Ramon Amorim
Créditos da imagem: Pepe Espaliú (1955–1993), 1992, Carrying (performance)
O ano de 2023 marca as quatro décadas da confirmação oficial do primeiro caso de HIV/aids no Brasil. Em 2023, a novela “Pela noite”, que faz parte do livro Triângulo das águas, escrito por Caio Fernando Abreu, também faz quarenta anos da sua publicação. Se em 1983 a crise da aids ainda se configurava como um medo mais ou menos distante, como indicado pelos personagens do texto ficcional do autor gaúcho, de lá para cá o que se viu foi a agudização da crise de saúde pública, muitas mortes, a associação de grupos sociais marginalizados ao vírus e à doença, entre outros tantos desdobramentos. Mas também acompanhamos a consolidação de formas mais eficazes de tratamento, a ampliação das formas de proteção, além da camisinha, e de controle da infecção, a descoberta de que o vírus pode ficar indetectável e, portanto, o portador não mais o transmite. O que parece ter mudado muito pouco, porém, é o estigma que acompanha os sujeitos positivos.
Vários desafios se colocam em relação ao manejo do HIV e da aids. Do ponto de vista biomédico, talvez a cura (o que significaria a erradicação do vírus do organismo infectado) seja o principal objetivo, ainda que não o único, a ser buscado. Já no campo social, o caráter educativo em relação à doença e ao vírus deve ampliar a circulação de informações seguras sobre as formas de prevenção e tratamento e se concentrar em desfazer o estigma associado aos sujeitos positivos, quase sempre homens, segundo o imaginário social.
A produção literária também enfrenta desafios. O maior deles talvez esteja relacionado à construção de imagens sobre o vírus e a doença ainda amparadas no contexto de emergência da epidemia, ou seja, nos primeiros anos da década de 1980. Assim, ainda é comum a representação que aproxima HIV/aids e morte, relacionando também doença e vírus a grupos sociais já marginalizados, principalmente àqueles que fazem parte da comunidade LGBTQIAPN+. Os sujeitos heterossexuais, sobretudo os homens, ao contrário do que mostram as estatísticas, não aparecem representados na condição de doentes ou portadores do vírus, no entanto, segundo o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, entre os anos de 1994 e 1998, eles lideraram com folga os números de novas infecções.
Considerando ainda informações divulgadas em 2022 no relatório da UNAIDS, um programa conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS, as mulheres correspondem a 53% das pessoas vivendo com HIV. No entanto, a presença de personagens mulheres que têm a doença ou o vírus em narrativas e outras criações estéticas contemporâneas ainda é muito inferior ao número de sujeitos inseridos na homocultura, que aparecem doentes ou infectados em romances e contos.
Por fim, mesmo nas narrativas produzidas por homens gays ou outros grupos dentro da comunidade LGBTQIANP+, os impactos psicossociais e as imagens oriundas quando da emergência da epidemia (morte, sofrimento, medo da transmissão e/ou da infecção) ainda são muito presentes e permanecem como o modelo de representação para a quase totalidade dos personagens. A representação reincidente em muitos textos literários de que a infecção por HIV é um destino inescapável dos sujeitos homossexuais não se coaduna com o avanço científico na área, nem parece levar em conta as diferentes maneiras de prevenção que vão da camisinha à PEP. O que pode ser visto como uma prova de que há muitas questões ainda a serem superadas.