Arquivo da categoria: HIV

HIV/aids: os desafios na abordagem da epidemia hoje

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Pepe Espaliú (1955–1993), 1992, Carrying (performance)

O ano de 2023 marca as quatro décadas da confirmação oficial do primeiro caso de HIV/aids no Brasil. Em 2023, a novela “Pela noite”, que faz parte do livro Triângulo das águas, escrito por Caio Fernando Abreu, também faz quarenta anos da sua publicação. Se em 1983 a crise da aids ainda se configurava como um medo mais ou menos distante, como indicado pelos personagens do texto ficcional do autor gaúcho, de lá para cá o que se viu foi a agudização da crise de saúde pública, muitas mortes, a associação de grupos sociais marginalizados ao vírus e à doença, entre outros tantos desdobramentos. Mas também acompanhamos a consolidação de formas mais eficazes de tratamento, a ampliação das formas de proteção, além da camisinha, e de controle da infecção, a descoberta de que o vírus pode ficar indetectável e, portanto, o portador não mais o transmite. O que parece ter mudado muito pouco, porém, é o estigma que acompanha os sujeitos positivos.

Vários desafios se colocam em relação ao manejo do HIV e da aids. Do ponto de vista biomédico, talvez a cura (o que significaria a erradicação do vírus do organismo infectado) seja o principal objetivo, ainda que não o único, a ser buscado. Já no campo social, o caráter educativo em relação à doença e ao vírus deve ampliar a circulação de informações seguras sobre as formas de prevenção e tratamento e se concentrar em desfazer o estigma associado aos sujeitos positivos, quase sempre homens, segundo o imaginário social.

A produção literária também enfrenta desafios. O maior deles talvez esteja relacionado à construção de imagens sobre o vírus e a doença ainda amparadas no contexto de emergência da epidemia, ou seja, nos primeiros anos da década de 1980. Assim, ainda é comum a representação que aproxima HIV/aids e morte, relacionando também doença e vírus a grupos sociais já marginalizados, principalmente àqueles que fazem parte da comunidade LGBTQIAPN+. Os sujeitos heterossexuais, sobretudo os homens, ao contrário do que mostram as estatísticas, não aparecem representados na condição de doentes ou portadores do vírus, no entanto, segundo o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, entre os anos de 1994 e 1998, eles lideraram com folga os números de novas infecções.

Considerando ainda informações divulgadas em 2022 no relatório da UNAIDS, um programa conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS, as mulheres correspondem a 53% das pessoas vivendo com HIV. No entanto, a presença de personagens mulheres que têm a doença ou o vírus em narrativas e outras criações estéticas contemporâneas ainda é muito inferior ao número de sujeitos inseridos na homocultura, que aparecem doentes ou infectados em romances e contos.

Por fim, mesmo nas narrativas produzidas por homens gays ou outros grupos dentro da comunidade LGBTQIANP+, os impactos psicossociais e as imagens oriundas quando da emergência da epidemia (morte, sofrimento, medo da transmissão e/ou da infecção) ainda são muito presentes e permanecem como o modelo de representação para a quase totalidade dos personagens. A representação reincidente em muitos textos literários de que a infecção por HIV é um destino inescapável dos sujeitos homossexuais não se coaduna com o avanço científico na área, nem parece levar em conta as diferentes maneiras de prevenção que vão da camisinha à PEP. O que pode ser visto como uma prova de que há muitas questões ainda a serem superadas.

“Isso não é doença de criança”

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Michael Golden, Untitled collage, 2016

“Para mim, aids era uma doença de prostitutas, gays e viciados. Não de uma mãe, não de minha filha, não de um bebê.”

Durante as investigações feitas para a construção da tese que busco desenvolver no curso de doutorado, tenho observado o quanto a produção narrativa sobre a temática do HIV e da aids é pouco diversa no conjunto de suas abordagens. Ainda há uma recorrência na representação do tema associado a sujeitos e grupos marginalizados, sobretudo aos homossexuais.

Diante de mudanças no perfil epidemiológico das pessoas infectadas pelo HIV, ainda é comum, mesmo em produções mais recentes, um conjunto de representações que recorre a imagens originadas durante a emergência da epidemia e cristalizadas nas suas duas primeiras décadas.

Assim, a citação que dá título a este texto poderia ser pensada, fora do seu contexto original, como uma afirmação que atesta o que foi dito até aqui. Porém, ela apresenta camadas que precisam ser melhor analisadas, visto que está em uma das únicas narrativas em que há a presença, e o protagonismo, de uma criança vivendo com HIV, o livro Pequeno segredo, de Heloisa Schurmann, lançado no ano de 2012.

O relato sobre a origem e a história de Kat Schurmann, uma criança com HIV adotada pela família de velejadores antes de completar três anos, é fruto dos acontecimentos vividos pelos Schurmann nos mais de dez anos em que conviveram com a jovem, que era considerada por um dos médicos como uma “criança terminal” desde de os primeiros anos de vida.

É interessante pensar como a narrativa de Pequeno segredo, mesmo apontando para a possibilidade de construção de uma nova forma de representação para as produções literárias sobre a temática do HIV e da aids, insiste ainda na oposição entre o que é “mostrado” e o que é “dito” pela narradora. Se a aids (diagnóstico atribuído à jovem) “não é doença de criança”, como é possível então narrar sobre Kat e sua experiência com a aids? Por que a produção ficcional tem ainda utilizado imagens tão pouco diversas se narrativas (auto)biográficas, por exemplo, caso de Pequeno segredo, têm avançado nas formas de representar?

O caminho para responder essas indagações passa pela ideia já apresentada aqui e que remete ao fato de que a representação literária sobre o tema, assim como a social, é pouco diversa, o que dificulta criar imagens diferentes das criadas até então para representar as questões referentes ao vírus e à doença. Assim, mesmo uma produção que apresenta uma forma diversa de abordar o tema, ainda continua a dialogar com imagens ultrapassadas, pois parece que elas fazem mais sentido que quaisquer outras.

Cinema, literatura e HIV/aids

 Ramon Amorim

Créditos da imagem: Joe De Hoyos, Spitting Image, 1987 

Seja em séries, longas e curtas-metragens, documentais ou ficcionais, maneiras diversas de representar as questões relativas ao HIV/aids estão presentes nas telas. É possível localizar obras, a partir do ano de 1985, que já discutem a epidemia, como AIDS: Aconteceu comigo (1985), Filadélfia (1993), As horas (2002), Angels in America (2003), Cazuza – O tempo não para (2004) The Normal Heart (2014), Pose (2018), entre tantas outras.

Várias dessas realizações audiovisuais estabelecem uma relação direta com a literatura. Muitas são adaptações de textos literários, enquanto outras levam para a tela a vida de escritores ou personagens importantes das letras. Também há casos em que essa aproximação se dá de maneira indireta, na forma de alusões ao universo da literatura.

Duas obras recentes do cinema brasileiro chamam a atenção pela maneira como dialogam com a literatura: o documentário Carta para além dos muros (2019) e o drama em longa-metragem Os primeiros soldados (2022). No filme de 2019, dirigido e produzido por André Canto, a referência mais evidente diz respeito ao título, baseado no conjunto de crônicas que o escritor Caio Fernando Abreu publicou entre os meses de agosto e setembro de 1994 no jornal O Estado de S. Paulo. Além disso, um dos entrevistados do documentário é um homem identificado com o nome fictício de Caio, em referência ao autor gaúcho. Há também neste filme depoimentos de autores fundamentais à discussão sobre HIV/aids, como João Silvério Trevisan, Drauzio Varella, Jean-Claude Bernardet, entre outros.

Já em relação ao longa-metragem Os primeiros soldados, dirigido e escrito por Rodrigo de Oliveira, as referências ao universo literário não são tão evidentes quanto no  documentário de Canto. Aqui a aproximação entre cinema e literatura é construída a partir de exercício de especulações e aproximações. A começar pelo momento em que se passa a narrativa, o ano de 1983. Há aí uma “coincidência’, pois é o mesmo em que Caio Fernando Abreu lança a novela Pela noite, o primeiro texto literário a abordar a temática do HIV/aids.

É possível ainda observar formas e procedimentos comuns à literatura sobre HIV/aids no longa dirigido por Rodrigo de Oliveira. Narrar a si, de maneira autoficcional, ou de modo autobiográfico, como muitos escritores fizeram, principalmente nos primeiros anos da emergência da epidemia, é uma dessas estratégias de que o filme se vale.

Por fim, é preciso chamar a atenção ainda para o fato de que não se nomeia o vírus ou a doença, procedimento também comum nas produções literárias sobre o tema. Em Os primeiros soldados, embora os personagens com HIV façam registros minuciosos sobre sintomas, remédios, efeitos adversos, associados ao vírus e à doença, não há qualquer designação explícita ao HIV/aids, procedimento que está presente também em grande parte da obra de Caio Fernando Abreu e Bernardo Carvalho, por exemplo. 

Embora minha pesquisa não tenha como objetivo realizar um mapeamento exaustivo sobre as aproximações possíveis entre as produções literárias e cinematográficas que abordam a temática do HIV/aids, não deixa de ser curioso observar como em ambos os circuitos circulam representações semelhantes do vírus e da doença .

A recorrência de metáforas bélicas nas produções narrativas sobre HIV/aids

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Peter Juhar, Self-Portrait Jumping (1), 1974.

Susan Sontag, no livro-ensaio AIDS e suas metáforas, em dado momento, discute sobre uma das principais formas de abordar a temática do HIV/aids: o uso de metáforas bélicas para se referir ao vírus e à doença. A ensaísta fala no livro sobre como grande parte dos discursos, principalmente aqueles provenientes do campo biomédico, empreendeu uma espécie de bellum contra morbum, guerra à doença, para formular estratégias e ações que tivessem como objetivo lidar com a epidemia emergente no final do Século XX.

A estratégia de utilizar vocabulário e ideias relativas ao universo bélico para falar sobre doenças parece ter se consolidado nos contextos de pré e pós-guerra do início do Século XX, durante as epidemias de sífilis e tuberculose, e a partir daí passou a ser a tônica da maioria das campanhas de saúde pública que lidavam com crises sanitárias. Validadas pelo campo biomédico, as metáforas bélicas se espalharam para outros grupos sociais e acabaram por atingir toda a sociedade. Assim, torna-se comum encontrar nos mais diversos espaços sociais discursos que remetem à ideia de guerra à doença.

Se, nos diversos discursos, essa forma de falar sobre HIV/aids é comum, também na produção literária brasileira essa espécie de metaforização da epidemia é usual e recorrente. Romances como Amarga herança de Leo, de Isabel Vieira, ou ainda, Pequeno segredo, de Heloisa Schurmann, escritos no final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, respectivamente, ainda trazem construções que indicam que a infecção por HIV representa uma sentença de morte, uma batalha a se travar contra o vírus, assim, como aquelas explicações que indicam que o sistema imunológico humano seria uma espécie de exército que protege o corpo de potenciais inimigos, as doenças. Não se pode perder de vista que essas construções permeavam o imaginário sobre a epidemia no início de sua emergência e persistiram por muito tempo, principalmente, nas campanhas de saúde pública voltadas ao público jovem.

No romance de Guido Arosa, O complexo melancólico (2019), diferentemente do que a maioria das outras obras apresenta, há um conflito armado em curso na narrativa. Um dos inimigos desta batalha é o próprio sujeito homossexual, aquele que “o gozo, que dura poucos segundo, causa uma Hiroshima”, como afirma um dos personagens. Perseguido pelo poder instaurado, esse sujeito é condenado à morte “pela doença” ou “pelo Estado”. Nesse aspecto, pode parecer que a obra de Arosa se aproxima de outras narrativas sobre o tema, porém é preciso considerar que essa condenação atribuída é ao corpo homossexual que, independente da presença do HIV/aids, torna-se alvo predominante tanto da guerra simbólica, quanto da violência física fomentada pelo simbolismo bélico.

Se “a guerra é definida como uma emergência na qual nenhum sacrifício é considerado excessivo”, como aponta Sontag, a “guerra à aids” justificaria, inclusive, a perseguição aos sujeitos homossexuais, apontados quase sempre como culpados pela epidemia. Por isso, não é incomum nos discursos e nas produções narrativas, que o foco do esforço bélico esteja mais no corpo desses sujeitos e menos no vírus. No entanto, em relação aos outros grupos sociais, o combate travado é sempre contra o vírus apenas, o que reforça a ideia de que o inimigo desta guerra não é apenas o HIV mas toda uma coletividade que vem sendo atacada desde sempre.

“Ele não vale o risco”: a abordagem do relacionamento sorodiscordante no romance Fake, de Felipe Barenco

Ramon Amorim

Créditos da imagem: David Worjnarowicz, Sem título (série homens vendados 1), 1982

O romance Fake (2014), de Felipe Barenco, narra a transição para a vida adulta do personagem Téo e aborda sua entrada na faculdade, a relação com a família e o conturbado namoro com Davi, que se descobre vivendo com HIV pouco depois de os dois se conhecerem. Tendo o Rio de Janeiro como cenário, a narrativa aborda questões acerca do universo de jovens adultos que trafegam por universidades, shopping centers e bairros de classe média da capital fluminense.

Movida pelo interesse em investigar a temática do HIV/aids, uma das chaves de leitura desta narrativa passa pela discussão sobre relacionamentos sorodiscordantes (ou sorodiferentes), tendo em vista que é uma questão central na obra, assim como representa grande parte da hesitação do protagonista e dos seus amigos em relação ao namoro recente, tensionado pelo estado sorológico de Davi. Visto como potencialmente perigosa, a aproximação entre os dois personagens é considerada como um relacionamento de risco para Téo, que possui pouca experiência sexual e tem a sorologia negativa para HIV.

A questão do “relacionamento de risco” atravessa toda a narrativa e sua presença pode ser vista, entre outras formas, nos recorrentes conselhos dos amigos do protagonista sobre o perigo que o namoro representa para a saúde dele. O argumento, quase sempre, é construído sobre a ideia de que manter um relacionamento com alguém HIV positivo se configuraria como uma “prova de amor” e somente funcionaria se houvesse “amor de verdade”. Nesse sentido, a manutenção do namoro significa uma ameaça constante, desnecessária, sobretudo porque “O Davi não vale o risco”, como afirma um personagem.

Por essa ótica, manter um relacionamento com Davi, considerando sua sorologia, exigiria mais esforço e mais amor (o “verdadeiro”) do que em uma relação com outra pessoa, negativa para HIV. Isso leva a pensar em como os sujeitos “posithivos” são construídos socialmente como aqueles não merecedores de afeto. Enquanto isso, o sujeito “negativo” é visto como o que por amar muito consegue, com alguma dose de altruísmo, superar a presença do vírus para manter o vínculo afetivo, ou seja, um ser superior em relação a seus pares, como Téo parece se ver, apesar do seu discurso dizer algo diferente disso.

O problema desse tipo de construção é que ela coloca o sujeito com HIV na qualidade de inferior em relação aos que não convivem com o vírus, o que pode ser lido como uma forma de sorofobia. Essa prática não é exclusiva dos personagens e do narrador do romance de Barenco, ela surge de forma recorrente em diversas narrativas brasileiras. Pode-se dizer que esse tipo de representação é uma constante na literatura nacional, causando surpresa apenas quando não aparece nas produções literárias.

Essa face da sorofobia, que atravessa o romance (sendo produzida inclusive pelo protagonista e seus amigos, entre eles uma jovem médica) e quase toda a produção nacional, aparece de forma mais ou menos articulada a outras. Isso faz pensar em como a representação do HIV/aids ainda recorre aos mesmos mecanismos e construções presentes desde as primeiras narrativas sobre o tema, escritas há quase quatro décadas. O que, talvez, o romance de Felipe Barenco traga de mais original seja o fato de que o personagem com HIV acaba se revelando como o antagonista da obra. Na falta de outras imagens originais, essa seja a que mais acrescenta ao imaginário produzido sobre a temática.

“O homossexual como perseguido pela positividade do HIV mesmo quando se encontra negativado”

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Alejandro Kuropatwa, Untitled, Cóctel series (1996)

A associação entre a epidemia emergente na década de 1980 e os homens gays foi reforçada por diversos setores da sociedade, inclusive por profissionais do campo biomédico (e ainda está presente hoje, infelizmente). O avanço da epidemia fora dos grupos considerados de “risco” fez com que essa associação perdesse força e a noção de comportamento de risco se tornasse o fator preponderante para refletir sobre a questão do HIV/aids.

Ainda assim, homens gays têm sido o principal alvo das representações artísticas quando a temática do HIV/aids é abordada. Mesmo diante de um perfil epidemiológico diverso, literatura, cinema e mídia ainda mantêm, mesmo que de forma furtiva, essa associação entre a epidemia e determinado grupo social. Parte do interesse de minha pesquisa está ligado à exploração deste cenário e a uma situação narrativa recorrente: a ideia da ameaça da infecção por HIV como uma espécie de sombra que paira sobre os sujeitos homossexuais.

Em Você nunca fez nada errado, um relato autobiográfico publicado em 2018, Felipe Cruz refere-se à forma como sua família encararia sua sorologia positiva para HIV como “uma tragédia: a confirmação do destino”. Segundo o narrador, há dois motivos para isso. O primeiro está na identificação física e comportamental do protagonista com um tio morto ainda jovem em decorrência de doenças oportunistas associadas à aids. O outro motivo estaria na orientação sexual, que representaria condição prévia para a confirmação da presença do vírus, “o encontro inevitável com o destino”. A referência à tragédia clássica, pensada pelos primeiros filósofos gregos, acentua ainda a ideia do inescapável.

A frase que dá título a este texto é retirada do romance O complexo melancólico publicado em 2019 pelo escritor carioca Guido Arosa. A sentença expressa uma preocupação recorrente de muitos sujeitos situados na(s) experiência(s) da homossexualidade: a iminência do diagnóstico positivo para HIV. No romance de Guido Arosa, a ideia da inevitabilidade do contágio aparece em diversos momentos da narrativa fragmentada. Em um deles, personagens homossexuais, encarcerados devido a sua orientação sexual, ouvem que “serão mortos pela doença”. Em outro trecho, fica evidente a associação entre os homens gays e a epidemia: “Antes de dizer à minha mãe que tive sífilis, disse apenas que estava ‘doente’ e ela, naquele momento, me olhou como se eu tivesse Aids e sua reação tinha a certeza da minha morte”.

Ainda na narrativa de Arosa, é possível reconhecer, além da representação da relação entre homossexualidade masculina e HIV/aids, também esse “medo perpétuo” do contágio pelo vírus sobre o qual argumentei acima: “Enquanto homossexual, minha fantasia neurótica é morrer vítima do HIV”. Na narrativa, esse medo não tem qualquer elemento que o justifique, exceto a orientação sexual do narrador.

O que mais chama a atenção é o fato de que cada vez mais podemos acompanhar notícias que indicam a mudança evidente do perfil epidemiológico, porém isso não parece atingir ainda as diferentes representações do HIV/aids, nem as sociais, nem mesmo as artísticas. Assim, assumo como pressuposto de pesquisa que é preciso especular o quanto essa representação social do HIV/aids e sua associação com os homens homossexuais ajuda a construir uma representação literária ainda limitada em suas abordagens. Mesmo as narrativas que avançam na forma de dizer, ainda têm dito o mesmo, têm explorado os mesmos conteúdos. As duas narrativas comentadas brevemente neste post são exemplares neste aspecto. Elas avançam na forma como abordam a questão do HIV/aids, mas ainda exprimem um conjunto predominante de ideias sociais recorrentes sobre a questão.

Dinâmicas de silenciamento em torno do HIV/aids em Ricardo e Vânia, de Chico Felitti

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Joan Ponç, sem título nº 26, 1953.

Lançado no ano de 2019 pela editora Todavia, Ricardo e Vânia é um livro-reportagem escrito pelo jornalista Chico Felitti e catalogado como uma biografia. Nascido a partir dos desdobramentos de uma matéria do mesmo autor publicada no site BuzzFeed, o perfil biográfico de Ricardo Corrêa da Silva (conhecido no centro da cidade de São Paulo por Fofão da Augusta) é também uma história de amor (como indica o subtítulo da obra). Ricardo e Vânia mantiveram durante anos um relacionamento que se desfez depois de muitas crises de Ricardo, dos problemas relacionados ao esquema de aplicação de silicone líquido e do fechamento do salão de beleza do qual eram donos.

Vivendo na cidade de Araraquara, interior do estado de São Paulo, Ricardo e Vânia possuíam um lucrativo negócio na área de estética até a emergência da epidemia de HIV/aids, no início da década de 80. Vânia, em entrevista para Felitti, afirma que as pessoas passaram a ter medo do casal, o que piorou a condição mental de Ricardo e causou a diminuição drástica do número de clientes que  atendiam no salão.

No relato de Felitti, é interessante observar como há diferentes dinâmicas de silenciamento sobre a questão do HIV/aids, tema importante para a história que conta. A principal delas diz respeito à solicitação, por parte de alguns entrevistados, de não falar sobre o assunto ou mesmo de retirar da narrativa qualquer indicativo que possa ser entendido como referência à questão. Esse é o pedido que Carlos, conhecido como Gugu, outra figura conhecida do centro da cidade de São Paulo e amigo de Ricardo, faz ao saber que na matéria publicada no site há um trecho em que está escrito que ele “tem uma doença incurável”. A interferência do entrevistado acaba por ser registrada no livro e o autor indica que a informação seria suprimida da versão final por não ser essencial para “entender um pouco sobre Carlos”.

Outra forma de silenciamento está na recusa em falar sobre o assunto. O próprio Carlos se mostra incomodado e não quer discutir sobre a doença citada por Felitti. Também Vânia evita encarar o tema de forma direta e busca fazer declarações mais genéricas sobre o período em que a epidemia assombrou sua estada no interior paulista. Quando ela cita a aids, como “causa mortis” de uma amiga, é o autor que não indica a quem se refere.

Por último é preciso ainda apontar a não nomeação como outra dinâmica do silenciamento em torno do HIV/aids. É perceptível como alguns dos entrevistados, assim como o próprio jornalista (vide a forma como indica a doença de Carlos), buscam desviar de referências diretas ao tema. Na maioria das vezes em que o termo “aids” aparece no relato é através do depoimento de Vicky Marroni, uma conterrânea de Ricardo. 

É interessante notar que assim como em narrativas ficcionais, o silenciamento sobre a questão aqui discutida também aparece no relato jornalístico, calcado em uma suposta verdade dos fatos. Isso aponta para o estigma ainda existente sobre as pessoas vivendo com HIV/aids, mesmo depois de quarenta anos da emergência da epidemia e das mudanças de paradigma relacionadas a ela.

As dinâmicas de silenciamento agem de forma similar nas duas formas narrativas, se na ficção há, talvez, o interesse de representar esteticamente esse estigma, no texto não ficcional aqui discutido o que se vê é efetivamente como o estigma ainda tem força e exerce papel preponderante na representação social do HIV/aids.

Diários da AIDS (e do HIV)

Ramom Amorim

Créditos da imagem: Robert Mapplethorpe, Watermelon with Knife, 1985.

Apesar de não ser meu interesse imediato de pesquisa e de não dominar o vasto referencial teórico que trata sobre o assunto, tem me interessado perceber a presença de narrativas (auto)ficcionais em formato de diários, principalmente quando estas tematizam a questão do HIV/AIDS na literatura brasileira. Já falei aqui sobre a produção de Gabriel de Souza Abreu (pseudônimo de Salvador Correa), autor de O segundo armário: diário de um jovem soropositivo (2014). Porém, além dessa narrativa, é preciso destacar ainda Depois daquela viagem (2005), de Valéria Piassa Polizzi; Uma vida positiva (2012), de Rafael Bolacha; e A doença, uma experiência (1996), de Jean-Claude Bernardet, mesmo essa última se assumindo como romance (em forma de carta), apesar de uma estrutura interna que pode ser lida como diário.

Unidas pela mesma temática, as obras chamam a atenção pela diversidade em relação às trajetórias autorais. Na sua maioria, os autores se lançam pela primeira vez na escrita de um livro e não têm sequer qualquer experiência com uma produção escrita de maior fôlego. Por outro lado, mesmo depois de 24 anos de lançamento de Depois daquela viagem, Valéria Polizzi continua como a única autora a lançar um livro de relevo sobre a temática do HIV/AIDS, assim como Jean-Claude Bernardet cuja obra ainda é referência para se pensar o tema em relação a pessoas na terceira idade.

Como disse, mesmo que algumas narrativas possam não assumir o gênero diário, é possível identificar nelas as marcas desse gênero autobiográfico: a simplicidade, a liberdade na forma de expressar, a informalidade, o caráter confessional. Para Philippe Lejeune, principal referência no estudo das produções autobiográficas, um diário é formado basicamente, além das características indicadas acima, por um texto com indicativo de data, que registra o que a pessoa que escreve está fazendo, sentindo e/ou pensando. 

Se a produção ficcional sobre HIV/AIDS não oferece tanta diversidade quanto se deseja e espera da exploração do tema, o investimento em uma dicção autobiográfica por parte de alguns autores pode ser uma forma de observar o tratamento pessoal, quase íntimo, sem ser confessional, de expor-se por escrito de uma maneira muito próxima a anotações em um diário. 

Sobre armários e soropositividade

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Keith Haring, sem título, 1983.

O livro O segundo armário: diário de um jovem soropositivo, de Gabriel de Souza Abreu (pseudônimo de Salvador Correa), lançado na versão e-book no ano de 2014 e na versão impressa em 2016, busca se apresentar como uma espécie de diário dos primeiros anos após a descoberta da sorologia positiva para HIV do autor. A coletânea dos textos que formam o livro foi extraída do blog criado e mantido por Abreu depois da confirmação da sua sorologia positiva. Os relatos datam de abril de 2011 a dezembro de 2013 e falam sobre as questões médicas, emocionais, profissionais e familiares vivenciadas pelo autor durante esse período. Além disso, a discussão sobre a revelação de seu estado sorológico ganha protagonismo na narrativa.

Considerado como uma produção autobiográfica, pois a obra cumpre o estabelecido no “pacto autobiográfico”, o livro de Gabriel de Souza Abreu aposta em relatos dispersos (apesar de seguirem uma ordem cronológica) a fim de construir uma narrativa mais ou menos uniforme dos primeiros anos da sua convivência com o HIV. Por se tratar de produção feita originalmente para funcionar como um diário on-line, o conjunto de textos apresenta pouca profundidade e reflete alguns dos preconceitos que o autor possuía a respeito da comunidade LGBTQIA+ e das pessoas que vivem com HIV. Esses preconceitos podem ser vistos, por exemplo, quando o narrador associa a possível descoberta da infecção pelo vírus como uma espécie de castigo pelo comportamento sexual, dado que ser “não reagente” indica que não há “nenhuma penitência a ser paga” (p. 12). Além disso, é recorrente o medo do autor de ter sua imagem associada à de um sujeito soropositivo: “não seria identificado como portador de HIV (esse é, agora, meu maior medo…)”.

O título escolhido para o livro, apesar de assertivo, retoma algumas ideias já superadas a respeito da vida com HIV. Estabelecer a sorologia positiva como uma espécie de armário, é o principal problema da obra, principalmente quando o autor afirma que “o ‘segundo armário’ é aquele para onde são obrigados a entrar os jovens gays quando descobrem que são portadores de HIV”.

Essa posição é duplamente problemática, por fazer uma associação apressada entre os “jovens gays” e o HIV (mesmo que em outros momentos critique essa associação), assim como por inferir que a homossexualidade em si aprisiona sujeitos em um “[primeiro] armário”. O autor parece não pressupor que há sujeitos gays (ou LGBTQIA+) que nunca estiveram em “armários” e que podem viver sua orientação sexual de forma pública, sem a esconder de quem quer que seja. Abreu não conseguiu apontar para uma experiência com HIV que não fosse envolta em segredos, em silêncios.

Essas problemáticas presentes na narrativa apontam para uma dificuldade vivida por muitas pessoas quando descobrem que têm diagnóstico positivo para HIV. Mesmo as mais informadas, escolarizadas e independentes financeiramente ainda sofrem com o medo do estigma que a soropositividade pode acarretar. Esse receio está relacionado ainda a uma crença de que o HIV leva automaticamente à AIDS e a doença, à morte precoce. É nessa relação direta entre vírus e doença que o autor acha que sua família vai se prender caso descubra sua condição sorológica.

Ao narrar suas experiências, crenças e limites no enfrentamento de sua condição sorológica, Abreu cede a estigmas sociais e mantém muitos preconceitos relacionados ao vírus e à doença, perdendo uma oportunidade de problematizar essas formas de representação estereotipada. Isto talvez indique que vale a pena explorar a obra para perguntar o que ela “representa” no universo de produções sobre o tema.

Pandemia, epidemias e produção discursiva

Ramon Amorim

Créditos da imagem: © REUTERS/Borut Zivulovic

Diante de uma pandemia, podemos perceber que alguns elementos presentes em outras epidemias que assolaram o mundo se repetem. Do ponto de vista da linguagem, podemos ver que determinados discursos e comportamentos são reiterados sempre que uma doença se espalha de forma irrefreada.  Considerando a polarização política que o mundo observa, eles tendem a ficar mais latentes e agressivos, principalmente se considerarmos as redes sociais, esse universo quase ilimitado de produção discursiva.

O primeiro desses elementos é a epidemia discursiva* que corre em paralelo à doença e diz respeito à produção discursiva que aparece como reação a um problema sanitário emergente. Para se ter uma ideia do poder de repercussão, principalmente nesse universo digital social no qual vivemos, ao pesquisar o termo “coronavírus” no principal site de busca, o Google, são encontrados quase 2 bilhões e meio de resultados. Se a mesma experiência for feita utilizando termos como “AIDS”, “gripe” ou “dengue”, alcançamos algo próximo a 1 bilhão de resultados.

Essa experiência nos dá margem para comprovar a existência de uma epidemia discursiva sobre coronavírus, tal qual como houve em relação a HIV/AIDS no início da década de 1980. O que difere as duas é que a primeira tem na cultura digital sua principal alavanca de discussão, o que não ocorreu com a segunda, que teve nas mídias “analógicas” seu principal meio de difusão. Esses números sugerem ainda que a produção discursiva sobre a atual pandemia cresce junto à polarização política, visto que os principais líderes mundiais a utilizam para capitalizar atenção midiática, principalmente os que relativizam sua gravidade, buscando assim construir narrativas alternativas às mais ponderadas e previsíveis.

O outro elemento que destaco faz parte do que aqui é chamado de epidemia discursiva, porém opera de forma mais específica e diz respeito à produção discursiva sobre a gênese da doença. O dramaturgo francês Antonin Artaud (1896-1948), em O Teatro e seu duplo, aponta que é um comportamento recorrente durante uma epidemia buscar uma origem para o infortúnio. O que também ocorre quase sempre é atribuir essa origem a um país/território considerado, pelos países ocidentais com economia mais desenvolvida, excêntrico e/ou pouco desenvolvido. Assim, o imaginário colonizador/capitalista sempre que possível aponta o mundo oriental e o continente africano como responsáveis pelas doenças que atingem o planeta. Por isso, apontar a China como o “berço” do coronavírus é apenas mais uma faceta habitual da epidemia discursiva em curso.

Diante disso, chamo atenção para o fato de mesmo diante de tantas menções à pandemia em curso, a produção ficcional sobre o tema ainda ser incipiente. Se considerarmos, por exemplo, o que foi produzido sobre HIV/AIDS, Caio Fernando Abreu escreveu uma novela meses antes do primeiro caso de HIV ser confirmado no Brasil. Afora o “Diário do isolamento”, do qual Marília Costa falou aqui neste blog, e de uma parca produção de cordéis, não se tem notícias de contos, novelas, romances ou mesmo biografias sobre o período em que estamos mergulhados. Milton Hatoum, em matéria da Folha escrita por Walter Porto no caderno Ilustrada de 03/04/2020, aponta que “a ameaça é real e palpável”, por isso a dificuldade em dar tratamento literário à pandemia em curso e produzir ficção de uma forma geral.

A conclusão a que se chega diante desses tempos e da falta de material ficcional sobre o tema sobre o qual estamos tanto falando, escrevendo, postando e “ twittando”, é que ou a velocidade de propagação do Covid-19 não tem concedido tempo para essa produção, ou a gravidade da situação não favorece a elaboração de subjetividades.

* O termo é utilizado por Marcelo Secron Bessa ao tratar da produção discursiva sobre HIV/AIDS no Brasil