Luciene Azevedo

A expressão “subjective turn” aparece nas investigações do filósofo Charles Taylor para caracterizar a transformação de uma ideia de sujeito que toma consciência de si e marca o início da era moderna: “uma nova forma de interioridade, na qual pensamos a nós mesmos como seres que têm uma profundidade interior”.
Esse é o momento em que a ideia de sujeito ganha um novo sentido. As acepções da palavra em português ou espanhol guardam a memória dessa transformação, já que a grande virada de sentido é também o empoderamento da ideia do eu que não é mais resumido a sua condição de assujeitado às leis divinas. Ainda que as Confissões de Santo Agostinho sejam citadas como um momento chave dessa tomada de consciência, é fácil reconhecer que Agostinho é um fiel súdito às leis do seu senhor. É com Montaigne que o sujeito ganha uma autonomia ativa que o habilita a uma autoridade inédita na primeira pessoa. Ao tatear uma forma de escrever em seus Ensaios, Montaigne tateia também a matéria instável de sua identidade e ao lado de anotações e comentários de passagens clássicas sobre quase tudo, revela seu gosto por melões e o sofrimento com sua doença renal. A estranheza causada pela revelação dessas irrelevâncias é o indício mais concreto do que Taylor chama de “guinada subjetiva”.
No âmbito latino-americano, Beatriz Sarlo retomou a expressão para pensar a primazia do testemunho na virada do século XX para o século XXI. Não vou ter tempo de desenvolver a sofisticada argumentação de Sarlo no espaço deste post. O que me interessa é aproveitar a ideia da virada subjetiva para pensar uma aproximação cada vez mais estreita da ficção com o caráter quase documental do registro da experiência de vida do sujeito que escreve e que está presente em muitas narrativas hoje. Às vezes, para revelar ao leitor o próprio processo da escrita, como faz o uruguaio Mário Levrero em seu Romance Luminoso, mas também para se inserir no próprio texto, sem se preocupar com a distância entre narrador e autor, revelando uma reflexão sobre uma inquietação com a própria identidade (como, por exemplo, as narrativas de Julián Herbert e de Eduardo Halfón). Mas isso que poderíamos chamar de uma desficcionalização do sujeito (e também do que conta, em certa medida) implica também um problema formal.
Mais recentemente em um ensaio escrito para comentar a encomenda para escrever um livro que registrasse as filmagens do último filme da diretora argentina Lucrécia Martel, Selva Almada expõe para o leitor a dificuldade de resolver o que parecia simples:
“Que tipo de livro queria fazer? Tinha claro que não seria um diário da filmagem, mas, então, o que seria? Uma coleção de histórias sobre a filmagem? Uma série de entrevistas com os atores, atrizes, técnicos e outros colaboradores do filme? Uma conversa com Lucrecia Martel? […] Decidí que não seria nada disso e, ao mesmo tempo, seria tudo isso. Crônicas breves, impressões pessoais sobre a filmagem, mas narrados por um narrador em terceira pessoa. Entrevistas convertidas em monólogos”
No pequeno grande livro, há um primeiro sobrevoo panorâmico pela locação de filmagens que registra o caos incômodo da natureza como cenário indomável da rodagem do filme e os diversos e múltiplos obstáculos para a realização do empreendimento. Aos poucos, o texto que se parece mais com notas, um rascunho para aproveitar depois, vão se aproximando dos figurantes, de seus pequenos dramas (“alimentação precária, pobreza e doenças”), abrindo espaço para que falem em primeira pessoa.
É curioso como ao lado da aposta no hibridismo formal, Almada escolhe desaparecer: “Não há uma cronista que seja Selva Almada, nem um personagem de cronista inventado por sua autora”. No entanto, assim como Almada avalia as orientações de Martel para o posicionamento dos figurantes durante a gravação de uma cena, essas indicações a respeito de seu desaparecimento na narrativa “são simples e precisas […] Parecem simples, mas não são”. Quem lê o conjunto de anotações breves (mas densas) sobre o cotidiano das filmagens não pode deixar de notar a presença marcante de Almada na escolha do que observa, no laconismo muito expressivo, das anotações que faz. E talvez essa ambivalência seja também um modo de interrogar a função representativa da primeira pessoa que volta a tantas narrativas hoje e uma tentativa de responder à contraditória convivência entre a espetacularização e a intensa consciência da mobilidade do vivido que marca nosso presente.