Por Davi Lara
Em um post publicado recentemente aqui no blog, em que faço uma breve resenha de Paris não tem fim, de Enrique Vila-Matas, chamo atenção para a forte presença do escritor Ernest Hemingway neste romance, com destaque para o intertexto com o livro tardio do autor norte-americano, Paris é uma festa. Com isso em vista, gostaria de compartilhar algumas breves impressões da minha recente releitura deste importante livro de memórias.
Paris é uma festa (1964) foi publicado postumamente, três anos após a trágica morte de Hemingway, por suicídio. Ele foi escrito numa fase conturbada da vida do autor, alguns anos depois de ganhar o Nobel (1954) e em meio a uma violenta crise criativa. O livro abarca o período em que Hemingway e sua primeira esposa, Hadley, viveram em Paris, em meados dos anos 20. Como em muitos dos seus livros, nos quais a figura do herói e os atos heroicos ocupam um lugar central, também aqui, em Paris é uma festa, percebe-se a mesma tendência. Mas, neste caso, o herói é ele mesmo.
Tendo acabado de abandonar o seu emprego num jornal a fim de se dedicar integralmente à literatura, o jovem Tatie (como ele é chamado por Hadley) é descrito, por ele mesmo, como um jovem vivaz, obstinado, espirituoso e, dentro das suas limitações financeiras, um bon vivant. Enfim, um jovem admirável. E é, de fato, com admiração que acompanhamos o empenho de Hemingway em construir sua obra, mesmo com todas as privações e incertezas, advindas do fato de o escritor que seria premiado com o Nobel de literatura ter abandonado sua carreira como jornalista. Em outros momentos, no entanto, o afã de auto-engrandecimento de Hemingway soa um pouco forçado, como no longo capítulo em ele narra o seu encontro com Scott Fitzgerald e expõe certos momentos de ridículo do autor de O grande Gatsby, então já um romancista renomado, reservando para si próprio, apenas um iniciante, uma postura inabalável de altivez.
Seja como for, Paris é uma festa adiciona, dentro da tradição do romance moderno, um tipo poderoso na galeria dos personagens-escritores, no caso, um tipo heroico e melancólico, que consegue superar as adversidades com muito trabalho e uma crença inabalável na força da literatura; sobretudo naquela produzida por ele mesmo. É esse perfil romântico que inspira o protagonista de Paris não tem fim, de Vila-Matas, a ir viver miseravelmente numa água furtada em Paris e – como ele mesmo dizia, com pompa – se tornar um escritor. No entanto, a experiência vivida por esse personagem, conforme é contada a nós por ele mesmo, anos depois, não corresponde à experiência narrada por Hemingway.
Longe disso. Ao tentar encarnar essa figura autocentrada de escritor hemingwayniano, o jovem aspirante a literato do romance de Vila-Matas transforma-se numa caricatura ridícula de escritor. O confuso autor de A assassina ilustrada (romance que tem como objetivo matar os seus leitores, escrito pelo protagonista de Paris não tem fim ao longo do relato; e que também é o título do primeiro romance de Vila-Matas) é mais propriamente um anti-herói.
Esse deslocamento revela uma característica cara a Vila-Matas (tratada brevemente no meu último post daqui do blog), que consiste numa inquietação no que concerne ao lugar da literatura dentro do mercado editorial. Mas também revela um traço mais profundo da ficção de Vila-Matas: seu impulso, ora desesperado, ora bem humorado, de explorar os abismos da alma, de caminhar num espaço de indeterminação, de evitar os caminhos seguros e pré-determinados da grandeza humana.