e o que ele considera ser a sua “realização exemplar”, o haicai japonês. A partir da leitura desse primeiro momento do curso e das aproximações que faz entre a forma do haicai e a anotação, acreditamos que podemos destacar três pontos principais que parecem formar seu “projeto romanesco”: a investigação sobre uma forma de dizer “eu”, uma atenção ao presente e o que chama de “uma nova prática de escrita”. Barthes nunca aplicou-se com diligência à delimitação rigorosa do que seria o romanesco, assim a noção sempre aparenta ser um tanto vacilante, como se o próprio autor talvez não tivesse exatamente certeza do que queria ou de como realizar seu desejo.

Barthes inaugura sua primeira aula comentando sobre seu processo de mudança após a perda de sua mãe, o acontecimento que inicia o seu “meio da vida”, a consciência da própria mortalidade e o desejo por uma Vita Nova, que é traduzido pelo desejo por uma “nova prática de escrita” que permita um outro modo de tratar a 1ª pessoa, falando de um sujeito fragmentado, uma subjetividade móvel. A discussão sobre esse termo em Barthes nos interessa em especial, pois nos parece que a noção tal como tentamos caracterizá-la a partir da leitura de Barthes, está muito conectada com um modo de falar de si no presente. Explicamos melhor: não é incomum encontrarmos narrativas nas quais acompanhamos a elaboração de uma história que gira em torno da construção de um imaginário desse “eu” (muitas vezes, muito próximo do próprio autor da obra) em relação ao que lhe é “contingente”, aos “incidentes” da vida que, embora percebidos como “coisinhas de nada” (como Barthes descreve a atenção ao banal a que gostaria de se dedicar na escrita de sua obra) poderiam revelar um modo de ver o sujeito que escreve e também o mundo que o cerca.

Assim, o “modo justo de dizer eu” não se esgotaria na exposição da intimidade ou na retórica confessional, mas resultaria em uma verdadeira aventura investigativa sobre uma “formação de imagens do eu” no texto, na vida, no presente.

Acreditamos, então, que tentar caracterizar, a partir das anotações desse curso, a noção de romanesco, pode ser uma chave para problematizar alguns elementos que aparecem de modo muito insistente nas formas narrativas contemporâneas, como a presença da 1ª pessoa, o “vínculo afetivo com o presente” e uma dicção narrativa que incorpora a seu fazer, a própria preparação do que nos conta.

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O romance que é também ensaio: Beatriz Bracher e sua Anatomia do Paraíso

Allana Santana

Créditos da imagem: Brilliant Information Overload Pop Head – Douglas Coupland, 2010

Quando chamo algumas produções da literatura contemporânea de romance-ensaio, estou me referindo a obras que apresentam certos traços mencionados em posts anteriores, como, por exemplo, a apresentação ao longo da narrativa que vamos lendo de uma perspectiva de mundo que é alterada constantemente e que é acompanhada de perto pelo olhar atento de um sujeito, seja ele o narrador ou um personagem. Uma outra característica associada a essa voz narrativa e presente em muitas publicações atuais é o fato de que esse narrador, muitas vezes, é não apenas o personagem da própria história, mas também apresenta características muito próximas as do autor da obra, o que não raro coloca a identificação da obra num lugar híbrido, numa interseção entre a ficção e a autobiografia. Além desses aspectos, destaco um terceiro, que pode ser entendido também como um resultado dos dois aspectos anteriores que apresentei: existe um deslocamento da narração para uma (auto) reflexão. Ou seja, o que é retratado na obra reflete um movimento primordialmente interno do sujeito, ao invés de se concentrar numa construção de trama, no delineamento de características de personagens inventados. Um exemplo desse deslocamento pode ser encontrado nos livros Machado, de Silviano Santiago, e em A Morte do Pai, de Karl Ove Knausgaard. Os narradores dessas obras parecem muito próximos da figura do autor que assina a obra. Isso fica mais evidente na produção do autor norueguês, tendo em vista que a escrita do romance expõe as reflexões sobre os acontecimentos que sucedem ao falecimento de seu pai e renderam ao autor, inclusive, processos judiciais.

Mas é possível também encontrar obras em que a narração como trama, como desenvolvimento de personagens caminha ao lado de uma dicção ensaística. Como, por exemplo, em Anatomia do Paraíso, escrito por Beatriz Bracher e publicado pela editora 34, em 2015. O livro se passa em Copacabana, bairro da cidade do Rio de Janeiro, e conta um pouco sobre o processo de escrita da dissertação de Félix, estudante de Letras, que estuda o Paraíso Perdido, obra escrita por John Milton. Além disso, conta em paralelo a história de Vanda, vizinha de Félix, que trabalha no IML e em uma academia de um grande hotel, e à noite estuda para o vestibular de medicina, que pretende fazer no final do ano. Ainda que a obra apresente características distintas dos outros dois livros mencionados anteriormente – como a narração em terceira pessoa, um certo desenvolvimento da trama que enreda os personagens e detalhes sobre suas vidas– o tom ensaístico é muito presente na obra, principalmente ao narrar a perspectiva de Félix, que parece mediada pela sua leitura do texto de Milton:


“E tudo mais que leu e viveu, de alguma maneira, passou pelas lentes dos versos portugueses do poema inglês. E tudo mais que leu e viveu transformou e continua a transformar sua leitura do Paraíso Perdido. Sabe que com tudo é assim. Com todos os livros e com toda a vida, tudo se transformando continuamente, uns aos outros, dentro de si. Cada livro que lê é influenciado pelo que leu antes e modifica a memória desses, assim como o que vive, pois não há diferença entre ler e viver.”

A narração sobre o processo de escrita do Félix aparece em meio a trechos da obra do poeta inglês, tanto na tradução utilizada pelo estudante, a do português Lima Leitão, feita em 1840, quanto em língua original, e ambas, aos poucos, vão dividindo espaço com tradução mais recente feita por Daniel Jonas, versão que Félix ganha de presente de um amigo. São nesses momentos que o tom ensaístico a que me refiro aparecem no texto, como na citação abaixo:“Sendo em tudo mais distantes, no idioma e no tempo, e talvez até mesmo porque mais recentes em sua memória do que os portugueses, os versos de Milton o atingem agora de maneira mais contundente do que sua tradução. Talvez, também, porque não conheça ‘hell hounds’ tanto quanto ‘mastins infernais’ e ‘perene rudo estrondo’ não machuque em nada seus ouvidos, enquanto ‘never ceasing barked’ é um latido contínuo e, ao mesmo tempo, constantemente interrompido, como são os latidos de uma matilha de cachorros, quando os dentes se batem para logo se abrirem e soar de novo. E, acima de tudo, womb era e é útero. Qualquer mulher inglesa gerava e continua a gerar filhos em seus wombs, nenhum homem inglês nunca teve womb.”



“Sendo em tudo mais distantes, no idioma e no tempo, e talvez até mesmo porque mais recentes em sua memória do que os portugueses, os versos de Milton o atingem agora de maneira mais contundente do que sua tradução. Talvez, também, porque não conheça ‘hell hounds’ tanto quanto ‘mastins infernais’ e ‘perene rudo estrondo’ não machuque em nada seus ouvidos, enquanto ‘never ceasing barked’ é um latido contínuo e, ao mesmo tempo, constantemente interrompido, como são os latidos de uma matilha de cachorros, quando os dentes se batem para logo se abrirem e soar de novo. E, acima de tudo, womb era e é útero. Qualquer mulher inglesa gerava e continua a gerar filhos em seus wombs, nenhum homem inglês nunca teve womb.”

Quando falamos de romance ensaio, evocamos logo o romance de Musil, O homem sem qualidades, no qual a perspectiva de Ulrich e suas reflexões sobre os acontecimentos e sobre suas próprias atitudes em relação a eles, são o aspecto central do livro:

“Ele procura compreender-se de outra forma; com inclinação para tudo o que o multiplique interiormente, ainda que moral ou intelectualmente proibido, sente-se como um passo livre em todas as direções, mas que leva de um equilíbrio a outro equilíbrio, seguindo sempre em frente. E se alguma vez pensa ter a ideia certa, percebe que uma gota de indizível fogo caiu no mundo, e sua luz faz tudo parecer diferente. Mais tarde, com maior capacidade intelectual, isso se transformou em Ulrich numa ideia que já não ligou à incerta palavra hipótese, mas, por determinadas razões, ao conceito singular de ensaio. Mais ou menos como um ensaio examina um assunto de muitos lados em seus vários capítulos, sem o analisar inteiro – pois uma coisa concebida inteira perde de repente sua abrangência e se derrete num conceito – ele acreditava ver e tratar corretamente o
mundo e a própria vida.”

Assim como a associação entre o modo de vida de Ulrich e a forma ensaística é de suma importância para o entendimento da obra do autor austríaco, minha aposta é que também podemos ler as reflexões de Félix sobre a vida, sobre as traduções do Paraíso de Milton como uma forma de
ensaio dentro do romance de Bracher.

LIMIARES DA CRÍTICA: a construção de um discurso crítico-inventivo

Milena Tanure

Créditos da imagem: Antony Micallef, disponível em: https://inspi.com.br/2016/09/arte-contemporanea-de-antony-micallef/

Muitas das reflexões que têm sido aqui empreendidas têm nos levado a refletir sobre a multiplicidade de formas que o corpo contemporâneo assume no interior do campo literário. A instabilidade dos gêneros, a retomada ou consolidação de uma dicção ensaística, o lugar da autoria e as narrativas de si, de algum modo, vão sendo pensados ao longo dos textos e leituras aqui apresentados. Mantendo-me na linha de tais discussões, tenho refletido sobre o modo como a crítica literária tem sido afetada por esse cenário e por uma série de fatores que levam à reformulação não apenas dos seus objetos de análise, dos aparatos teóricos e críticos de que se vale, mas, em especial, da sua própria forma de feitura.

Se antes tínhamos uma exacerbada ânsia por um objetivismo na construção das ciências, sobretudo em função de um positivismo científico do século XIX que alcançou todos os campos do saber e de um estruturalismo que buscou construir bases para a análise literária, hoje, o reconhecimento da subjetividade como algo inapagável na construção textual tem sido um mote irrecusável. Dessa forma, se nas narrativas contemporâneas o lugar da autoria e os entrelaçamentos entre ficção e realidade têm sido repensados, por exemplo, no espaço da crítica, o mesmo tem se operado, seja pelo reconhecimento do crítico como leitor repleto de subjetividades ou pela constituição de um entre-lugar entre o campo da produção literária e da crítica a partir da presença de autores que se dividem entre o labor acadêmico no campo das letras e da produção ficcional.

O lugar da crítica tem sido constantemente questionado, sobretudo a partir das transformações nos distintos ramos da ciência gerados pelo declínio das ciências humanas. Nesse contexto, Eneida de Souza aponta que “o reconhecimento do estatuto ficcional das práticas discursivas e da força inventiva de toda teoria nos alerta para a íntima relação entre o artístico e o cultural no lugar da exclusão de um pelo outro”. Souza (1993) destaca, que, anteriormente, seguindo o que se tinha desde os formalistas russos, o new criticism e demais correntes da teoria literária, o destaque e maior relevância eram ofertados ao objeto de análise, sendo o sujeito, seja o autor ou ensaísta, colocado em segundo plano. O anseio da crítica de ser ciência dava origem a uma escrita que nem sempre se fazia agradável, uma vez sendo reprodução das terminologias técnicas, o que confluía para uma reprodução de enunciados e não mais uma escrita própria.

Nesse mesmo período, os paradigmas estruturalistas passaram a ser questionados, inclusive pelos seus representantes, como Roland Barthes. Questionando o discurso científico, sobretudo em seu caráter repressor do sujeito, Barthes colocou em cena o fato de “ser todo e qualquer saber indissociável de um trabalho de escrita e enunciação” (SOUZA, 1993, p.4). Nesse cenário de incertezas se apresenta uma nova roupagem à crítica ou, para melhor dizer, um novo questionamento sobre a própria literatura, o fazer ficcional e a crítica literária. Assim, pensando os processos de transmutação da crítica e da produção literária, é válido citar um discurso ambíguo e ambivalente da crítica a partir do que Leyla Perrone-Moisés (1978) denominou de Crítica-escritura. Uma vez que tal crítica interna tem sido perceptível em produções literárias contemporâneas, é possível compreender que a crítica-escritura pode ser entendida como a crítica da crítica, uma vez tendo a si mesma como objeto e sendo, ao mesmo tempo, comentário sobre a ficção e ficção. Findada a separação tradicional entre crítica e a obra literária, a escritura se mostra livre de várias formas, sendo a intertextualidade uma delas. É nesse cenário que a crítica literária se reinventa e “assistimos, então ao aparecimento de um novo tipo de discurso literário, aflorando no lugar anteriormente ocupado pelo discurso crítico: um discurso crítico-inventivo” (PERRONE-MOISÉS, 1978). Em “Notas sobre a crítica biográfica”, Eneida de Souza sinaliza o modo pelo qual, nesse cenário, a literatura deixa de ser objeto de análise e passa a também analisar e teorizar sobre si mesma. Dessa forma, “o próprio sujeito teórico se inscreve como ator no discurso e personagem de uma narrativa em construção”, cabendo citar, nesse ponto, Retrato desnatural (Diários – 2004-2007), de Evando Nascimento, com todas as suas dificuldades para a delimitação de gêneros dos seus textos e o constante trânsito entre literatura e a reflexão sobre o próprio fazer literário e a Teoria da Literatura. Diante de tais dificuldades, a epígrafe do primeiro capítulo do livro, intitulado Escrevendo no escuro, nos oferece a pista precisa dada pelo autor/narrador/crítico: “pois se tornou/imperativamente necessário/escrever na primeira pessoa, mas/sem ingenuidade, com todos os disfarces. o a(u)tor”.

Se a pesquisa na área da literatura tem revelado incertezas e imposto novos trânsitos, é preciso, com alguma coragem e opondo-se a lugares já conhecidos de conforto, reconhecer, conforme sinaliza Evelina Hoisel, que “a questão dos limiares críticos aponta para metodologias de leitura, de avaliação e de conhecimento […] [que] definem o movimento que transborda do fora para dentro, que ultrapassa fronteiras e que coloca também a necessidade metodológica, não hierarquizada e transitória de demarcar o ponto de abertura para a multiplicidade, a diversidade, a outridade, mas também de reconhecer as marcas de reconhecimento da especificidade, da particularidade e da singularidade”.