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A literatura brasileira e as mudanças nas narrativas sobre HIV/AIDS

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Dis-placement (1996/97), Paulo Lima Buenoz.  Foto: João Paulo Machado.

Como se dão as representações da Aids em textos da literatura brasileira? A heterogeneidade em relação a como o tema tem sido tratado pelos mais variados autores faz pensar que as respostas são muitas. Desde o lançamento, em 1993, da novela Pela noite de Caio Fernando Abreu, publicada no livro Triângulo das águas, a produção narrativa sobre HIV/AIDS, ou “escrita da Aids”, como prefere Ítalo Moriconi, ganhou várias nuances.

No início, a representação da Aids na literatura, assim como nos discursos biomédicos e midiáticos, foi marcada pela confusão em torno das informações sobre a epidemia e pela profusão de imagens que reforçavam o estigma em relação aos soropositivos. Não eram incomuns representações de corpos deteriorados ou da abordagem da epidemia como uma peste, um flagelo. Este momento inicial das representações da doença na literatura no Brasil teve como produções mais relevantes, narrativas de autores como Caio Fernando Abreu, Herbert Daniel, Jean-Claude Bernardet, entre outros.

O segundo momento da literatura brasileira sobre HIV/AIDS é marcada pelo aparecimento do coquetel de medicamentos antirretrovirais que possibilitavam, para muitos sujeitos, uma melhor qualidade de vida e o controle de diversos sintomas da presença do vírus/doença no organismo. Esse avanço biomédico possibilitou o aparecimento de uma produção literária em que a morte e as restrições causadas pelo medo do contágio deixassem de ser centrais nas narrativas. O principal texto que marca essa mudança é o conto Depois de agosto, presente no livro Ovelhas negras (2002), de Caio Fernando Abreu. É possível reconhecer ainda a “narrativa pós-coquetel”, como Alexandre Nunes de Sousa nomeia esse momento, em contos de Bernardo Carvalho, por exemplo.

Por último, há uma representação mais recente em que a presença do humor e a exposição da vida íntima nas redes sociais acrescentam novos ingredientes ao modo de falar da doença, como, por exemplo, podemos ler no romance O tribunal da quinta-feira de Michel Laub.

É curioso perceber o deslocamento em relação à representação da doença. O diagnóstico positivo para a presença do vírus aparece como elemento narrativo entre tantos outros que podem ajudar a caracterizar o personagem e sua subjetividade e não mais como elemento central, estruturante da atuação do personagem na narrativa. A partir dessa observação, seria possível afirmar que o tema perdeu centralidade nas narrativas atuais?

O “romance desmontável” como experiência radical da narrativa contemporânea

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Stephan Balkenhol, Three Hybrids, 1995

O conceito de “romance desmontável” foi primeiramente concebido por Rubem Braga (1913-1990), para tratar do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos (1892-1953). Em linhas gerais, diz respeito à produção narrativa longa em que suas partes possuem certa autonomia e, por isso, podem ser lidas individualmente, sem prejuízo do sentido, ou mesmo fora da ordem proposta pelo autor/editor. Seria então um romance formado por um agrupamento de textos mais curtos que dialogam entre si, de forma mais ou menos independente, dentro de uma estrutura maior.

Rubem Braga aponta que foi a necessidade econômica, visto que Graciliano Ramos vendia trechos da obra à medida que ia escrevendo, que fez com que Vidas Secas tivesse essa disposição. Não havia, portanto, inicialmente, uma finalidade estética, mas sim uma imposição pragmática que explicava o formato desse romance lançado em 1938.

Se pensarmos na literatura produzida nas últimas três ou quatro décadas, podemos observar que muit@s autor@s usam a estrutura do romance desmontável como experiência estética, principalmente. O que leva a essa escolha de forma, portanto, está menos relacionado a questões financeiras e mais a um exercício de linguagem. Considerando isso, recorro a produções de Caio Fernando Abreu, Bernardo Carvalho e Tiago Ferro  para exemplificar o que digo.

Lançado em 1988, o livro de contos (assim é descrito na ficha catalográfica) Os dragões não conhecem o paraíso apresenta uma nota do autor em que ele diz, entre outras coisas que “se o leitor quiser, este pode ser um livro de contos”. Caio Fernando Abreu afirma ainda na nota, porém, que “se o leitor quiser”, pode ler a obra como “espécie de romance-móbile”, ou ainda, “Um romance desmontável, onde essas 13 peças talvez possam completar-se.” Para Abreu, há um tema em torno do qual a/as narrativa/as gira/am, o amor. Portanto, as histórias estão unidas apenas pela temática central que apresentam.

Já em As iniciais (1999), a indicação de que se trata de um romance está na capa e a ficha catalográfica reforça a ideia ao marcar, As iniciais: romance. Não existe, então, qualquer indicação ou nota do autor que explique a estrutura do livro. O que une as duas partes da narrativa de Bernardo Carvalho é a presença um narrador enigmático que conta as duas histórias que compõem a obra. 

Por último, O pai da menina morta (2018) exemplifica talvez a experiência mais radical, no que diz respeito à ideia de “romance desmontável”. A narrativa apresenta o que muitos autores chamam de hibridismo de forma, há a ocorrência de diversos gêneros (verbete, lista, formulário, reprodução de e-mails, crônicas, fotos etc.) e tipos textuais (narração, descrição, dissertação). O livro de Tiago Ferro exibe inúmeros textos, na sua maioria curtos e independentes entre si, sob a forma de romance, como confirmado na ficha catalográfica. Para tratar do luto pela morte da filha, o autor constrói uma espécie de sucessão de notas mentais sobre os mais diversos assuntos e tempos. Em O pai da menina morta não uma história única, mas dezenas de trechos diversos e completamente independentes que podem ser lidos em qualquer ordem sem prejuízo do entendimento. Assim, o livro de Tiago Ferro pode ser também um “romance desmontável”.

A pergunta que me faço é: o que muda na leitura de um livro que traz essas questões sobre a maneira como organiza sua forma de narrar?

Reprodução – Bernardo Carvalho

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Marcos Torres

Recentemente, Bernardo Carvalho concedeu uma entrevista para a Globonews Literatura, sobre seu mais novo livro, Reprodução, publicado pela Companhia das Letras em 2013.

Nela, o autor diz nunca ter gostado de a literatura estar atrelada à política, mas, como afirma que o contexto atual pode ser caracterizado como o de um novo fascismo, Carvalho defende um livro mais político. Diante de um mundo confuso em que, segundo o autor, não sabemos direito onde mora o perigo, a justificativa para um livro mais político está na proliferação, principalmente pela internet, de um discurso dissimulado e carregado de fascismo, racismo, anti-semitismo, anti-arabismo etc.

Para Carvalho a internet, que, aparentemente, alardeia a liberdade e a democracia, desconstruindo hierarquias, propiciou, na verdade, o fim da democracia e com ela o fim da privacidade e da vida privada , propalando um sistema de controle absoluto, de pura publicidade.

No livro, o narrador é um sujeito que segue para o aeroporto, mas, ao chegar, é preso na área de embarque; o enredo trata de um trabalhador do mercado financeiro, um estudante de chinês, que perdeu o emprego, perdeu a mulher, e, a partir de um discurso paranoico, acredita que a China será a nova dona do poder global. O texto traz a sensação de ser uma sequência de três monólogos sem um interlocutor, mas na verdade trata-se de um diálogo com um delegado que nunca aparece na história, não há descrição detalhada nem de aspectos físicos, nem psicológicos da personagem. Segundo Carvalho, esse delegado representa certa opacidade e o contrário do mundo da visibilidade absoluta, onde tudo é dito e tudo é mostrado no mundo em que vivemos hoje, e para o qual a gente cada vez mais vai se encaminhando. Por outro lado, o personagem sem nome e que fala quase sem parar é o representante desse fascismo disfarçado de outro tipo de discurso e com isso difícil de ser combatido.

Para Carvalho, o estudante de chinês é a representação desse tipo de discurso que está estreitamente vinculado à internet, à sensação de visibilidade absoluta e à perda da privacidade, onde tudo é mostrado e nada é mostrado, tudo é dito e nada é dito e, portanto, um discurso contraditório. E, como está no próprio título do livro, tudo não passa de uma mera reprodução.

Não sei, mas acho que talvez seja interessante a gente se apropriar deste último termo para pensar sobre a produção literária contemporânea e suas diferentes formas de subjetivação. Assim como discutir se a relação entre Literatura e Política ainda tem alguma validade dentro da produção atual.

Assista a entrevista AQUI!