Arquivo do mês: junho 2021

Luto e força metonímica

Antonio Caetano

Créditos da imagem: Daniel Boudinet: Polaroid, 1979.

Na minha pesquisa sobre o romance O pai da menina morta, de Tiago Ferro, percebo alguns aspectos importantes a serem considerados em relação à presença e à ausência de alguém querido que morreu. Por exemplo, no romance de Ferro o narrador enlutado aborda os efeitos da ausência de sua filha morta, mas não exibe a filha, não a descreve, nem mesmo cita seu nome. Em vista disso, acredito que a ausência presente da filha morta na narração do romance tenha um papel importante, especialmente por se tratar da elaboração do trauma do narrador, da exposição de uma ferida que resiste à representação.

Em A câmara clara,  em luto pela mãe e refletindo sobre fotografia, Barthes afirma que o punctum é uma “ferida”, que exerce certo poder sobre quem a observa. Barthes também comenta que o punctum é pessoal e individual, sendo difícil explicar essa ferida a outros. No decorrer do ensaio Barthes exibe muitas fotografias que exercem essa força sobre ele, exceto uma. Trata-se de uma fotografia da mãe quando criança. Barthes não exibe a foto, mas descreve o que o punctum nessa foto representa para ele, assim como sua origem: o olhar da mãe. E é justamente esse jogo da presença constituída a partir da ausência, e a dor do luto, que me interessa abordar nesta postagem.

Barthes afirma não mostrar a fotografia da mãe por ela existir apenas para ele, já que para qualquer outra pessoa a fotografia seria indiferente. Não haveria ferida. Mas por que importa a Barthes o fato de sermos atingidos, ou não, pelo olhar de sua mãe? Ele omite a foto não por resguardo, mas, como disse, por  não fazer diferença que a olhemos. A foto não nos atingiria. Por outro lado, não saímos ilesos da leitura de A câmara clara no que concerne ao luto de Barthes: sentimos sua dor, partilhamos de seu luto, vislumbramos como esse punctum o fere. Mas como isso se dá?

Sobre esse aspecto do ensaio de Barthes, e especialmente sobre o punctum representado pela foto da mãe dele, Jacques Derrida comenta que o punctum, sendo esse lugar de “singularidade insubstituível e de referencial único”, irradia uma força metonímica e pode invadir tudo.

Ainda de acordo com Derrida, a força metonímica do punctum nos permite falar do que é único, falar de e falar sobre e, dessa forma, confere uma certa generalização ao discurso. Por generalização, Derrida quer dizer que a força metonímica – ou seja, todo o trabalho empreendido por Barthes ao falar sobre o olhar de sua mãe que representa para ele o punctum da foto não mostrada aos leitores– contamina os leitores do ensaio fazendo com que sejamos atingidos não pelo luto de Barthes (este lhe é único), mas pela forma como Barthes descreve aquilo que é indescritível.

Assim seria possível pensar que, tanto para Barthes, quanto para o narrador de O pai da menina morta, exibir a fotografia e a filha seria provocar em nós, leitores, o não-punctum, o não reconhecimento dessa ferida, seria expor o fato de que nem o olhar da mãe na foto omitida no texto de Barthes e nem a filha morta (presença ausente na narrativa de Ferro) podem exercer em nós o mesmo impacto de punctum exercido neles. E a consolidação da ineficácia deste punctum seria uma forma de matar, mais uma vez, aquelas que mantêm a ferida do punctum viva para eles. Aliada a isso, a força metonímica do punctum, ainda que o generalize – e porque o generaliza –, permite que ele reverbere para além de si mesmo, para outros objetos e afetos, invadindo a escrita e nos atingindo, nos fazendo quase entrever o olhar dessa mãe criança. E não seria essa uma estratégia do enlutado de fazer permanecer quem já se foi?

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Autoficção e desdramatização

Marília Costa

Créditos da imagem: Cena do espetáculo Conversas com o pai (2014). 

Na dramaturgia brasileira contemporânea, nota-se maior interesse e valorização de dados biográficos na elaboração da cena teatral. As experiências pessoais dos atores/diretores servem como mote para os enredos ficcionalizados no palco, que geralmente são compostos por elementos que enfatizam a mistura dos gêneros, dos recursos midiáticos e do metateatro. A partir dessa perspectiva, o espetáculo Conversas com meu pai (2014) é interessante para pensar algumas das estratégias de desdramatização propostas por Jean-Pierre Sarrazac em “O drama não será representado”.

“O drama não será representado” é o primeiro capítulo do livro Poética do drama moderno do dramaturgo e pesquisador francês Jean-Pierre Sarrazac. O ponto de partida da discussão proposta por Sarrazac é a peça “Seis personagens à procura de um autor” do dramaturgo, poeta e romancista italiano Luigi Pirandello. Dentro do contexto sócio-histórico em que a peça é escrita (em 1921, início do século XX), a peça é considerada inovadora por apresentar mecanismos do metateatro, já que a peça comenta o teatro dentro do teatro provocando uma reflexão sobre os limites da representação.

Sarrazac não acredita no fim do drama e rechaça a nomenclatura pós-dramático para caracterizar produções contemporâneas. O teórico reconhece uma alteração na forma dramática que prefere chamar de desdramatização.  Será que poderíamos aproveitar as reflexões de Sarrazac para a análise do espetáculo Conversas com meu pai (2014)? 

O monólogo Conversas com meu pai estreou em 2014 no SESC Copacabana no Rio de Janeiro e foi concebido com base no material (bilhetes, diários, vídeos, fotos, áudios etc.) que a atriz Janaina Leite acumulou nos sete anos em que a comunicação com o pai passou a ser silenciosa. Por conta de um câncer na garganta, o pai perdeu a capacidade de falar e os dois passaram a se comunicar por meio de frases escritas em pequenos pedaços de papéis que foram guardados por Janaina em uma caixa de sapato. Um ano depois do diagnóstico do pai, Janaina, por conta de uma doença, precisou submeter-se a uma operação que teve como consequência a perda auditiva. No início da peça, a personagem revela a existência de um segredo, que no decorrer das cenas o espectador descobre tratar-se de um possível incesto, acontecimento que todo o tempo transita entre a memória e a imaginação de Janaina, dúvida que permanece até o final da peça sem resolução, deixando a plateia pairando sobre a incerteza, o real e o imaginário.

No drama de Pirandello, as personagens à procura de um autor surgem do fundo da plateia em direção ao palco, mas os espaços não chegam a se confundir. Em Conversas com meu pai, o recurso é mais extremo, a peça já começa fora do espaço cênico tradicional, no hall do teatro, fazendo parecer que aquele ambiente e o público já estão engendrados como parte da convenção teatral. A personagem se comunica diretamente com o público, em um gesto de quebra da quarta parede, mas que nesse monólogo vai além, colocando a plateia como interlocutor e parte da cena, sentada em círculo ao redor da atriz. Nesse momento, é explorado um dos temas centrais do espetáculo: o silêncio, que se instaura a partir dos problemas de saúde do pai e da filha. Paradoxalmente, é quando ele perde a fala e ela perde a audição que os dois, enfim, começam a se comunicar com profundidade.

Em cotejo com Seis personagens à procura de autor, a peça Conversas com meu pai também promove rupturas na fábula. A palavra fábula tem origem latina e na concepção tradicional corresponde tanto ao material anterior à composição da peça, o mito (o tema do qual a peça vai tratar), quanto à estrutura narrativa que o autor vai utilizar (a forma como ela é escrita). Brecht defendeu uma ruptura da ideia de que as ações tinham que ter uma ordem cronológica e causal como preconizou Aristóteles. Ou como afirma Sarrazac: “A peça não é mais esse organismo do qual a fábula seria a ‘alma’, e que sempre avançaria conforme um processo linear definido por um começo, um meio e um fim”. 

Em “Seis personagens à procura de um autor” percebe-se a desdramatização através da ruptura da fábula, do texto estruturado em ações divididas em atos e cenas. A nota de Pirandello que abre a peça aponta para isso: “A comédia não tem atos nem cenas”. 

Também em Conversas com meu pai percebe-se a ruptura na fábula, na forma como a peça é escrita e encenada. A estrutura elaborada por Aristóteles – exposição, aumento da tensão, crise, nó, catástrofe e desenlace – é desconsiderada, a história começa a ser encenada em um movimento “de trás para diante”. Além disso, a atriz instrui o público a ir para outro ambiente no qual a outra cena é iniciada.

Essa foi a terceira versão da peça. Essa aqui, que está terminando agora. E então eu levanto e saio daqui. Vocês vão para a outra sala. Vocês também vão para a outra sala comigo, é para isso ser feito, agora, porque existe a outra versão que eu criei. Existe a segunda versão. Eu estou mostrando de trás para diante.

Na outra sala (terceiro espaço cênico, considerando o hall como o primeiro e a sala anterior como o segundo), o cenário é composto por uma piscina de plástico, plantas, um microfone, uma mesa, cadeiras de praia, uma gaiola e uma série de objetos pessoais da atriz, na parede, uma foto 3×4 ampliada. Além disso, imagens documentais aleatórias são transmitidas em um telão durante toda a cena: “o pai – e uma mulher – a filha -, em silêncio, pescam, close nas mãos do homem que escreve pequenos bilhetes, close nos olhos da mulher, o rio, uma casa no meio da floresta, um peixe sendo aberto com as vísceras expostas, o pai e a filha, em silêncio, dividindo uma cerveja, etc, etc”.

A partir dos elementos mencionados, percebe-se no espetáculo Conversas com meu pai um investimento no procedimento autoficcional pela maneira como os dados biográficos são mobilizados na cena teatral, o que implica em uma mudança formal, que segundo Sarrazac, pode-se chamar de desdramatização. A ambiguidade entre vida e ficção faz parecer que o palco é uma reprodução da casa do pai da atriz, o que é acentuado pelos recursos cênicos: uma foto gigante na parede, as imagens projetadas no telão, os objetos pessoais que compõem o cenário. Nessa perspectiva, pode-se identificar nesse drama a “convergência de distintos gêneros, diversificação das formas de autorrepresentação, problematização da dualidade factual-ficcional, inclusão de novos suportes e mídias” como afirmou Stelzer ao buscar uma caracterização para peças teatrais autoficcionais. 

Cansamos das ficções?

Luciene Azevedo

Créditos da imagem: Arnulf Rainer,  Untitled- 1974- Oilstick and Crayon Over Photograph

Acho que não é preciso dizer que um dos maiores desafios para aquele que pensa as produções artísticas hoje é a presença marcante da primeira pessoa. Comentando a relação entre a poesia e a fotografia, Adolfo Montejo Navas afirma que o autor nunca está por cima da materialidade da linguagem se não quiser cair em uma ressaca de conto romântico, mas cada vez mais quando falamos de textos que, ainda que com algum hesitação, continuamos a chamar de literários é notável que o trabalho com a materialidade da linguagem não parece tão fundamental quanto o foi para o modernismo.

A descoberta moderna de que a linguagem é dúbia, vacilante e de que, na verdade, precisamos de muitas convenções para garantir um pouco de eficácia comunicativa, é quase um truísmo hoje na era da guerra das narrativas e por isso os experimentos linguísticos que marcaram as produções literárias da modernidade já não são necessários para provar a zona incerta em que se inscreve toda palavra.

A própria tradição moderna na qual muitos de nós nos formamos como leitores sempre nos alertou contra a ingenuidade de confundirmos os autores com os personagens e narradores de suas próprias histórias. Como devemos reagir, então? Meu interesse pelas formas narrativas nas quais a primeira pessoa do texto é confundida com a presença do próprio autor me leva a uma pergunta sobre a maneira como lidamos com as ficções, que durante a modernidade foi tomada quase como um sinônimo da própria ideia de literatura.

Mas se hoje, em muitas produções atuais, é possível questionar a ficcionalidade como ato imaginativo em operação, já que muitas vezes a “evocação do nome próprio do autor dá ideia de sua absoluta presença”, como afirma o teórico espanhol Pozuelo Yvancos, será possível pensarmos em uma nova disposição discursiva para o que chamamos de literatura? Será possível ler em muitas narrativas hoje um processo de desficcionalização sistemática do texto? Curiosamente, encontro o comentário num estudo de Stefano Calabrese para caracterizar a incorporação dos relatos enviados por cartas a Eugène Sue por seus leitores e que eram incorporados aos romances do autor.

Em muitas narrativas contemporâneas essa “desficcionalização” está relacionada à presença da primeira pessoa nos textos que realizam verdadeiros inventários pessoais, relatando a forma como os narradores-autores experimentaram a experiência que nos contam.

Vamos considerar o único romance escrito pela americana Lydia Davis, O fim da história. Seu título contém uma ambiguidade sustentada pelo romance, pois podemos interpretá-lo em sentido literal, (como a história terminará?), mas também podemos entendê-lo como um indicativo de que certa concepção da narrativa ficcional à qual estamos acostumados desde o século XVIII, está ausente do livro.  Diria mesmo que sustentar essa ambiguidade é revelar dois procedimentos narrativos distintos: narrar ou não a história? Qual história há para contar?

O impasse da narradora sobre expor (ou não) a intimidade de sua vida amorosa é acoplado materialmente à forma anotada da narrativa, que se reescreve aos olhos do leitor como se ele estivesse lendo um palimpsesto de versões, um acumulado de rascunhos que tateiam simultaneamente um modo de contar e um final para a história. Entendo que essa descrição pode soar muito próxima à operação metaficcional tão explorada pela própria modernidade, mas não seria possível me deter neste problema no espaço deste post. Ainda que haja claramente um comentário sobre os impasses sobre o que e como narrar, é como se a narradora expusesse sua preparação, suas anotações para escrever, incorporando a descrição sobre o método de preparação para a escrita da materia narrativa, pois o que lemos é a experiência do autor escrevendo ficção e a narrativa como uma oficina ficcional dessa criação:

“tenho tentado separar algumas páginas para acrescentar ao romance e quero juntá-las numa caixa, mas não sei como etiquetar a caixa. Gostaria de escrever nela MATERIAL PRONTO PARA SER USADO, mas se fizer isso posso atrair o azar, porque o material pode ainda não estar “pronto”. Pensei em incluir parênteses e escever MATERIAL (PRONTO) PARA SER USADO, mas a palava “pronto” ainda era forte demais apesar dos parênteses. Pensei então em colocar um ponto de interrogação e deixar MATERIAL (PRONTO?) PARA SER USADO, mas o ponto de interrogação introduziu de imediato mais dúvida do que eu podia aguentar. A melhor alternativa talvez seja MATERIAL – PARA SER USADO, o que não vai tão longe a ponto de dizer que está pronto, apenas que de algum modo vai ser usado, ainda que não precise ser usado, mesmo que seja bom o bastante”.

Ao narrar a experiência de escrever um romance expondo os preparativos para escrever, a voz narrativa, embora se mantenha sem identificação, garante uma proximidade quase íntima, confessional com seu leitor. E se acionamos o alerta vermelho contra essas ingenuidades identificatórias entre narrador e autor, entre autor-narrador e leitor, o próprio texto parece não desejar manter as coisas muitos estáveis, insinuando que nem tudo o que está sendo lido é obra de ficção e que então o romance deve ser encarado como uma charada de difícil solução, como afirma a narradora. Ou ainda: eu não estou disposta a inventar muito. A maioria das coisas se mantém como era. Talvez eu não consiga pensar em algo para por no lugar da verdade. Talvez eu só tenha uma imaginação fraca.

Será que a presença invasiva do eu nas narrativas, ambiguamente aproximado aos autores das histórias, pode ser pensado como um rechaço à ficção?  Estamos realmente nos cansando das ficções, como afirmou a crítica argentina Beatriz Sarlo há um tempo atrás?

 

Sobre a fotografia transversa

Samara Lima

Créditos da imagem: Duane Michals, The spirit leaves the body, 1968

Em seu livro Fotografia & Poesia (afinidades eletivas) (2017), o crítico e poeta Adolfo Montejo Navas, dentre tantas outras coisas, comenta que cada vez mais a fotografia contemporânea vem assumindo uma nova relação com o real, cujo foco encontra-se em articular um maior espaço para o imaginário em detrimento do estatuto de verdade. Pensando nessa nova maneira de entender a imagem visual, Navas traz um conceito bastante interessante: fotografia transversa.

O conceito está pautado na ideia de que as imagens do presente buscam romper com os limites impostos que predominam em boa parte da teoria da fotografia. Já comentei que a imagem fotográfica, desde o seu surgimento, foi compreeendida como captura da realidade, servindo ao uso documental, à informação e à memória e valorizada por seu status de autenticidade.

Nesse contexto contemporâneo de dissolução das fronteiras entre as diferentes linguagens, em que cada vez mais as artes tensionam a especificidade de seu meio, seria interessante pensar em um deslocamento da fotografia para fora de um certo modo de compreensão de seu funcionamento. Segundo Navas, a fotografia transversa é pensada a partir de um trânsito entre o que está dentro e fora da imagem fotográfica e procura formas de hibridização artística em favor de uma visualidade mais viva, mais contaminada. A aposta do crítico sugere que as imagens do presente distanciam-se da esfera representacional, a fim de apostar em outras intenções estéticas e contextualizações que proporcionem outras funções simbólicas.

No decorrer do livro, o autor se debruça sobre fotografias que nomeia como plásticas, aquelas construídas não só a partir da exploração de truques técnicos que visam tornar a foto difusa, mas principalmente por meio de intervenções de outras práticas artísticas, como a pintura. Ainda que as imagens fotográficas reproduzidas no meu corpus ficcional não sofram tais intervenções, acredito que a reflexão proposta pelo autor possibilita diversas maneiras de lidar com a maioria das imagens presentes nas obras ficcionais contemporâneas.

Como vimos nos posts anteriores, as fotos de infância de Isabela Figueiredo e da cidade de Lourenço Marques buscam jogar com a ideia da imagem como prova e superar a mera confirmação do pacto autobiográfico. O fato é que elas são utilizadas como artifício de uma prática ficcional. Gostaríamos de apostar, então, que a transversalidade da foto está na relação e tensão que ela mantém com o texto literário ou com o próprio lugar em que se insere em meio à narrativa. Ao embaralhar as noções de ficção e realidade e não compactuar com o dizível, a fotografia questiona seu caráter de registro indiscutível e permite significações múltiplas, abrigando experiências que, muitas vezes, estão além da própria imagem.