Arquivo da categoria: Doença

A presença do HIV/AIDS no romance A estrangeira, de Claudia Durastanti

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Roger Ballen, Wounded, 2011.

“vê-lo reduzido a uma criatura de cartilagens e tendões foi o suficiente para que entendesse, ainda criança, que era aquela doença: uma impostura, um sortilégio que desvirtua o sangue”. (Claudia Durastanti, 2019)

A estrangeira é um romance italiano (a tradução para o português é da poeta Francesca Cricelli) escrito por Claudia Durastanti e publicado no ano de 2019, sendo um dos finalistas do prêmio Strega, o mais importante da literatura de língua italiana. A obra tensiona os limites entre memória e ficção, como muitas outras obras da contemporaneidade, ao propor esse jogo entre acontecimentos da vida da autora e a produção de certa ficcionalidade.

Filha de pais com deficiência auditiva, a narradora/protagonista (re)constrói trechos da sua vida e da vida dos membros da própria família a partir das memórias e das histórias que a cercam. Assim, a narrativa é carregada de temas espinhosos, a começar pela deficiência dos pais (e a estigmatização oriunda dela), a precarização financeira, os relacionamentos abusivos e, talvez o mais importante, a eterna sensação de estrangeira experimentada pela personagem.

Entre os vários assuntos que aparecem de forma colateral durante a narrativa, a presença do HIV/AIDS chama a atenção. A principal ocorrência do tema está ligada ao adoecimento do tio da narradora. A doença que acreditam ser um “câncer de pele”, por causa de um dos sintomas (o sarcoma de Kaposi), depois de exames de sangue e consultas médicas é diagnosticada como AIDS. Esta representação, ainda que lateral, aponta para um caminho diverso, se comparada com outras produções que abordam o tema. O primeiro ponto a se considerar é que o tio da protagonista, um sujeito heterossexual, “provavelmente era homofóbico”. O acometimento da doença em um personagem normativo, que difere dos estereótipos construídos sobre o tema causa uma espécie de perplexidade na narradora e aponta para um distanciamento entre o que ela vivia e a representação social a qual tinha acesso: “As informações que tínhamos sobre a aids, todas questionáveis, não batiam com as que tínhamos a respeito da vida do nosso tio Arturo”.

Outro aspecto importante a se destacar é o fato de que a confirmação da sorologia do personagem o fez ser vítima do estigma relacionado ao HIV/AIDS. Para a narradora “a doença o fez perder sua popularidade”, visto que as pessoas pararam de frequentar a casa do tio, assim como indicavam que ela deveria tomar cuidado com os objetos usados por ele e evitar qualquer aproximação física: “diziam para lavar bem os garfos e não tocar nos pentes e barbeadores do banheiro”.

Ainda que a representação do personagem com HIV/AIDS no romance se aproxime muito de outras comuns na produção literária mundial, visto que a deterioração corporal é uma imagem recorrente e a origem da infecção está relacionada a uma mulher que “teria sido prostituta e usuária de heroína”, a obra tem desdobramentos pouco vistos nas produções que abordam o tema. O fato de a doença estar presente em um membro de uma família tradicional de imigrantes italianos vivendo nos EUA, o fato dele ser um sujeito que tem um trabalho que exige força física (diferentemente dos escritores, jornalistas e redatores tão comuns em outras produções sobre o tema) e de estar tão longe do universo da homocultura são diferenciais de A estrangeira, principalmente porque apontam para uma representação mais diversa.

A abordagem do tema do HIV/AIDS na produção de Claudia Durastanti, mesmo que de forma discreta, é atual e importante pois tensiona e coloca em discussão a representação literária da doença em contraste com a sua representação social. O romance acaba por indicar que o que se crê sobre o HIV/AIDS não necessariamente corresponde aos resultados da experiência com o vírus (e/ou a doença).

HIV/AIDS nas narrativas literárias: como nomear a doença?

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Leonilson, 34 com scars, 1991(bordado e tinta acrílica sobre voile).

Peste gay, câncer rosa, doença dos 5H, GRID (imunodeficiência relacionada aos gays, sigla em inglês) eram registros utilizados para se referir à AIDS. Assim, desde sempre, houve uma complexa problemática no registro das terminologias sobre o tema. A “epidemia discursiva” (em especial nos textos literários) que se estabeleceu em relação à questão deixou mais evidente essa problemática, levantando discussões importantes sobre a AIDS e o HIV.

Diante dos avanços nas pesquisas no campo biomédico, a AIDS (doença/síndrome) foi “separada” do seu agente infeccioso, o  (vírus) HIV. Desde então as siglas passaram a ser mais (e acertadamente) utilizadas para falar sobre esses dois elementos da epidemia, a doença em si e a infecção viral que pode levar a ela.

Os termos AIDS e HIV (que superaram a condição de meras siglas há tempos) tendem a aparecer pouco nas narrativas ficcionais. Não é incomum que, em textos que falem dessa temática, haja a ausência quase total desses registros. É mais corriqueira a representação de algum elemento da sintomatologia da AIDS, como os gânglios linfáticos (a inflamação deles), a febre, o cansaço, a fraqueza, a magreza, a tosse, o sarcoma de Kaposi, entre outros. Essas referências, que aparecem muitas vezes em conjunto, tendem a ser o ponto perceptível sobre a tema em vários autores, como, por exemplo, em Caio Fernando Abreu e Bernardo Carvalho.

Também a palavra “doença”, registro mais genérico, é muito utilizada como substituta do termo AIDS. Isso pode ser visto, por exemplo, no título do livro do Jean-Claude Bernardet, A doença: uma experiência e ou na enfermidade misteriosa que acomete o protagonista de Vinho da noite, de Caique Ferreira. Referências aos medicamentos também aparecem com alguma frequência nos textos literários sobre o tema. É comum vermos menções ao AZT (azidotimidina), à zidovudina ou aos hiperônimos. Esses últimos são muito comuns na “literatura pós-coquetel, sobre a qual escrevi em post anterior.

Embora seja comum a associação entre os dois termos,  HIV/AIDS, com o desenvolvimento de tratamentos mais efetivos, a infecção não necessariamente leva à doença. Mas nas formas ficcionais, o diagnóstico positivo para a presença de HIV costuma ser o ponto de partida para desdobramentos da trama e mais especificamente para a identidade do personagem portador do vírus.

Já a doença, grafada muitas vezes como Aids ou aids, foi a forma primeira como o tema efetivamente apareceu na literatura. Por que me interessa tanto observar essas pequenas nuances no modo de nomear a doença? Mesmo que seja possível constatar nas produções literárias um certo arrefecimento das representações da doença desde a descoberta de um tratamento eficaz pela biomedicina, vale a pena explorar o próprio uso das formas de nomear a AIDS como uma espécie de metáfora para representá-la.