Arquivo do mês: setembro 2016

Conversando com… Emmanuel Mirdad

Entrevista concedida pelo Whatsapp a Neila Brasil

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Festas literárias, como a de Paraty e a de Cachoeira, desempenham importante papel na promoção dos escritores e de suas obras. Nessa entrevista, Emmanuel Mirdad, um dos organizadores da Flica, a Festa Literária de Cachoeira, cidade do Recôncavo Baiano, toca em muitas questões que já foram alvo de nosso interesse nos textos  publicados aqui no blog, como por exemplo a questão da profissionalização do autor, do papel do agente literário. Chama a atenção o fato de Mirdad afirmar que os convites privilegiam autores que já possuem uma carreira literária mais ou menos estabelecida ou que tenham jogo de cintura para circular no campo literário. Não deixa de ser curiosa, então, a formação de um círculo vicioso alimentado pelas festas: o autor tem de ter algum destaque na vida literária para participar da festa, que como evento da vida literária, vai lhe dar algum destaque.

Agradecemos a entrevista e a reflexão que as respostas de Mirdad nos proporcionam. Vamos a ela:

Leituras contemporâneas: Após 5 edições da Flica, quais são os desafios e as conquistas?

Emmanuel Mirdad: Acho que a nossa maior conquista foi ter vingado uma festa literária na Bahia que não tinha e ela ter tido esse sucesso, tanto de público como de repercussão no meio literário. Os autores já conhecem a Flica, o mercado já sabe que tem a Flica. A Flica já está calendarizada. Isso é muito importante porque às vezes os bons eventos surgem e não conseguem se manter, e a gente conseguiu, com o apoio dos patrocinadores, fazer esse evento por cinco edições, chegando agora na sexta edição. Acho que a maior conquista foi isso, ter conseguido fazer uma festa literária na Bahia, porque já se pedia por isso, e também, de ter trazido para Cachoeira mais uma oportunidade de ter um evento cultural de relevância. Como nós já tínhamos a Festa da Boa Morte, a Festa da Ajuda, o São João, então a gente chegou para somar ao escopo de eventos culturais, turísticos da cidade. E o desafio agora é crescer mais e mais, conseguir trazer grandes nomes internacionais para cá e se firmar como uma opção a Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, que é a festa literária mais importante do Brasil.

Leituras contemporâneas: Quais são os critérios para a seleção e participação dos escritores e poetas na Flica?

Emmanuel Mirdad: Bom, esses critérios são definidos pelo curador e os curadores variam durante o tempo. Esse ano e das vezes que eu participei da curadoria, os critérios que a gente utilizou foram a programação, conseguir equilibrar o número de autores nacionais, internacionais e locais, colocar os locais no mesmo espaço de dignidade que nós oferecemos para os nacionais. Ou seja, não é mesa baiana só com baiano. É baiano com nacional, baiano com internacional, para poder valorizar, não é? E a gente sempre teve muito sucesso com isso, o que os autores baianos tiraram de letra. Todos os autores… e geralmente para os autores nacionais, o critério é que seja um grande nome já reconhecido e que esteja lançando um livro no momento. O autor baiano, ele vai a partir dessa condição, de quem está aparecendo mais, quem está vendendo livro, quem está lançando livro, de quem já tem história, de quem já tem experiência em participar desse tipo de evento, quem é disposto a falar, quem fala bem, quem tem o que falar. Então são muitos critérios que dependem especificamente do momento do autor, naquele instante, por exemplo, a gente sempre prioriza trazer autores que estejam lançando livros neste ano ou que tenham acabado de lançar livros. E a gente visa equilibrar a escolha a partir do que já foi definido do autor nacional.

Leituras contemporâneas: Há espaço para novos talentos na Flica?

Emmanuel Mirdad: Sempre teve. Por exemplo, na primeira edição a gente teve um poeta que era menor de idade. É como eu falei na questão anterior, tudo depende dessas variáveis. Se esse novo talento lançou um livro que está sendo bem comentado, que está sendo bem vendido, que tem resenhas  boas por aí, que ele tenha uma aparição, então a gente… o autor, ele tem que existir para que venha fazer parte da programação. Aqueles autores de gaveta que lançam livro, que só os amigos conhecem, fica um pouco difícil. Então o novo talento, ele tem que aparecer para poder ir para a Flica também.

Leituras contemporâneas: Como é o contato com os autores, a negociação envolvendo o convite para participar da festa? A negociação é direta ou mediada pelos agentes literários dos autores?

Emmanuel Mirdad: Então…. varia. Tem autor que a gente só consegue falar com a rede literária, tem autor que a gente consegue falar por via das editoras, e a gente sempre busca falar diretamente com o autor. Quando não é possível, não tem jeito: a gente vai falar com o agente ou com a editora. É que às vezes, por exemplo, um autor famoso ou um autor caro nem tem conhecimento do que é o evento, o que está sendo proposto, porque o cachê não satisfez ao agente, ao empresário, ao produtor, enfim… sendo que ele teria outros ganhos, ganho de imagem e até mesmo ganho pessoal de vir a Cachoeira, conhecer a cidade que todos os autores que vêm se encantam.

Leituras contemporâneas: É possível afirmar que esse evento colabora com a profissionalização de escritores?

Emmanuel Mirdad: Bom, depende. Por exemplo, eu vejo um autor iniciante que está querendo escrever, está querendo ter contato com o meio. A gente proporciona isso, a gente proporciona o acesso ao autor, ele vai ouvir o autor falar, ele vai conhecer o autor, vai vivenciar a cidade; enfim, o lugar, o ambiente, isso tudo influência, mas eu acho que a profissionalização… Vamos pensar naquilo que eu já respondi: se o autor não fizer sua parte junto com a editora de pensar a carreira, de construir a carreira, fica difícil dele ir para a Flica. Então também pode ser que faça, o estimule a buscar a profissionalização, mas acredito que ela só exista mesmo a partir do esforço individual de cada um, da bagagem de leitura e dos cursos, etc. Porque a Flica não é um curso, é apenas um evento de amostragem do que está acontecendo de melhor na literatura.

Novas e velhas formas de narrar

Por Nivana Silva

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“Favela”, por Rodrigo Guimarães

No próximo mês de outubro, Ricardo Lísias lança pela editora Alfaguara seu mais novo livro, A vista particular e, mais uma vez, o autor aposta na ampla divulgação do trabalho nas redes sociais, aferindo a recepção de leitura de sua obra e dando novo espaço a algumas marcas pioneiras do seu estilo autoral. Para além de posts no facebook e no instagram sobre a pré-venda e o lançamento do livro, Lísias também divulgou, estrategicamente, os dois capítulos iniciais da narrativa em outros meios de comunicação: na Revista Piauí, na qual o paulistano atua como colaborador, temos o primeiro capítulo e parte do segundo. Já no Suplemento Pernambuco, encontramos a continuação do capítulo dois de A vista particular.

O leitor que puder ler as páginas iniciais da história antes do seu lançamento oficial, será ouvinte de uma narrativa, que se passa na cidade do Rio de Janeiro, cujo protagonista é um introspectivo artista plástico de trinta e cinco anos, que retrata em suas telas o urbano e a natureza carioca “sem deixar as fronteiras entre esses dois elementos muito claras” (LÍSIAS, 2016). Além de trazer detalhes sobre a temática e os traços dos quadros desse jovem pintor contemporâneo, temos algumas referências interessantes que se destacam no primeiro capítulo, como uma incipiente exposição do artista no Museu de Arte do Rio, no mesmo dia da conferência proferida pelo filósofo e crítico de arte francês Georges Didi-Huberman, e uma resenha do também crítico de arte e artista plástico Rodrigo Naves, com nota direta a uma matéria publicada no caderno cultural “Ilustríssima”, do jornal Folha de São Paulo em outubro de 2015.

Ademais do jogo sutil entre ficção e realidade, o que também chama atenção nas primeiras páginas de A vista Particular diz respeito à possibilidade de se pensar o contemporâneo a partir dele próprio. Após as descrições citadinas e cotidianas (sobretudo relacionadas ao personagem principal e à repercussão de seu trabalho) tomarem conta dos parágrafos iniciais do livro, há, no segundo capítulo, uma espécie de reviravolta, pois o protagonista, José de Arariboia, “é visto subindo a favela do Pavão-Pavãozinho. Ninguém sabe o que acontece por lá. Na volta, uma inesperada performance deixa as pessoas em delírio” (conforme o trecho da sinopse do livro). De uma personalidade naturalmente distraída e até mesmo distante, somos conduzidos à performática cena da espetacularização do sujeito, das câmeras, dos seguidores desconhecidos e dos vídeos que viralizam no YouTube em um curto espaço de tempo. Ao passar de um capítulo a outro, a sensação que impera é de descontinuidade, ou algo como uma suspensão em que emergem alguns questionamentos sobre a contemporaneidade e sobre a própria forma narrativa que se inscreve nesse novo romance de Lísias.

O desvelamento repentino do artista plástico, “que poderia ter sido uma catástrofe [e que] se transforma em sensação” (idem), ao que parece, sinaliza o ponto de partida para uma análise à exposição exacerbada da intimidade e, nesse sentido, há uma retomada, na obra de Lísias, de um comprometimento/crítica social que se delineava nos romances iniciais, como a posição quanto aos moradores de rua em Cobertor de estrelas (1999) e em Duas Praças (2005), e à competição entre executivos d’O Livro dos Mandarins (2009), para citar apenas alguns exemplos. Também encontramos em A vista particular – com foco narrativo em terceira pessoa e com um narrador onisciente nos dois primeiros capítulos – marcas biográficas sutilmente mencionadas de forma ficcional, o que também esteve impresso na consolidação do estilo (antes da fase autoficcional, se é que podemos falar assim) de Ricardo Lísias.

Dessa maneira, é possível ver, de um lado, a (re)inscrição  de uma assinatura acompanhando uma forma de narrar que marcou o estilo inaugural-experimental de Lísias e, do outro, uma nova (e já recorrente) estratégia narrativa associada à divulgação, à performance autoral e aos termômetros de recepção do trabalho por meio das mídias sociais, especialmente. Ressalto, no entanto, que não há uma delimitação precisa, ou claramente definida, entre essas novas/velhas formas (tal como o não limite de fronteiras entre o urbano e a natureza nas telas de Arariboia), mas uma mescla profícua que contribui, sobremaneira, para reafirmar o acolhimento do nome do autor pela cena contemporânea brasileira.

Booktubers: um espaço para a crítica de literatura?

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Crédito da imagem: http://tomgauld.com/

Por Larissa Nakamura

Nos últimos anos, saltou aos olhos a quantidade de revistas, cadernos, suplementos de jornais que dedicavam, total ou parcialmente, seu conteúdo ao mundo das letras e que tiveram suas publicações encerradas. Alguns exemplos mais conhecidos são o caso do Prosa & Verso (jornal O Globo), o Sabático (jornal O Estado de São Paulo – Estadão) e a revista Bravo! (que após ter encerrado definitivamente suas atividades por três anos, volta a ser lançada somente em versão digital). Os mais pessimistas bradavam que era o fim do jornalismo cultural e da crítica literária, outros apostavam que era uma crise ou período de reconfiguração. Talvez esse seja o momento ideal para entender os processos e alterações por quais passa a crítica se voltarmos nossa atenção para o universo cibernético.

Se a crítica encontra-se escassa, embora ainda presente, nos meios tradicionais de comunicação, onde podemos encontrá-la de modo que possa alcançar diversos públicos, cada um com suas especificidades e interesses? No cenário em que despontam os blogs e, atualmente, com cada vez mais canais dedicados à literatura, o YouTube, poderíamos apostar em um novo espaço de circulação de literatura? Para muitos, o site já é considerado a nova televisão. Programas de culinária, música, análise de filmes, aulas de línguas e jogos são algumas das possibilidades que o serviço nos oferece. E por que não o comentário sobre literatura?

Tomemos como exemplo uma das booktubers mais conhecidas,  Tatiana Feltrin dona do canal Tiny Little Things. Formada em Letras e professora de inglês, começou o canal falando de variedades, dedicando-se somente à literatura um pouco depois. Hoje, contabilizando mais de 200.000 assinantes no canal, os vídeos se dividem entre a literatura canônica e a comercial. Feltrin considera importante trazer para a discussão os dois universos sem que ambos sejam tratados de forma antagônica ou excessivamente hierarquizada, pois segundo a comentarista ambos possuem facetas diferenciadas, mas não menos relevantes para o mundo das letras.

O que é interessante, guardadas as devidas diferenças entre os canais existentes, é como lidam com o nicho de mercado específico com que se propõem trabalhar. Sobre tal quesito conta muito o como se comenta, o que pode garantir menos ou mais espectadores. O que diferenciaria, então, a crítica como disciplina formal do comentário sobre literatura na internet?

A meu ver, os que os booktubers fazem são bons comentários pessoais sobre livros, indicações atravessadas por falas mais dinâmicas e simplificadas, marcadas por um quê de expressionismo, deixando de lado os jargões mais técnicos, o que pode aproximá-las à antiga crítica de rodapé. No entanto, existem também aqueles que embora não possuam uma dicção propriamente acadêmica, baseiam seus comentários subjetivos em algumas noções de teoria da literatura, promovem e tencionam uma discussão sobre o livro escolhido, superando a mera postura opiniática.

Minha conclusão é que, a despeito de a crítica formal e o comentário na internet apresentarem alguns aspectos comuns, têm propostas diferentes, sem que haja perda de sua relevância para a comunidade leitora.

Talvez um dos maiores trunfos que o YouTube proporciona é a diminuição da sensação de distância entre o booktuber e o espectador, posto que o resenhista dificilmente assume a postura de um especialista quando compartilha sua opiniões com o público. Sendo assim, o leitor/espectador sente-se em uma “conversa” sobre o livro comentado em vídeo. O segundo trunfo, a meu ver, é a interatividade quase que imediata entre o resenhista e o espectador, que marca sua participação ativa na rede (muito frequentemente ocorrem votações e sugestões de temas e livros a serem discutidos, assim o booktuber cria suas pautas a partir do que o público deseja assistir). Um exemplo curioso que vale a pena ser citado são as playlists nas quais o youtuber reúne suas críticas de diversos livros indicados ao vestibular de diversas instituições de todo país. De fato, uma estratégia que visa a um público-alvo que se torna cativo.

Como último ponto, não podemos nos esquecer da relação estreita que os booktubers têm hoje com o mercado, considerando que uma parcela significativa deles é contratada por editoras grandes e pequenas para auxiliar no processo de marketing de obras recém-lançadas. Os critérios de escolha das casas editoriais são claros: variam de acordo com o número de assinantes do canal, sua faixa etária média, o estilo de crítica e tipo de literatura resenhada. Os booktubers também são assediados por escritores que publicam seus livros de forma independente e buscam a divulgação de suas obras.

As inovações promovidas pelas ferramentas da internet, como as utilizadas por booktubers, podem não ser indício da renovação de antigos moldes de conteúdo crítico, mas a criação de mais um espaço para a literatura é bem-vindo em um momento em que os canais tradicionais de circulação de conteúdo cultural estão em extinção.

Seduzidos pelo autor: Karl Ove Knausgård na FLIP

Por Fernanda Vasconcelos

Masculinidade, masturbação, mulheres são alguns dos assuntos que o autor norueguês Karl Ove Knausgård comentou na mesa da Feira de Literatura Internacional de Paraty neste ano. Um dos grandes destaques da feira, o autor da série Minha Luta, movimentou o campo literário brasileiro causando burburinho nos bastidores e frenesi em sua recepção. Cercado por câmeras, críticos e leitores-fãs, o autor “astro” mostrou ter presença de palco ao performar com sobriedade, jogo de cintura e domínio literário a discussão sobre sua vida e trabalho como escritor. E os fãs-leitores, que parecem aguardar seus livros como se espera o uso da próxima dose de droga (como comentou o mediador da conversa), aguardaram o autor com a mesma fissura.
O autor, que parece sair do livro e tornar-se palpável “em carne e osso” no palco (ao procurar manter o tom ensaístico e também discutir temas encontrados nos livros), provou que seu fôlego ultrapassa as mais de 3000 páginas escritas que compõem os seis livros da série autobiográfica Minha Luta: “Karl Ove Knausgård, fez o que dele se esperava nesta sexta-feira quando surgiu como superstar no palco: mostrou demais, ainda que em termos literários, e não literais”, comentou um resenhista.
Sobre sua relação com o palco, Knausgård foi questionado pelo mediador da conversa na Flip, Gúrria-Quintana: “você disse que era mais fácil falar sobre essas coisas [trivialidades da vida íntima do autor que aparecem no quarto livro] no palco. Você fala do seu livro, como se eu e você estivéssemos tomando um chopp” E Karl Ove respondeu: “Eu acho que a situação é como escrever, a única coisa é que não é tão criativo assim, mas você tem que ser totalmente livre, dizer o que quiser, besteiras e permitir isso também. Conseguir dizer algo substancial também, mas eu não sei, vergonha é um tema dos meus romances desde o início”.
Knausgård mostrou que sabe seduzir o público com comentários reveladores sobre sua vida íntima transformada em literatura (ou seria o contrário?), seu processo de criação e as consequências da publicação de uma escrita que revela muito de si e também dos outros já que o autor teve de enfrentar as reações da esposa, familiares e amigos que aparecem nos livros, chegando a ser processado. A presença do autor também foi utilizada para divulgar a publicação no Brasil do quarto livro da série Uma temporada no escuro pela Companhia das Letras. Retratando sua adolescência, Karl Ove evoca os pormenores e banalidades dessa fase da vida como se realizasse um sobrevoo sobre o passado. Em longos trechos, a dicção parece reelaborar o vivido e aprofunda-se em reflexões instigantes que fazem do eu um outro.
Talvez essa seja uma das razões, associada às revelações polêmicas e à sua atuação pública, que justifique a superlativa recepção a seu nome de autor no mundo literário contemporâneo.

O áudio da mesa que teve a participação do autor na Feira de Literatura Internacional de Paraty encontra-se no canal da FLIP no Youtube.

Dentro e fora da literatura

Por Luciene Azevedo

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Waltercio Caldas- “A emoção estética”

 

É difícil se aproximar da crítica sobre literatura contemporânea e não se deparar com a tese lançada no texto-manifesto de Josefina Ludmer de que a produção atual deve ser reconhecida como pós-autônoma. Para a argentina, as condições que tornaram possível e firmaram a ideia de arte na modernidade demonstram um notável esmaecimento de sua presença nas práticas artísticas contemporâneas. A começar pela própria distinção entre ficção e realidade que, segundo Ludmer, estão amalgamadas em uma forma indicativa do êxodo da literatura, fazendo-a experimentar “uma drástica operação de esvaziamento”. A ‘realidadeficção’ a que Ludmer alude marcaria o fim da era da autonomia literária e arrastaria de roldão as noções de campo literário, autoria e obra literária.

Em uma das entradas de seu ensaio-diário Aqui, América Latina publicado em 2010, Ludmer recorda uma conversa mantida com a poeta Tamara Kamenszain sobre a produção poética argentina contemporânea. Kamenszain mostra-se surpresa com sua própria falta de recursos para ler a poesia de seus contemporâneos e atribui a isso uma maneira toda particular que o tratamento do tempo presente ganha nos poemas que anda lendo. Ao comentar especificamente um poema de Roberta Iannamico, revela ficar estupefata porque diz não reconhecer senhas de entrada para a leitura do poema que, por sua vez, parece prescindir de determinadas leis de invenção para “trabalhar com um presente cru, sem concessões nem mediações”. Essa descrição dá a Ludmer a impressão de que tal poesia é ‘antiliterária’ e, embora Kamenszain concorde que muitos leitores de poesia não a reconheceriam como tal, sugere que talvez o poema de Iannamico não possa ser considerado poético exatamente porque mantém um distanciamento em relação ao que damos por certo o que seria o literário poético, pois não há ali nenhuma ideia ou metáfora, não se pode encontrar nele nada “profundo”, ao contrário “fica apenas o banal, as nimiedades do presente…a experiência…mas não uma experiência profunda, importante”. A descrição de Kamenszain parece rejeitar a repulsa ao poema ao mesmo tempo em que demonstra certo encantamento desconfiado dessa nova condição. A esse efeito ambíguo Ludmer responde que é possível pensar a produção contemporânea como um “gesto de saída da literatura e de estar ao mesmo tempo dentro dela, um gesto de fora-dentro”

A ideia central dessa literatura não literária é, portanto, a inespecificidade, como já apontou outra argentina, Florencia Garramuño. Dissolvendo-se as condições que delineavam para a arte moderna sua autonomia, a arte contemporânea inscreve-se em uma inespecificidade que complica as antigas certezas que estabeleciam limites entre a ficção e a realidade, a vida e a arte, o autor e o narrador, a arte e a não-arte.

Isso torna mais fácil a recepção do leitor diante de obras como Delegado Tobias de Ricardo Lísias, em que narrador e performance autoral parecem indistintas, ou a hexalogia do norueguês Karl Ove Knausgaard, cuja banalidade da memória do narrador que tem o próprio nome do autor descreve com riqueza de detalhes a textura de um cereal matinal ou a marca dos produtos de limpeza dos quais o personagem-autor se vale para realizar uma faxina.

É claro que há sempre a opção por identificar nossa época com o final dos tempos e reconhecer a idiotia para classificar toda a arte contemporânea. A ambivalência sempre pode perder para o desdém: isso é literatura? Não seria possível, como sugere Ludmer, pensar que estamos vivendo a era de um literário não literário, uma literatura que está saindo de si, na direção de novas formas de criação? Se a resposta for sim, poderíamos, sem culpa, nos divertir e renovar nossas chaves de leitura, para aceitar a surpresa e a estupefação provocada por essas novas narrativas e acolher o estranhamento de sua inespecificidade.

A meu ver, apenas essa segunda opção torna possível interpretar o que Ludmer chama de “drástica operação de esvaziamento”, sem apelar para os diagnósticos apocalípticos que preveem (mais uma vez) o fim do literário. Afinal, a inespecificidade pode ser o indício de um rearranjo das formas de composição narrativa.

Nesse sentido, a literatura contemporânea também lança ao leitor um convite para constituir uma comunidade disposta a conceder a inversão dos clichês mais comuns sobre o presente, lançando seu olhar em uma nova direção, pois embora tudo pareça ruína, pode também ser construção.