João Matos
Créditos da imagem: Alain Fleischer, L’homme dans les draps, 2017.
Ao ler uma autobiografia, partimos sempre do mesmo princípio: a narrativa tem como objetivo contar a vida de quem a escreve. Mas existem maneiras distintas de contar uma vida?
É comum observar em autobiografias uma sistematização de dados da vida do autor em “linha reta”, das primeiras memórias da infância até o momento de vida em que o autor está escrevendo sua autobiografia. Segundo o sociólogo Pierre Bourdieu é falsa a ideia de contar uma vida através de um conjunto orientado de acontecimentos, presentes no relato através de uma ordem “coerente” à vida contada.
Sabemos ainda que o relato de uma vida implica também em falhas da memória que podem ser responsáveis pela construção de uma imagem do autobiógrafo que nem sempre corresponde ao vivido. Nesse caso, há duas possibilidades: o autobiógrafo pode não admitir conscientemente essas falhas, acreditar demasiadamente na sua própria autoridade como sujeito da vida que narra. Mas é possível também que o autobiógrafo, fazendo uma opção oposta, assuma os deslizes da memória e exponha na própria narrativa da vida o “exame de consciência” que o leva a pôr em dúvida o que ele mesmo narra.
Defendendo a necessidade de caracterização do gênero autobiográfico, Gusdorf vê o exame de consciência manifesto na narrativa como um gesto “autêntico”, que garante o que chama de verdadeira autobiografia: “O conhecimento de si mesmo, seja qual for a abordagem escolhida, não é uma tarefa descritiva, reflexo fiel no espelho de uma realidade frente a qual se encontra o olhar do observador.”
Rejeitando a ideia de que as falhas da memória e a impossibilidade de recuperação de tudo o que foi vivido em qualquer relato autobiográfico aproximem a autobiografia da ficção, Philippe Lejeune defende que toda autobiografia caracteriza-se pelo pacto firmado entre o autor e seu leitor. Na visão do estudioso francês, é esse pacto que assegura o compromisso do autor com a verdade do relato, mesmo que possa haver incongruências com a realidade narrada. Assim, para Lejeune, se o autor deseja inventar (ficção) ou reescrever acontecimentos de sua vida (autoficção), não há intenção de elaborar uma autobiografia.
Em um momento em que as fronteiras entre os gêneros autobiográficos e ficcionais não parecem estáveis, seria possível questionar se a presença de obras que exploram o que Gusdorf chama de “exame de consciência”, como, por exemplo, as narrativas de Annie Ernaux, não projetam também uma figuração, constroem uma imagem do sujeito que se desprende do pacto autobiográfico, ainda que não abram mão totalmente dele.