Arquivo da categoria: Viva o povo brasileiro

Ainda sobre história e ficção: O Crime do cais do valongo

Lílian Miranda

Créditos da imagem: Purchase, Lila Acheson Wallace Gift, 2003

Minha investigação atual de iniciação científica debruça-se sobre a relação possível entre dois importantes romances brasileiros, Viva o povo brasileiro e Um defeito de cor. Como apontei anteriormente, o romance de Ubaldo Ribeiro encara como um compromisso a relação da literatura com a formação de uma identidade nacional.  Na obra, essa relação é construída criticamente e encenada desde os momentos iniciais do Brasil colônia com o Caboco Capiroba para culminar na interação conflituosa entre gerações dos núcleos familiares descritos na obra. Já nos primeiros anos do século XXI, Um defeito de cor inscreve-se também como ficção, mas cumpre um papel complementar à história oficial, como se a literatura pudesse preencher as lacunas de uma história que foi apagada.

Após o impacto da publicação de Um defeito de cor, que deu voz a uma personagem escravizada, é possível pensar que outras narrativas se propuseram a explorar os arquivos apagados pela história oficial, resgatando outras narrativas. É o que faz a autora e jornalista Eliana Alves Cruz em seu segundo livro publicado – O crime do cais do valongo  – que constrói uma conversa entre história e literatura. 

A obra é narrada em duas vozes e empreende um romance (histórico) policial ambientado no Rio de Janeiro de 1820. No início de cada capítulo, a obra apresenta fragmentos de jornais da época, que funcionam como títulos orientando a leitura e algumas vezes esse conteúdo também é aproveitado na trama da narrativa. Assim como em Um defeito de cor, uma das personagens principais é uma mulher negra alfabetizada chamada Muana que foi traficada para o Brasil ainda na tenra idade para servir como escrava. O outro narrador é Nuno Alcântara, um filho de mãe negra e pai branco que nasce livre e leva uma vida boêmia e corresponde ao estereótipo de “malandro”. Ambos narram suas perspectivas acerca do assassinato de Bernardo, o dono da hospedaria do Vale Longo, que também é “senhor” de Muana e de alguns outros homens e mulheres negros descritos na história.

A autora lança mão de um recurso romanesco bem conhecido: ao final da narrativa, ficamos sabendo que parte do que lemos é o manuscrito do relato de vida de Muana por ela mesma, encontrado por Nuno. Só a partir dessa leitura o crime do cais do valongo é completamente revelado:

Juro, por tudo que me é mais sagrado que…. Não posso fazer juramentos. Quem conhece a este homem, que tudo o que mais ama na vida são seus livros e uma boa farra, jamais daria crédito a um juramento meu baseado em algo sagrado, pois das missas apenas me interessavam os vinhos. Embora, depois de ler todos estes apontamentos da africana Muana Lómuè, comece a rever seriamente esta minha renitente mania de não crer em nada que ao natural se sobreponha.

É aí que, em meio à moldura documental que mostra o trabalho de pesquisa nos arquivos dos jornais da época, a autora traz um elemento metafísico como parte importante da história  e esse elemento interfere e atua diretamente nos acontecimentos da narrativa. Na trama, Muana recebe um professor inglês, um abolicionista que dava aulas para o dono da hospedaria a quem ela servia. Interessado no fato de ela ser alfabetizada, Mr. Toole decide saber mais sobre a história de Muana:

Quando já estavam ele e o senhor Bernardo em alguns meses de classes, o Sr. Toole descobriu que a negra de quem a irmã Maria do Carmo falara pertencia ao seu novo aluno. Mesmo cabreiro, o senhor Bernardo então combinou que nos deixaria em paz por algumas horas semanais, mas obviamente não sem que o inglês desse um bom desconto nas aulas e, obviamente, com a condição de falarmos apenas quando todo o serviço acabasse, e isto acontece só muito tarde. Eu não tenho a escolha de não concordar, mas se tivesse esta chance também não recusaria, pois é uma forma de visitar outra vez aqueles lugares com meus olhos da memória saudosa. O que eu tenho a perder? Ele fala um português com sotaque muito carregado, porém compreensível. O meu também tem as notas do lugar que para sempre vou chamar de meu, pois, para mim, é lá onde eternamente vai morar o encantamento.

Em meio ao desenrolar da história do assassinato, Mr. Toole visita Muana algumas vezes  e assim ela tem a oportunidade de narrar sua vida antes da travessia atlântica. Porém, no final, ficamos sabendo que o inglês na verdade é um espírito desencarnado que ela consegue ver devido à sua mediunidade.

Assim, entre a história e a ficção (que faz da religiosidade da personagem um elemento que “resolve” a trama) ficamos conhecendo o que foi de fato o crime do cais do Valongo, um assassinato documentado pela imprensa da época, mas também outros crimes, ainda hoje pouco reconhecidos, como o surgimento do cemitério dos pretos novos. Além de sermos apresentados a personagens históricos como Joaquina Lapinha, a primeira cantora lírica negra brasileira a ganhar destaque internacional, e  o livreiro Manoel Mandillo, que são retirados da história e invadem a narrativa.

O livro de Cruz explora, então, o trânsito entre o documental e o inventado, entre a história e a ficção, mas a maneira como a religiosidade de Muana é utilizada para resolver a trama é algo que merece uma interrogação. Em Um defeito de cor a religião de matriz africana é tratada como elemento inerente à identidade narrativa que vai delineando a personagem Kehinde através da fé que ela tem em seus ancestrais e orixás. Já a mediunidade de Muana parece atender mais à resolução da trama, se sobrepor aos fatos relatados (já que em nenhum momento anterior da narrativa recebemos qualquer indicação de que Mr. Toole poderia ser uma entidade espiritual). Nesse sentido, o resgate da religiosidade na narrativa não funciona como reconhecimento “da sofisticada cosmogonia e dos modos de invenção da vida dos povos saídos das Áfricas”, como afirma o pesquisador Luiz Antônio Simas, no comentário à obra, ainda que seja possível ler na obra de Eliane Cruz a dificuldade de os negros escravizados inventarem a vida em um país ainda tão desigual.  

Entre história, arquivos e ficções

Lílian Miranda

Créditos da imagem: AS RIQUEZAS DESTA TERRA, Rosana Paulino, 2017

Recentemente iniciei meu novo projeto de pesquisa que foi pensado a partir das discussões sobre arquivo e curadoria empreendidas no plano anterior.  Em vista das múltiplas questões que podem ser levantadas a partir da obra de Gonçalves, observamos novas possibilidades de investigações partindo também do livro Um Defeito de Cor e sua forma de composição.

Neste novo trabalho irei investigar, através de um estudo comparativo entre Viva o povo brasileiro de João Ubaldo Ribeiro e Um defeito de cor de Ana Maria Gonçalves, o modo como ambas as obras lidam com a história oficial de construção de nossa nação.  A pesquisa tem como objetivo observar as diferenças entre as obras a partir da análise de suas condições de surgimento, do contexto sociopolítico no qual foram publicadas e da forma como os autores optam por manipular o arquivo de documentos e  referências sobre a história oficial do país.

Ana Gonçalves chama a atenção ao trazer nas últimas páginas do livro, como elemento externo à sua narrativa, uma bibliografia repleta de materiais, arquivos e referências utilizadas para composição da obra. Além de sugerir livros teóricos e indicar registros originais disponíveis em arquivos públicos, a autora inclui também alguns livros de ficção de autores como Jorge Amado, José Saramago e João Ubaldo Ribeiro. Deste último, a autora inclui o livro Viva o povo brasileiro, obra publicada em 1984, que obteve grande ressonância e ótima recepção pelo público na época em que foi lançado. A partir desse contexto surgiu uma questão inquietante:  será que Gonçalves escolhe Viva o povo brasileiro para compor sua bibliografia como uma provocação acerca das formas de narrativas históricas canônicas?

Rita Olivieri-Godet em Viva o povo brasileiro: a ficção de uma nação plural (2014), ao considerar o conjunto de obras ficcionais de João Ubaldo aponta que:

“A ficção ubaldiana nutre-se da experiência vivida conectada ao contexto histórico e alimentada pela memória individual, familiar e coletiva. […]Ribeiro opta por incorporar múltiplas visões da nação brasileira, adotando uma perspectiva de confronto ideológico que o conduz a englobar diferentes discursos e desvendar os interesses que lhes são subjacentes” (p.28)

A narrativa de Ubaldo também se propõe a contar alguns eventos da história oficial do Brasil, dentre eles as lutas e movimentações em prol da independência, da abolição da escravatura, tematiza a guerra dos farrapos e a guerra do Paraguai, entre outros eventos descritos ao longo do livro. Viva o povo brasileiro compreende um período de quatro séculos de história e é narrado por personagens que se identificam como sendo o próprio povo brasileiro. Na obra, João Ubaldo Ribeiro mistura história e ficção para contar o processo de construção do projeto de nação brasileira, trazendo personagens indígenas, negros, europeus e, principalmente, aqueles considerados mestiços, frutos da forçosa miscigenação  característica da construção da nacionalidade brasileira.

O trabalho de Ana Gonçalves também combina história e ficção se desdobrando numa narrativa acerca da vida Kehinde, uma mulher negra africana que vivencia tanto o cotidiano de um Brasil colonial e as vicissitudes da maternidade, como também, fatos históricos como o levante dos Malês, o processo de escravização, o retorno ao continente africano e diversos outros desdobramentos desse período, no entanto quem narra sua própria história é a personagem Kehinde.

Ao ponderar sobre ambas as produções percebo que representam extensos trabalhos de pesquisa e manipulação de arquivos. Embora tenham sido publicados em séculos distintos – com cerca de 22 anos de diferença -,  cada uma das obras assume o compromisso de desmontar e propor outras enunciações acerca do que conhecemos como  história oficial do Brasil. Mas me interessa observar também se o modo de fatura das obras e a recepção que obtiveram mantêm relações com o contexto em que foram produzidas e publicadas. 

 No final do século XX, o romance de Ubaldo parece ser uma espécie de saga que quer encerrar um tema problemático para os estudos literários: a relação entre a literatura e a identidade nacional. Já nos primeiros anos do século XXI, a narrativa de Gonçalves parece mais atenta a uma transformação social que afeta a literatura de “fora”, e que sugere um país que quer (re)construir para si uma outra história. Mas se é mesmo assim só a pesquisa vai dizer, esse aqui é o ponto de partida.