Arquivo da categoria: Patrícia Leonardelli

O ator como curador do museu de si

Marília Costa

Créditos da imagem: Francis Alÿs, Déjà Vu (Walking a Painting), 1997

Ao longo da história do teatro o depoimento pessoal tem marcado presença a partir da segunda metade do século XX. Patrícia Leonardelli faz esse levantamento na tese intitulada A memória como recriação do vivido. No percurso construído por Leonardelli, na maior parte das produções, o depoimento é utilizado apenas no processo criativo, mas não aparece de maneira direta no produto final. Nos espetáculos contemporâneos (do século XXI), percebe-se o desnudamento das experiências pessoais diante da plateia sem a mediação de uma personagem. O ator torna-se também curador da própria vida no jogo autoficcional.

Em muitos espetáculos contemporâneos os atores levam para o palco do teatro acontecimentos reais, objetos, fotografias, documentos  que validam os relatos pessoais. Esse gesto pode ser considerado como um processo de museificação do eu ou de sua simetria imediata, a extrema dispersão pós-moderna do sujeito, como afirma Régine Robin ao analisar a obra de Christian Boltanski.

Em 1969, Christian Boltanski publicou o livro Pesquisa e apresentação de tudo o que resta da minha infância, 1944-1950. Trata-se de um livro de artista com apenas nove páginas, que reúne fotografias que se propõem dar conta dos restos da existência de Christian Boltanski, mas que falham se o que se espera é a exposição de uma interioridade ou subjetividade plena. O que é entregue são imagens (uma foto de turma, um pedaço de suéter, cabelo datado de 1949, uma camisa) que nada dizem da vida íntima ou personalidade do artista, nenhuma confissão, nenhum relato pessoal, nenhum contexto histórico, social ou econômico. No pouco revelado sobre a intimidade de Boltanski, a procura pela recuperação da vida se constitui como tarefa impossível. Os documentos e objetos pessoais mostram-se frágeis e não dão conta do sujeito, nenhuma existência é transposta nesse cenário vacilante e lacunar. A partir desse ponto de vista Régine Robin afirma que

Se trata de constituirse a sí mismo en museo, en especie de oficina de objetos perdidos, pero como se ve en el último ejemplo citado, la búsqueda de pleno desemboca en el vacío, en un ficticio que roza la ausencia de lugar. Al querer conservar todo, al fijarse en vitrina, en estatua, se termina por ocupar todos los lugares, o sea ninguno. Autoficcíon. Experimentación sobre las ficciones del yo, sobre un yo vacío.

Em “Matrizes: Avós, Regalos e Sobremesas” a atriz e dramaturga Marina Fervenza tenta reconstituir a história das avós. O processo criativo envolve recolher depoimentos de familiares e outras pessoas que conviveram com as avós da atriz, recorrer as próprias lembranças, delimitar os temas que gostaria de abordar no espetáculo, transformar todo o material (textos, documentos, imagens, relatos, lembranças) em cena. Nesse sentido, nota-se que a atriz no processo de ficcionalização de si e de museificação de si também atua como curadora de si, pois existe todo um investimento para a construção de sentido do espetáculo, em que a atriz e também personagem busca sugerir um caminho de leitura para o seu relato de vida. Desse modo, o espetáculo teatral autoficcional se constitui como uma espécie de visita guiada pelo autor/personagem em que as seleções e escolhas feitas por ele são úteis para tensionar a relação entre o real e o ficcional.