Arquivo da categoria: Poesia

Das Booty: Se non è vero, è ben trovato

Por Nívia Maria Santos Silva

Um, professor e intelectual. Outro, aluno e esportista. Um, carioca. Outro, londrino. Um, com a cabeça nos astros. Outro, com os pés no chão. Um, verborrágico e eloquente. Outro, calado e ponderado. Um, erudito. Outro, pop. Ambos amantes e poetas. Diferentes e complementares, mas, sobretudo, imprevisíveis. Lúcio e Shyno são duas personagens improváveis do livro Das Booty, que, companheiros e amantes por mais de uma década, lançaram-se numa aventura marítima na qual parecem ser mais críveis as licenças poéticas do que aquilo que pretende ser a “recriação imaginativa de fatos reais”.

 

A própria capa do livro traz o aviso: “Um verdadeiro conto de contrabando, vudu e poesia”. Um exercício de ambiguidades que é intensificado ainda mais na versão brasileira, na qual encontramos o nome “Bruno Tolentino” estampado e o destaque da informação: “Uma história real”. O autor problematiza mais a questão quando faz a ressalva: “mas não uma reportagem”. Mais do que de Pringle, é de Tolentino essa história, é ele o homenageado do livro e muitas das situações vividas pelos personagens fazem parte da biografia do poeta.  Inclusive, é dele a fotografia da capa.

 

O autor, Simon Pringle, britânico, formado em Letras, poeta não praticante, ex-vendedor, publicitário etc., tem em Das Booty o seu primeiro romance, gerado justamente porque tinha uma grande história para contar. E a história é a seguinte: indivíduos cheios de trejeitos, que são verdadeiras caricaturas de si mesmos, “Dois ex-presidiários, um aleijado, um par de sodomitas e um sujeito metido a californiano”, unem-se numa missão nem um pouco lícita: transportar haxixe de barco do Marrocos para a Espanha e seguir por terra até a Inglaterra. Já no primeiro capítulo, os integrantes dessa quadrilha são apresentados como “A turma da prensada”, para ser mais exata “uns 130 kilos, prensado de primeira”, numa referência à droga com a qual fariam o serviço de mula. Até o quinto capítulo, o plano de ação já estava todo bolado.

 

Tolentino-Lúcio é o mentor intelectual do crime. Além disso, foi apresentado no livro como gourmet, jogador de futebol, bailarino, boxeador, bruxo, poliglota, navegador, cantor, um homem de múltiplas habilidades, não só linguísticas ou intelectuais. Em meio a todas essas atividades/talentos, é apresentado como poeta: “Shyno sempre ficava perplexo por ele ser capaz de fazer poesias em meio a circunstâncias mais impropícias”.

 

A história é uma aventura marítima, mas a viagem era o modo de Lúcio “Restabelecer seu amor propre”, o que faz o relacionamento amoroso dos poetas, embora não explorado, ser um ponto nuclear da trama, pois foi pela necessidade de reaver o encanto entre eles, que Lúcio e Shyno se lançaram rumo ao desconhecido. Esse era “o único jogo que realmente era importante”.

 

Percebo outro jogo aí em exercício, um jogo de figurações. Vejo Das booty como um discurso que colabora para uma certa imagem do poeta, um retrato de Bruno Tolentino  em diálogo ambivalente com uma autofiguração laboriosamente trabalhada pelo próprio Tolentino. À sua imagem de poeta católico e conservador, são acrescidas a sua mitomania patológica, a sua “hipocondria cosmológica”, a sua paixão homoafetiva e aventureira. Paradoxalmente, saber que muito do mundo que ele nos apresenta não se realizou apenas textualmente torna a narrativa mais fantástica e sua figuração mais múltipla e complexa. Afinal, não é todo dia que se vê dois poetas, amantes, fazendo parte do “grupo mais improvável de traficantes internacionais”.

 

 

PRINGLE, Simon. Das Booty: candomblé, tráfico e poesia. Uma história real. Tradução Pedro Sette-Câmera. São Paulo: É Realizações, 2015.

 

O eu lírico e os outros eus II

Por Nívia Maria Santos Silva

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Crédito da imagem: Roman Rockwell

No último texto que produzi para este blog, eu falava do impasse em aceitar o narrador e o eu lírico apenas como elementos formais ou concordar com certa identidade deles com o eu empírico que escreve. Problematizei a questão afirmando que, ao trabalhar a obra tolentiana, reconhecer a identidade entre o eu lírico e o eu do poeta ainda não é admitir uma identidade entre eles e o eu empírico. Como prometi melhores esclarecimentos, vamos a eles.

Eu, o poeta Bruno Tolentino,

Porque nunca me dei com tiranos

Nem com títeres, vivi ao léu,

E perambulei anos e anos

Em território alheio inglês,

Francês, yanque, italiano

Etc&tal.. […] (TOLENTINO, 1995, p. 259)

Se poemas como o “Poema de sete faces”, de Drummond, no qual ele chega a evocar seu nome e o que é associado a um traço de sua personalidade (“Vai, Carlos! ser gauche na vida.”) e como o “Autorretrato”, de Bandeira, no qual ele se descreve (“Arquiteto falhado, músico/Falhado (engoliu um dia o piano, mas o teclado/Ficou de fora”), sugerem uma relação direta do conteúdo do poema com a pessoa empírica que  escreve, seja pelo nome seja pela concordância com a biografia do poeta, no fragmento do poema supracitado, a correspondência parece completa: “Eu, poeta Bruno Tolentino,”. O aposto, além de revelar nome e sobrenome daquele que escreve, nos indica a sua função social, “poeta”, como se o sujeito da enunciação e o sujeito enunciado configurassem uma só persona. Essa mescla confirma-se quando passamos investigativamente do poema para a biografia. Tolentino de fato perambulou “anos e anos/Em território alheio”. Constatações como essa parecem endossar a axiomática frase borgeana: “Toda literatura é autobiográfica”.

O trecho foi retirado do poema “A torre cabocla”, mais precisamente da terceira parte do livro “Os deuses de hoje”, chamada “Na terra provisória”. Essa última seção apresenta tom sugestivamente confessional. Tolentino chegou a afirmar que “Os deuses de hoje” é o “único livro em que, de verdade, falo de mim, sou sempre Eu que estou presente.”. Mas quem é este “eu” presente de verdade? Qual é esta verdade? Ela é possível? Qual seria o “eu” dos demais livros de Tolentino?

Pensar na aproximação entre o sujeito que fala no texto literário e seu autor remete-nos a uma discussão importante para a teoria literária: a questão da representação da realidade pela literatura. Ver a obra literária como um locus no qual se pode depreender uma realidade objetiva, apostar na impossibilidade/dispensabilidade disso ou ainda assegurar a representação como uma reinvenção dessa realidade, são algumas alternativas entre outras já apresentadas por pensadores que se debruçaram sobre o fenômeno literário (Platão, Aristóteles, Barthes, Foucault, Deleuze, Auerbach…). A escolha de um desses caminhos incide, principalmente, sobre o próprio conceito de literatura que se quer defender.

A questão é que todos eles apresentam bons rendimentos em suas controvérsias e a maneira como a realidade é reproduzida/dispensada/negada/reinventada no texto literário parece não se dar de um só modo, mas aparece manifesta de forma variada, tendo que ser estudada caso a caso já que assim como os teóricos, acreditamos que os poetas também ao produzirem sua obra poética se empenham em legitimar um conceito de literatura e lidam com o estatuto da representação de forma dissemelhante.

Em Tolentino, apostamos que a representação do sujeito poético é instituída por meio de um investimento autofigurativo. A divisão entre o eu poético e o eu empírico não se dá por meio de uma identidade inconteste nem de uma polarização dicotômica, mas se encerra em um movimento tripartido, no qual entre eles está a figura do poeta, que, como diria Premat, “é uma figura distinta do eu”. Daí a escolha pelo “Triple self portrait”, de Roman Rockwell, para ilustrar esta postagem. Ele não apresenta apenas três autorretratos simultâneos e em diferentes ângulos, mas vários se considerarmos os estudos presos à pintura que ainda nos traz outros autorretratos que parecem informar suas influências: Durer, Rembrandt, Picasso, Van Gogh. O “eu”do poema tolentiano é esse eu tripartido e fragmentado em várias referências.

Penso que existe um espaço entre a pessoa física do poeta e a sua biografia que é suscetível de ser preenchido pelo empenho do próprio autor na formação de uma imagem de si. A interpretação que traz de si mesmo (“Porque nunca me dei com tiranos/Nem com títeres, vivi ao léu,”) pretende ser uma mediação entre esse eu e o público leitor. É a essa imagem modulada que o eu poético se associa e se revela, o que significa dizer que aproximar o eu poético do eu do poeta ainda não é aproximá-lo do eu empírico. O poeta é ele também uma obra, uma construção ficcional do sujeito que tenta interferir na figuração que a recepção (leitores e críticos) fará de si. No caso de Tolentino, esse investimento não está presente apenas em “Os deuses de hoje”, onde o eu poético promete ser e se apresenta nominalmente como sendo o próprio poeta, mas também em outros como “As horas de Katharina”, no qual o eu lírico é uma freira, ou em “A balada do cárcere”, no qual o eu lírico é um prisioneiro assassino, ou mesmo em “Os sapos de ontem”, no qual o eu satírico se apresenta como um poeta incompreendido e isolado esteticamente.

A autofiguração, que nem sempre é deliberada ou consciente, é a ponte que une a atuação autoral, tanto literária quanto extraliterária, à representação que se faz do autor. Todos esses eus, a freira enclausurada, o prisioneiro e o poeta distante de sua pátria, investem na imagem do exílio (banimento, degredo, desterro), que é recorrente não só em seus versos (“Sei que duro é o exílio e que difícil/a arte de, nos pulsos tendo algemas,/escalar pedra a pedra o precipício.”), mas também em suas entrevistas e biografia (“1964 – Com o golpe militar no Brasil, parte para Europa.”), e acabam por abonar sua imagem de poeta exilado/isolado em seu sentido literal e conotativo. Em outras palavras, esse “eu” representado é, a nosso ver, fruto da gestação de uma autoimagem. Isso é o que chamamos de autofiguração, que não é a representação em si, mas o processo de construção dessa representação que não é definitiva nem estável.

Mais que isso, acredito que, ao apontar constantemente para a figura do poeta não só nos poemas em si, mas também em meio a epígrafes, datas, lugares, prefácios e posfácios, ou seja, ao deixar obsessivamente traços de sua escritura, oferecendo pistas para uma possível figuração, ao mesmo tempo em que tem uma exposição excessiva no campo literário, Tolentino não investe apenas particularmente na construção de sua imagem de poeta, mas de forma mais ampla na recuperação da importância da imagem de autor, colocando-a em evidência, empenhando-se contra o que ele chama de “teorizador ‘aprisionado’ nas ideologias formalistas”. Esse duplo movimento que a autofiguração deixa descoberto é um posicionamento crítico que traz o autor de novo à cena literária e se mostra importante para pensar seu lugar na poesia contemporânea.

Notas sobre a poesia contemporânea de Ricardo Aleixo

Por Nivana Silva

O livro Giacometti - Waltercio Caldas

“O livro Giacometti” – Waltercio Caldas

Navegando por Modo de Usar & Co, revista de poesia já mencionada aqui em um post escrito por Davi Lara, encontrei um texto sobre o artista contemporâneo Ricardo Aleixo, de autoria de Ricardo Domeneck. Trata-se de uma apresentação e apreciação do trabalho de Aleixo que, além de poeta, é “artista visual e sonoro, compositor, locutor, performador, ensaísta, curador”, conforme palavras de Domeneck.

Diante dessa caracterização, a obra multifacetada do artista mineiro é definida como uma renovação da poética verbivocovisual (à la James Joyce e concretistas), e o próprio Aleixo se autodenomina um reverbvocovisual, também enfatizando o caráter sonoro de sua obra. O poeta lança mão das dimensões verbal, sonora e visual da palavra, conjugadas, amiúde, à performance corporal, e transita em um território movediço que parece ultrapassar as fronteiras do âmbito literário, dando, assim, novo fôlego à citada expressão joyceana, pois conta com diversas possibilidades trazidas pela tecnologia – muitas das quais não estavam ao alcance, na década de 1950, de Décio Pignatari e dos irmãos Campos – e lida, de acordo com seu xará, com “a introdução de perspectivas de outros códigos e culturas”.

Pensar sobre o trabalho de um artista como Ricardo Aleixo pode servir de mote para problematizarmos questões sempre trazidas à baila aqui no blog, como as discussões em torno da autoria na contemporaneidade, o abalo das fronteiras entre o literário e o não-literário e a consequente expansão da literatura em direção a outras artes.

Nesse sentido, é possível dizer que a inscrição autoral de Aleixo faz emergir, em empreendimentos específicos de sua obra, um trabalho de curadoria, e direi o porquê. As peças sonoras do autor apresentam uma espécie de seleção e “recorte e cole”, além de edição, de outros textos que geram um outro/novo produto. “Ratos podem pensar”, de 2008, é um exemplo desse procedimento, pois o autor traz para a composição desse poema sonoro as vozes da filha e da mãe, respectivamente em processos de aquisição e de perda da linguagem, além de trabalhar com a própria voz e com a do músico alemão Benedikt Wiertz.

Outro exemplo interessante se desdobra no poema visual “Mobilestabile”, também de 2008, definido por Aleixo, e citado por Domeneck, como “radiovideoarte”, “refilmagem”, que faz referência a trabalhos anteriores do autor, possivelmente configurando uma construção de autoria remixada, que, de acordo com a reflexão de Débora Molina , “coloca em xeque as noções de originalidade e criatividade, ao menos tal como as consideramos desde o século XVIII”. Sob essa perspectiva, penso que o papel do autor enquanto curador, nesse caso, diz respeito a um processo criativo in progress – “obra permanentemente em obras” (palavras de Ricardo Aleixo) – e contempla a “literatura como uma prática de apropriação de si e dos outros”, conforme o post de Luciene Azevedo.

O processo de seleção e reunião de outras escrituras – inclusive as do próprio artista mineiro – para a composição de novos textos está em constante diálogo com o uso feito, pelo autor, de ferramentas que extrapolam a cena da página do livro. As tecnologias utilizadas (a exemplo dos recursos sonoro e visual dos referidos poemas) fomentam modos alternativos de elaboração de seus textos, estabelecendo zonas de interseção entre o literário e o não literário.

O seu “Poemanto” é emblemático nesse sentido. Há nessa criação, a meu ver, um esgarçamento de dentro do literário (lembremos que o poema, na sua forma escrita, foi publicado em Modelos Vivos, 2010) em direção a outras artes, na medida em que os versos foram deslocados, pelo autor, para um grande manto que cobre o seu corpo durante uma performance protagonizada por ele. A não fixidez e a oscilação corporal, que levam os versos a se moverem sobre o dorso do performer, sem contar uma suposta permeabilidade entre poeta e poema, podem ser representativos para pensarmos o que está tornando a literatura também permeável na inclusão/corporificação de outras artes e de outras formas, a princípio, não literárias.

Feita essa reflexão, é notável que os modos de inscrição e composição disseminados na poesia de Ricardo Aleixo remetem a questões frequentemente presentes na ordem do dia da literatura contemporânea. Embora a poesia não esteja no meu horizonte de pesquisa, arrisco afirmar que algumas problemáticas caras à teoria narrativa, na contemporaneidade, também se desdobram no âmbito poético, mas de maneira distinta, ou, nas palavras de Nívia Maria, em seu último post (referindo-se à equivalência entre sujeito lírico e poeta/ narrador e autor), “a teoria narrativa e a teoria poética estão na mesma via, mas em direções diferentes”. Trafegando nessa via, importa lançarmos um olhar atento sobre aquilo que irrompe e que está se reinventando no meio do percurso.

O eu lírico e os outros eus I

Por Nívia Maria Vasconcellos

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Durante o exame de qualificação do doutorado, fui indagada se eu estava tratando o jogo entre sujeito lírico e poeta como sendo o mesmo que ocorre na teoria romanesca entre narrador e autor. Por esse ângulo, o eu lírico estaria para o narrador da mesma forma que o poeta estaria para o autor. Considero possível essa aproximação porque tanto o sujeito lírico quanto o narrador surgiram como tentativas de responder a uma mesma pergunta: quem é o “eu” presente no texto literário? Mas a resposta é que essa correspondência não é perfeita, definitiva, nem simples.

Nos estudos das narrativas literárias, são amplamente difundidos o nível ficcional de enunciação, a cargo do narrador, uma entidade ficcional, e o nível não ficcional de enunciação, posto do autor, entidade real, aquele que escreve o romance, a novela, o conto. No entanto esse desmembramento didático entre narrador e autor, apesar de parecer elucidar a questão, não a resolve. Um exemplo que revela a vulnerabilidade dessa teoria são os romances de autoficção. Eles estão aí aos montes para embaralhar tudo novamente. Este blog, inclusive, já postou textos, como Em busca da autoficção , de Davi Lara, que tentam entender a “intromissão da voz autoral” e o esgarçamento “dos limites entre ficção e realidade” presentes nas narrativas autoficcionais.

Em poesia, o imbróglio entre sujeito lírico e poeta segue também um caminho de indefinições e fissuras. Mesmo o lirismo sendo considerado tradicionalmente a expressão da subjetividade, a identidade entre sujeito lírico e poeta não é consensual. Käte Hambuger, em seu livro “A Lógica da criação literária”, lembra que há vertentes da crítica poética que consideram a enunciação lírica como algo meramente formal, uma criação da linguagem que só existe no poema e por ele. Essa negação da subjetividade confronta a ideia mesma de lirismo como exaltação dos sentimentos pessoais e estado de alma, como assume Hegel, e aparece como uma marca da modernidade inaugurada pela despersonalização baudelairiana, conforme Hugo Friedrich. Já Adorno nos diz que “o conteúdo de um poema não é mera expressão de emoções e experiências individuais”. Para ele, essas experiências só se “tornam artísticas” quando “adquirem participação do universal”, ou seja, quando se voltam para o coletivo. Collot, por sua vez, nos diz acerca de uma “ilusão lírica” e da existência de uma alteridade no exercício poético, no qual no ato da enunciação o “Eu é um outro” (Rimbaud), por isso o sujeito lírico estaria “fora de si”.

O que me parece é que a teoria narrativa e a teoria poética estão na mesma via, mas em direções diferentes. Enquanto novas apostas teóricas da narrativa apontam para uma fragilização da ideia de narrador como uma entidade ficcional distinta do autor, os investimentos teóricos da poética, por sua vez, abalam a correspondência, muitas vezes aceita, entre eu lírico e poeta.

Mas o grande impasse pelo qual atravesso para dar minha resposta não se fecha na questão de aceitar o narrador e o eu lírico apenas como elementos formais ou concordar com certa identidade deles com o eu empírico que escreve, o desafio vai além. A obra poética de Bruno Tolentino, objeto de minhas pesquisas, tensiona essa problemática porque nela o estatuto do sujeito real se dissolve, a realidade subjetiva expressa pelo eu lírico remete a outra realidade fingida.

Lara, no citado texto, fala sobre “a construção de uma persona autoral”. A minha percepção é a de que Tolentino, na década de 1990, já se antecipava na construção dessa persona autoral e a levou a níveis surpreendentes. Se narrativas do século XXI trazem o “informe biográfico completo sobre o autor”, como afirma Luciene Azevedo (“O romance e a anotação”), na poesia tolentiana esse “informe biográfico” é ele também invenção. Quer dizer, a experiência do poeta, que coincide com os enunciados poéticos e que é informada por suas cronologias e biografias oficiais, é em grande parte também fantasiada. Em Tolentino, reconhecer a identidade entre o eu lírico e o eu do poeta ainda não é admitir uma identidade entre eles e o eu empírico. O fato de uma porção de seus poemas apresentarem teor narrativo e, com isso, um narrador, agrava ainda mais a situação. Para responder a pergunta, todas essas questões precisam ser melhor esclarecidas, mas isso fica para minha próxima postagem…

Dois sites de poesia

Maluda_duas_Janelas

Por Davi Lara

Quem circula em meios literários já deve ter ouvido inúmeras vezes que a internet é um grande facilitador na hora de um escritor divulgar sua obra e que esta ferramenta é ainda mais valiosa para os escritores iniciantes. O escritor que está iniciando a carreira tem hoje na era digital um poderoso suporte para circulação e publicação de sua obra. Mas o que é mais difícil de ouvir é que, se hoje as oportunidades para um escritor publicar e divulgar a sua obra usando o espaço virtual aumentaram, também aumentaram as chances de que ele fique perdido no oceano de novos autores que, como ele, estão lançando suas obras na rede. Assim, além de publicar e de divulgar, o escritor que queira se utilizar dessa ferramenta fascinante que é a internet precisa achar os meios para que sua obra chegue ao leitor. É nesse contexto que surgem, hoje, espaços virtuais que acabam ocupando esse papel, como uma espécie de vetor aonde o leitor pode ir em busca de novidades. É nesse sentido que eu gostaria de destacar, no post de hoje, dois blogs que serviram para mim, em meados de 2013, quando os conheci, como uma ponte com o que estava se passando atualmente, com o que os escritores pensavam sobre assuntos diversos, quais questões os inquietavam e, sobretudo, o que eles estavam produzindo. São estes blogs: o Escamandro e a revista Modo de Usar & Co. Ambos dedicados à tradução, crítica e divulgação de poesia.

O Escamandro está na rede desde 2011, é editado por Adriano Scandolara, Bernardo Lins Brandão e Guilherme Gontijo Flores, os três poetas e tradutores, os dois últimos professores universitários (Vinicius Ferreira Barth atuou no blog de 2011 a 2013). Já a Modo de usar & Co. é mais antiga, iniciou seus trabalhos em 2007. É editada, em sua versão digital, por Angélica Freitas, Marília Garcia e Ricardo Domeneck, todos poetas e tradutores. Desde o inicio de suas atividades, o site esteve relacionado à revista impressa, que tem, além dos nomes já mencionados, o poeta Fabiano Calixto na edição, e já está no quarto número. O que já é uma coisa que a diferencia do Escamandro, que nasceu exclusivamente como um blog e só publicou uma versão impressa em 2014, tendo o número dois sido publicado neste ano. Essa diferença se acentua ainda mais quando percebemos que a Modo de Usar & Co., mesmo na versão digital, se autodenomina revista e não blog. Isso se deve, ao que me parece, à intenção dos editores de dar à Modo… ares de “manifesto”, como fica claro desde o texto de divulgação do número de estreia, onde termos como “assume sua posição”, “intervenção” ao lado de menções ao “cenário contemporâneo” e aos “parâmetros críticos vigentes” ocupam um lugar de destaque. A Escamandro, ao seu turno, possui um discurso menos intervencionista, por assim dizer, assumindo o formato blog com tudo o que ele traz junto.

Salvaguardadas as diferenças, gosto de pensar os dois espaços como portais onde se pode entrar em contato com uma gama variadíssima de ideias e informações sobre a poesia. Um dos grandes atrativos que esses endereços eletrônicos trazem para o leitor curioso do que está sendo feito agora é servir como um espaço de reunião de diversos escritores que estão começando. Gosto em especial de acompanhar os poetas da minha geração ou de uma geração próxima, nascidos na transição democrática na década de 1980, nos quais é possível ver a construção de uma poética relacionada às questões históricas que todos nós compartilhamos, sob diferentes perspectivas. Além disso, tanto o Escamandro como a Modo de Usar & Co. são grandes  portais de poesia em geral, com autores de todos os tempos, do Brasil ou do estrangeiro, abrangendo um leque amplo de poéticas, de modo a atender a orientações e gostos igualmente diversificados. Eu mesmo descobri algumas pérolas nestes espaços. É interessante ressaltar também o trabalho de comentário e crítica, bastante intenso no Escamandro, bem como no Modo de Usar & Co.

O fato de ambos os sítios se concentrarem na poesia me parece de grande importância. Ainda que a internet mimetize o ritmo da sociedade capitalista com o qual a poesia se incompatibiliza, é no espaço da rede que podemos encontrar espaços de divulgação como os aqui em questão e que podem ser lidos como polos de resistência ao sistema de subvalorização da poesia no mercado contemporâneo.

Por ora, isso é o que o que tenho para dizer sobre esses dois sítios. Agora é hora de deixar que eles falem por si mesmos:

https://escamandro.wordpress.com/

http://revistamododeusar.blogspot.com.br/