Arquivo da categoria: Susan Sontag

A recorrência de metáforas bélicas nas produções narrativas sobre HIV/aids

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Peter Juhar, Self-Portrait Jumping (1), 1974.

Susan Sontag, no livro-ensaio AIDS e suas metáforas, em dado momento, discute sobre uma das principais formas de abordar a temática do HIV/aids: o uso de metáforas bélicas para se referir ao vírus e à doença. A ensaísta fala no livro sobre como grande parte dos discursos, principalmente aqueles provenientes do campo biomédico, empreendeu uma espécie de bellum contra morbum, guerra à doença, para formular estratégias e ações que tivessem como objetivo lidar com a epidemia emergente no final do Século XX.

A estratégia de utilizar vocabulário e ideias relativas ao universo bélico para falar sobre doenças parece ter se consolidado nos contextos de pré e pós-guerra do início do Século XX, durante as epidemias de sífilis e tuberculose, e a partir daí passou a ser a tônica da maioria das campanhas de saúde pública que lidavam com crises sanitárias. Validadas pelo campo biomédico, as metáforas bélicas se espalharam para outros grupos sociais e acabaram por atingir toda a sociedade. Assim, torna-se comum encontrar nos mais diversos espaços sociais discursos que remetem à ideia de guerra à doença.

Se, nos diversos discursos, essa forma de falar sobre HIV/aids é comum, também na produção literária brasileira essa espécie de metaforização da epidemia é usual e recorrente. Romances como Amarga herança de Leo, de Isabel Vieira, ou ainda, Pequeno segredo, de Heloisa Schurmann, escritos no final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, respectivamente, ainda trazem construções que indicam que a infecção por HIV representa uma sentença de morte, uma batalha a se travar contra o vírus, assim, como aquelas explicações que indicam que o sistema imunológico humano seria uma espécie de exército que protege o corpo de potenciais inimigos, as doenças. Não se pode perder de vista que essas construções permeavam o imaginário sobre a epidemia no início de sua emergência e persistiram por muito tempo, principalmente, nas campanhas de saúde pública voltadas ao público jovem.

No romance de Guido Arosa, O complexo melancólico (2019), diferentemente do que a maioria das outras obras apresenta, há um conflito armado em curso na narrativa. Um dos inimigos desta batalha é o próprio sujeito homossexual, aquele que “o gozo, que dura poucos segundo, causa uma Hiroshima”, como afirma um dos personagens. Perseguido pelo poder instaurado, esse sujeito é condenado à morte “pela doença” ou “pelo Estado”. Nesse aspecto, pode parecer que a obra de Arosa se aproxima de outras narrativas sobre o tema, porém é preciso considerar que essa condenação atribuída é ao corpo homossexual que, independente da presença do HIV/aids, torna-se alvo predominante tanto da guerra simbólica, quanto da violência física fomentada pelo simbolismo bélico.

Se “a guerra é definida como uma emergência na qual nenhum sacrifício é considerado excessivo”, como aponta Sontag, a “guerra à aids” justificaria, inclusive, a perseguição aos sujeitos homossexuais, apontados quase sempre como culpados pela epidemia. Por isso, não é incomum nos discursos e nas produções narrativas, que o foco do esforço bélico esteja mais no corpo desses sujeitos e menos no vírus. No entanto, em relação aos outros grupos sociais, o combate travado é sempre contra o vírus apenas, o que reforça a ideia de que o inimigo desta guerra não é apenas o HIV mas toda uma coletividade que vem sendo atacada desde sempre.

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A fotografia como “documento de ficção”

Samara Lima


Créditos da imagem: Francesca Woodman – Space², Providence, Rhode Island, 1976. 

No meu post anterior, comentei que a pergunta inicial da minha pesquisa diz respeito ao estatuto da imagem fotográfica na cena literária contemporânea. Nesse sentido, encontrei na obra Depois da fotografia: uma literatura fora de si (2014) de Natalia Brizuela uma boa contribuição para meu estudo, uma vez que a autora analisa o cruzamento entre a literatura e as outras artes, em especial, a fotografia.

A crítica argentina pontua que o dispositivo fotográfico, desde o seu surgimento, não era visto como criação, mas como um instrumento capaz de reproduzir com “fidelidade absoluta […] tudo o que fosse exposto ao olho observador” da máquina. Por conta disso, inicialmente, a fotografia esteve a serviço das ciências, do jornalismo e das instituições devido à crença na imagem como “prova incontestável de que determinada coisa aconteceu”, como afirma Susan Sontag, em seu livro Sobre fotografia (2004).

Mas, em outro momento do mesmo livro, Brizuela tece uma discussão sobre como as transformações decorrentes dos novos usos da fotografia, preocupadas em inseri-la no campo artístico, na segunda metade do século XX, permitiram um deslocamento do seu estatuto “como portadora de uma verdade documental” para o caráter inventivo da imagem. Nesse sentido, dando por certo que a fotografia é um dispositivo capaz de desarticular relatos e expor as contradições das representações, a autora se debruça sobre diversas produções de escritores latino-americanos visando entender como a fotografia aparece em meio à escrita.

Um dos exemplos comentados é a obra Shiki Nagaoka: una nariz de ficción de Mario Bellatín. Aí, o leitor é apresentado a uma biografia fictícia de um escritor obcecado pelo imbricamento entre a linguagem, a literatura e a fotografia. O livro também traz um dossiê fotográfico. O leitor é atraído para a armadilha de considerar as imagens fotográficas como cópia fiel da realidade, acreditando que as imagens confirmam o que está sendo narrado. Porém, também é possível ficarmos alertas para o fato de que se estamos diante de um relato ficcional, a fotografia também pode apontar para um deslocamento e ser tratada como um “documento de ficção”.

É certo que, cada vez mais, os autores contemporâneos utilizam a fotografia como meio de exploração de outras linguagens. Considerada mero registro documental ou como artifício de uma prática ficcional, é instigante pensar em como esses autores questionam e embaralham as noções, antes tão bem definidas, de ficção e realidade. E é essa incerteza, segundo Natalia Brizuela, que o “terreno da ficção” instaura, apoiando-se na potência imaginativa da imagem.