Arquivo da categoria: sujeito

“Tudo será como agora, só que um pouco diferente”

Luciene Azevedo e Allana Santana

Créditos da imagem:
The Clock by Christian Marclay 2010, 24hrs, Digital, Color, Sound.

Em post anteriores, já falamos da forma do romance-ensaio e tematizamos o caminho que seguimos em nossa investigação que visa identificar em narrativas contemporâneas algumas características dessa forma. Já em seus Ensaios, Montaigne afirmava uma forte ligação entre a construção de seu eu e sua obra e por isso acreditamos que uma porta de entrada para essa discussão pode estar na observação sobre a maneira como um sujeito vai se delineando à medida que a história se desenrola.

Mas como pensar essa relação em uma obra contemporânea? Vamos pegar como exemplo o romance 10:04, escrito por Ben Lerner.

Entrar na leitura dessa obra é como ser arremessado em um turbilhão de situações que à primeira vista negam relação entre si. Nesse sentido, a ideia de trama narrativa parece vacilar, tudo parece muito desamarrado, pois acompanhamos ao mesmo tempo situações que envolvem a negociação de publicação do mais novo romance do narrador (ainda por fazer), os preparativos que envolvem a sobrevivência da população nova-iorquina preocupada com a chegada de duas tempestades, a elaboração de um livro infantil sobre dinossauros e o drama pessoal vivido pelo narrador a respeito da dúvida sobre a doação de esperma para sua melhor amiga, que decide ser mãe a qualquer custo. Os diferentes temas parecem não apresentar relação alguma entre eles e ao mesmo tempo essa desconexão é harmoniosa, sendo amarrada à narração em primeira pessoa e a certa ambiguidade na identificação entre autor e narrador-personagem.

Nas primeiras cenas do livro, acompanhamos o narrador e sua agente literária em um almoço de comemoração pela repercussão da publicação de um conto publicado meses antes na revista New Yorker e que vale ao autor um adiantamento polpudo para escrever um romance que expanda o conto. Já aí, então, começamos a desconfiar da proximidade entre Ben Lerner e o narrador de sua história, a quem a publicação do conto na revista dá certa notoriedade e que também possui um romance aclamado pela crítica. Essa é a trajetória literária do próprio Lerner que depois de publicar livros de poesia, ganha reconhecimento mais amplo da crítica com o romance Estação Atocha e a publicação do conto The Golden Vanity na Revista New Yorker.

Aqui, já imaginamos a careta do leitor e sua impaciência: “mais uma obra em que o autor conta sua vidinha literária…” Mas talvez valha a pena assinalar que embora esse desvendamento do eu, quase sempre de um eu-autor, esteja presente em muitas obras contemporâneas, podemos apostar que os usos da primeira pessoa têm rentabilidade muito distintas. Em Lerner, arrisco dizer que há uma dicção ensaística capaz de produzir uma aliança entre a exposição da voz subjetiva e sua relação com o espaço público, nos termos em que Timothy Corrigan analisa a presença do ensaio na produção de filmes.

Para dar uma ideia melhor da maneira como estamos pensando a presença do ensaio imbricada à ficção em Lerner, vale a pena comentar o episódio em que o personagem principal e sua melhor amiga vão assistir à The Clock de Christian Marclay. A obra é uma montagem que recorta e cola tomadas de relógios ou trechos que mencionam a passagem das horas retiradas de cenas de filmes ou tevê editadas de modo a indicar exatamente a duração do filme no momento que é exibido. Depois de algumas horas dentro do cinema, o narrador checa o relógio, para ver que horas são, depois se pergunta porque teria feito esse gesto, já que o filme, a representação das cenas indica exatamente que horas são, a passagem do tempo durante a própria exibição das cenas. Essa pergunta marcada por certa estupefação do próprio narrador dá origem a uma reflexão sobre a relação entre a arte e a realidade:

“Eu fiquei sabendo que The Clock tinha sido descrito como a derradeira transformação do tempo ficcional em tempo real, uma obra concebida para obliterar a distância entre arte e vida, fantasia e realidade. Mas parte do motivo de eu ter consultado as horas no meu celular foi porque essa distância não havia sido quebrada pra mim; apesar de a duração de um minuto real e a duração do minuto de The Clock serem matematicamente indistinguíveis, eles eram minutos de mundos diferentes. Eu via o tempo no The Clock, mas não estava nele, quer dizer, eu estava experimentando o tempo como tal, não tendo experiências por meio dele como meio. […] Ao consultar o meu relógio para ver uma unidade de medida idêntica à exibida na tela, eu estava indicando que ainda havia uma distância entre a arte e o mundano.”

Nessa escrita semelhante a um “pensar sobre a experiência”, aparece uma reflexão sobre elementos importantes nas discussões sobre a arte hoje, de uma maneira muito particular e subjetiva, cujo efeito produzido na leitura é o de que a subjetividade do narrador, sua constituição como sujeito, vai sendo elaborada junto com o texto. Essa reflexão motiva o personagem a escrever “mais ficção”, e talvez seja o pontapé inicial para as demais reflexões (sobre as diferenças entre a realidade e a arte, sobre o que é se tornar um autor, sobre a exposição de si na literatura atual, sobre estar no mundo) que aparecem na obra. Talvez a chave para compreender essa maneira de estar presente nas coisas refletindo sobre o que é a ficção seja a epígrafe escolhida por Lerner que diz assim:

“Os hassidim contam uma história que diz que no nosso mundo por vir tudo será precisamente como é aqui: Como o nosso quarto é agora, assim será no mundo futuro; onde dorme o nosso filho agora, é onde dormirá também no outro mundo. E as roupas que vestimos neste mundo são as que também vestiremos lá. Tudo será como agora, só que um pouco diferente.”

Em vários momentos, ao longo da leitura, o narrador chama a atenção para pequenos mas sucessivos “rearranjos de mundo” que somos obrigados a fazer no nosso cotidiano e a que vamos nos acostumando na narrativa pela maneira como Lerner explora esse procedimento. Acredito que aqui nesse “procedimento” há algo de semelhante ao que Corrigan chama de “pensamento ensaístico” ao falar sobre a forma do ensaio no cinema. Essa nova lógica de organização expressa no romance também é um convite ao leitor para que assuma um posicionamento diferente diante da obra, da ficção que lê.

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Barthes e o romanesco

Luciene Azevedo e Carolina Coutinho

Créditos da imagem: “Personas”, Paulo Bruscky, 1993.

O termo “romanesco” desponta em diferentes textos de Roland Barthes ao longo de sua produção crítica. Mas no final dos anos 70, o termo parece se relacionar ao projeto barthesiano de escrever um romance, ao menos é o que podemos entender lendo as anotações de aula do último curso que ministrou no Collège de France, intitulado A preparação do romance. É, então, à leitura das aulas desse curso, no qual Barthes se propõe a interrogar quais as condições em que se lança um escritor para se arriscar a escrever um romance, que nos debruçamos para pensar um entendimento do romanesco para o crítico. Quanto a proposta do curso, o “futuro autor” faz suas ressalvas: não está empenhado em fazer análises sobre o gênero romance, nem mesmo em extrair uma fórmula sobre como os autores de ontem preparavam/escreviam seus romances, mas em seu próprio empreendimento para escrever uma obra que conecte a literatura com a vida. Assim, segundo Barthes, o curso funcionará como uma preparação para a escrita, “para saber o que pode ser o Romance, façamos como se devêssemos escrever um”.

O primeiro volume de A preparação do romance, que cobre as aulas do primeiro ano do curso (1978-1979), se debruça sobre a anotação e o que ele considera ser a sua “realização exemplar”, o haicai japonês. A partir da leitura desse primeiro momento do curso e das aproximações que faz entre a forma do haicai e a anotação, acreditamos que podemos destacar três pontos principais que parecem formar seu “projeto romanesco”: a investigação sobre uma forma de dizer “eu”, uma atenção ao presente e o que chama de “uma nova prática de escrita”. Barthes nunca aplicou-se com diligência à delimitação rigorosa do que seria o romanesco, assim a noção sempre aparenta ser um tanto vacilante, como se o próprio autor talvez não tivesse exatamente certeza do que queria ou de como realizar seu desejo.

Barthes inaugura sua primeira aula comentando sobre seu processo de mudança após a perda de sua mãe, o acontecimento que inicia o seu “meio da vida”, a consciência da própria mortalidade e o desejo por uma Vita Nova, que é traduzido pelo desejo por uma “nova prática de escrita” que permita um outro modo de tratar a 1ª pessoa, falando de um sujeito fragmentado, uma subjetividade móvel. A discussão sobre esse termo em Barthes nos interessa em especial, pois nos parece que a noção tal como tentamos caracterizá-la a partir da leitura de Barthes, está muito conectada com um modo de falar de si no presente. Explicamos melhor: não é incomum encontrarmos narrativas nas quais acompanhamos a elaboração de uma história que gira em torno da construção de um imaginário desse “eu” (muitas vezes, muito próximo do próprio autor da obra) em relação ao que lhe é “contingente”, aos “incidentes” da vida que, embora percebidos como “coisinhas de nada” (como Barthes descreve a atenção ao banal a que gostaria de se dedicar na escrita de sua obra) poderiam revelar um modo de ver o sujeito que escreve e também o mundo que o cerca.

Assim, o “modo justo de dizer eu” não se esgotaria na exposição da intimidade ou na retórica confessional, mas resultaria em uma verdadeira aventura investigativa sobre uma “formação de imagens do eu” no texto, na vida, no presente.

Acreditamos, então, que tentar caracterizar, a partir das anotações desse curso, a noção de romanesco, pode ser uma chave para problematizar alguns elementos que aparecem de modo muito insistente nas formas narrativas contemporâneas, como a presença da 1ª pessoa, o “vínculo afetivo com o presente” e uma dicção narrativa que incorpora a seu fazer, a própria preparação do que nos conta.

O romance que é também ensaio: Beatriz Bracher e sua Anatomia do Paraíso

Allana Santana

Créditos da imagem: Brilliant Information Overload Pop Head – Douglas Coupland, 2010

Quando chamo algumas produções da literatura contemporânea de romance-ensaio, estou me referindo a obras que apresentam certos traços mencionados em posts anteriores, como, por exemplo, a apresentação ao longo da narrativa que vamos lendo de uma perspectiva de mundo que é alterada constantemente e que é acompanhada de perto pelo olhar atento de um sujeito, seja ele o narrador ou um personagem. Uma outra característica associada a essa voz narrativa e presente em muitas publicações atuais é o fato de que esse narrador, muitas vezes, é não apenas o personagem da própria história, mas também apresenta características muito próximas as do autor da obra, o que não raro coloca a identificação da obra num lugar híbrido, numa interseção entre a ficção e a autobiografia. Além desses aspectos, destaco um terceiro, que pode ser entendido também como um resultado dos dois aspectos anteriores que apresentei: existe um deslocamento da narração para uma (auto) reflexão. Ou seja, o que é retratado na obra reflete um movimento primordialmente interno do sujeito, ao invés de se concentrar numa construção de trama, no delineamento de características de personagens inventados. Um exemplo desse deslocamento pode ser encontrado nos livros Machado, de Silviano Santiago, e em A Morte do Pai, de Karl Ove Knausgaard. Os narradores dessas obras parecem muito próximos da figura do autor que assina a obra. Isso fica mais evidente na produção do autor norueguês, tendo em vista que a escrita do romance expõe as reflexões sobre os acontecimentos que sucedem ao falecimento de seu pai e renderam ao autor, inclusive, processos judiciais.

Mas é possível também encontrar obras em que a narração como trama, como desenvolvimento de personagens caminha ao lado de uma dicção ensaística. Como, por exemplo, em Anatomia do Paraíso, escrito por Beatriz Bracher e publicado pela editora 34, em 2015. O livro se passa em Copacabana, bairro da cidade do Rio de Janeiro, e conta um pouco sobre o processo de escrita da dissertação de Félix, estudante de Letras, que estuda o Paraíso Perdido, obra escrita por John Milton. Além disso, conta em paralelo a história de Vanda, vizinha de Félix, que trabalha no IML e em uma academia de um grande hotel, e à noite estuda para o vestibular de medicina, que pretende fazer no final do ano. Ainda que a obra apresente características distintas dos outros dois livros mencionados anteriormente – como a narração em terceira pessoa, um certo desenvolvimento da trama que enreda os personagens e detalhes sobre suas vidas– o tom ensaístico é muito presente na obra, principalmente ao narrar a perspectiva de Félix, que parece mediada pela sua leitura do texto de Milton:


“E tudo mais que leu e viveu, de alguma maneira, passou pelas lentes dos versos portugueses do poema inglês. E tudo mais que leu e viveu transformou e continua a transformar sua leitura do Paraíso Perdido. Sabe que com tudo é assim. Com todos os livros e com toda a vida, tudo se transformando continuamente, uns aos outros, dentro de si. Cada livro que lê é influenciado pelo que leu antes e modifica a memória desses, assim como o que vive, pois não há diferença entre ler e viver.”

A narração sobre o processo de escrita do Félix aparece em meio a trechos da obra do poeta inglês, tanto na tradução utilizada pelo estudante, a do português Lima Leitão, feita em 1840, quanto em língua original, e ambas, aos poucos, vão dividindo espaço com tradução mais recente feita por Daniel Jonas, versão que Félix ganha de presente de um amigo. São nesses momentos que o tom ensaístico a que me refiro aparecem no texto, como na citação abaixo:“Sendo em tudo mais distantes, no idioma e no tempo, e talvez até mesmo porque mais recentes em sua memória do que os portugueses, os versos de Milton o atingem agora de maneira mais contundente do que sua tradução. Talvez, também, porque não conheça ‘hell hounds’ tanto quanto ‘mastins infernais’ e ‘perene rudo estrondo’ não machuque em nada seus ouvidos, enquanto ‘never ceasing barked’ é um latido contínuo e, ao mesmo tempo, constantemente interrompido, como são os latidos de uma matilha de cachorros, quando os dentes se batem para logo se abrirem e soar de novo. E, acima de tudo, womb era e é útero. Qualquer mulher inglesa gerava e continua a gerar filhos em seus wombs, nenhum homem inglês nunca teve womb.”



“Sendo em tudo mais distantes, no idioma e no tempo, e talvez até mesmo porque mais recentes em sua memória do que os portugueses, os versos de Milton o atingem agora de maneira mais contundente do que sua tradução. Talvez, também, porque não conheça ‘hell hounds’ tanto quanto ‘mastins infernais’ e ‘perene rudo estrondo’ não machuque em nada seus ouvidos, enquanto ‘never ceasing barked’ é um latido contínuo e, ao mesmo tempo, constantemente interrompido, como são os latidos de uma matilha de cachorros, quando os dentes se batem para logo se abrirem e soar de novo. E, acima de tudo, womb era e é útero. Qualquer mulher inglesa gerava e continua a gerar filhos em seus wombs, nenhum homem inglês nunca teve womb.”

Quando falamos de romance ensaio, evocamos logo o romance de Musil, O homem sem qualidades, no qual a perspectiva de Ulrich e suas reflexões sobre os acontecimentos e sobre suas próprias atitudes em relação a eles, são o aspecto central do livro:

“Ele procura compreender-se de outra forma; com inclinação para tudo o que o multiplique interiormente, ainda que moral ou intelectualmente proibido, sente-se como um passo livre em todas as direções, mas que leva de um equilíbrio a outro equilíbrio, seguindo sempre em frente. E se alguma vez pensa ter a ideia certa, percebe que uma gota de indizível fogo caiu no mundo, e sua luz faz tudo parecer diferente. Mais tarde, com maior capacidade intelectual, isso se transformou em Ulrich numa ideia que já não ligou à incerta palavra hipótese, mas, por determinadas razões, ao conceito singular de ensaio. Mais ou menos como um ensaio examina um assunto de muitos lados em seus vários capítulos, sem o analisar inteiro – pois uma coisa concebida inteira perde de repente sua abrangência e se derrete num conceito – ele acreditava ver e tratar corretamente o
mundo e a própria vida.”

Assim como a associação entre o modo de vida de Ulrich e a forma ensaística é de suma importância para o entendimento da obra do autor austríaco, minha aposta é que também podemos ler as reflexões de Félix sobre a vida, sobre as traduções do Paraíso de Milton como uma forma de
ensaio dentro do romance de Bracher.

Ler o romance-ensaio

Allana Emilia

Créditos da imagem: Sandra Vasquez de la Horra, de perlar e burbujas, 2014. 

Em meu texto passado, trouxe algumas reflexões iniciais sobre o objeto de minha pesquisa. Meu interesse em estudar formas narrativas que se aproximam de uma dicção ensaística apresenta um ponto importante, já comentado brevemente: uma experiência de mundo deslizante, constantemente remodelada, associada à perspectiva de um sujeito – personagem ou narrador -. Um exemplo de narrativa com essa característica é dado por Timothy Corrigan em seu livro O filme-ensaio: de Montaigne a Marker, que, ao falar de filmes que trazem uma marca forte do ensaístico, como 2 ou 3 coisas que eu sei dela, de Jean-Luc Goddard, ressalta essa subjetividade expressiva como uma marca desses filmes. Essa subjetividade expressiva aparece associada a uma figuração do pensamento como discurso, representados no cinema a partir de encontros experienciais em situações públicas. No filme citado, a perspectiva do narrador sobre a realidade aparece relacionada à vivência de Juliette Jeanson, protagonista do filme. É a partir das situações vividas por essa personagem que se pode perceber a opinião do narrador sobre alguns assuntos, como a guerra do Vietnã ou a sociedade de consumo.

Com essas relações em mente – e um pouco mais de pesquisa -, me deparei com outro tópico que pode ser uma nova chave de leitura para as narrativas de meu interesse. Rafael Gutiérrez, em seu livro Formas Híbridas, publicado em 2017, chama a atenção justamente para obras que aparecem no contemporâneo que apresentam o que ele chama de “mistura de gêneros” (p. 20); ou seja, textos que não apresentam traços de um só gênero, se aproveitando de recursos ensaísticos e/ou da autobiografia, assim como da crítica literária ou do discurso histórico. Em obras analisadas por ele, como Bartleby e Companhia, de Enrique Vila-matas, e O movimento pendular, de Alberto Mussa, a estrutura do romance aparece amalgamada a outros elementos de outros gêneros, causando um certo estranhamento, de maneira a suscitar questões sobre o que se entende como ficcional.

Considerando especificamente a relação entre o romance e o ensaio, pensamos logo em O Homem sem Qualidades, de Robert Musil. Aí, podemos perceber tanto a presença de um estranhamento causado por essa hibridação de formas quanto a figuração do pensamento a partir de uma subjetividade expressiva na figura do protagonista, Ulrich. É a partir de suas experiências que a narrativa se desenvolve, e a história é contada pelo narrador a partir das reflexões do protagonista sobre suas interações com outros personagens, e as consequências desses acontecimentos. A hibridação de formas permeia a narrativa e é evidente principalmente ao longo dos muitos parênteses feitos pelo narrador ao explicitar contextos específicos, como o início das reflexões de Ulrich sobre o modo como vive sua vida e a “utopia do ensaísmo”, que vai se tornando o seu objetivo ao longo da narrativa. Parece pertinente pensar que a presença desses dois aspectos pode ser tomada como característica da forma romance-ensaio.

O romance ensaio

Allana Emilia

Maurizio Cattelan Il Super Noi in 50 parts, 1998

Créditos da imagem: Maurizio Cattelan Il Super Noi in 50 parts, 1998.

Ao longo do último ano de pesquisa, me dediquei às leituras sobre o gênero ensaio. Primeiro, quis me apropriar  da maneira como a fortuna crítica sobre o gênero percebe a forma; tendo lido os principais estudos sobre o ensaio, os Ensaios de Montaigne se transformaram em leitura obrigatória e daí várias outras questões surgiram: como o surgimento da forma ensaio está relacionado à emergência do sujeito Montaigne? – ou melhor como essa imbricação entre o sujeito e o ensaio é essencial para a construção da identidade do Montaigne escritor? Agora, me debruço sobre as narrativas contemporâneas tentando compreender  se  é  possível  pensar  a  presença  do  ensaio  na  construção  dessas  obras  e  como  essas questões aparecem tratadas nos textos.

Timothy  Corrigan,  realizando  um  estudo  sobre  o  filme-ensaio,  traz  pistas  sobre  a  capacidade  do ensaístico  de  produzir  reflexões  a  partir  da  mobilidade  da  forma.  Ao  dizer  que  “são  práticas  que desfazem  e  refazem a forma cinematográfica, perspectivas visuais, geografias públicas, organizações temporais  e  noções  de  verdade  e  juízo  na  complexidade  da  experiência”,  o  autor  parece  evocar  a escrita  de  Montaigne,  marcada  por  essas  características.  Essa  constante  remodelação  da perspectiva parece  ser  um  traço  não  só  de  obras  cinematográficas  que  Corrigan  chama  de  cinema-ensaio,  mas podem também ser pensadas em relação à literatura.

Se quiséssemos estabelecer uma genealogia literária para a forma do romance ensaio não poderíamos deixar  de  mencionar  O  Homem  Sem Qualidades, de Robert Musil. A obra narra aspectos da vida na Áustria  no  início  do  século  20,  tendo  como  personagem  principal  Ulrich.  A  multiplicidade  de  suas perspectivas  em  relação  aos  mais  variados assuntos – a Kakânia, o que define qualidades ou o que é uma pessoa sem qualidades -, apontam para uma instabilidade do sujeito que vem à tona numa forma também instável, complexa, móvel.

Em  A  Morte  do  Pai,  de  Karl  Ove  Knausgaard, os detalhes dos dias subsequentes ao falecimento do pai,  flashbacks  da  relação  conflituosa  relação  entre pai e filho e outras considerações aparentemente não relacionadas com a perda do pai (como um relato sobre a adolescência na Noruega na década de 80,  o  processo  de  se tornar escritor, até comentários sobre a beleza das paisagens norueguesas) dão à narrativa uma forma fragmentária, em que os temas parecem deslizar um após os outros, sem aparente relação.

O fato de os dois livros mencionados acima apresentarem um sujeito que busca sua própria identidade de  uma  forma  tateante,  ensaiando  dizer  de  si  em  constante  reposicionamento  frente  a  sua  própria subjetividade,  apresentando  um  processo  de reflexão sobre os variados assuntos de que trata, me faz pensar  que  a  tradição  iniciada  por  Montaigne  volta de maneira bastante marcante nessas obras. Mas esse é um trabalho que está apenas começando.

O Ideal de sujeito e O Ensaio

Allana Emilia

four quarters

Créditos da imagem: Kang, Young Min – Four Quarters (2016). Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/four-quarters/BAE306BgufvHzw

 

No meu post anterior, comentei sobre a escrita de si em Montaigne e os efeitos que essa escrita traz para a forma do gênero. De acordo com Erich Auerbach, em “A condição Humana”, Montaigne parece dar conta de um ideal de sujeito que passa a ser o modo fundamental como a modernidade trata a questão. Para Auerbach, o caráter tateante e incerto da captura do eu em Montaigne, sua inconstância, é superado pela “unidade da pessoa” e tudo termina na “unidade e na verdade”.

Entretanto, Thelma de Souza Birchal, ao comentar em seu livro O eu nos Ensaios de Montaigne, produto de da tese de doutorado da autora, mais especificamente no capítulo “Sou eu mesmo a matéria de meu livro: a pintura de si”,  afirma não existir em Montaigne a expressão dessa condição humana ideal e única. Ao refletir sobre esse aspecto, Birchal toma a investigação sobre a representação do eu como o ponto de partida para discutir a leitura que Auerbach faz da obra do francês. Para a autora, o que é válido na leitura de Montaigne é a experiência reflexiva como fundamental para a construção desse sujeito, experiência essa elaborada através da escrita e da  investigação sobre como o “eu”, a subjetividade, se comporta frente aos acontecimentos da vida.

Embora concorde com a autora sobre a importância da experiência reflexiva na obra de Montaigne, não compro de todo a sua proposição de falha na construção desse ideal. No tocante à construção desse ideal de sujeito, prefiro a contribuição que Costa Lima dá sobre esse aspecto, em “Pressupostos para o estudo do retrato”, um dos capitulos do livro Limites da Voz.

Não é que o ideal de um eu estável não exista, afirma o crítico.  Entretanto, a tensão existente entre a busca por esse ideal de ser (que não é abandonado de todo por Montaigne) e a percepção da impossibilidade da descrição desse ideal traz à tona as dúvidas que o próprio autor possui acerca de sua empreitada. É o próprio Montaigne que chega a admitir a falha desse ideal em um de seus ensaios – “Do arrependimento” (2, III). E, ao questionar a possibilidade de alcançar a unidade e a verdade de quem se é, questiona se, de fato, vale a pena deixar essas reflexões tateantes no papel.

Dessa forma, acredito encontrar uma possível solução para essa tensão, entre um eu estável, capturável pela escrita e o fracasso da empreitada,  no próprio método utilizado pelo autor. Ao avaliar a si mesmo frente às questões elaboradas por outros, e refletir sobre sua postura a partir de suas próprias experiências, Montaigne constrói sua identidade em relação ao que é proposto pelo outro, escrevendo-se para os leitores. Sendo assim, sua obra é validada por possibilitar que seus leitores estabeleçam (quem sabe) a mesma postura que o autor: a de analisar a si frente a experiência de outro. E, claro, essas questões aparecem no procedimento adotado pelo autor ao tatear esse “eu” em meio às incertezas e está diretamente ligada à forma do ensaio.