Por Nívia Maria Vasconcellos
Em textos anteriores, apresentei o poeta Bruno Tolentino, escrevi sobre o livro Os sapos de ontem e como ele fez da polêmica uma tomada de posição. Podemos dizer, entretanto, que não só esse livro, mas que toda a obra ensaística tolentiana, que acompanha a sua obra poética por meio de prefácios e posfácios, é uma defesa do que ele entendia como fazer poético; e suas poesias, por sua vez, apontam um caminho.
Seus textos críticos e poéticos patrocinam o sistema de valores literários no qual acreditava, elegendo e excluindo modelos estéticos a fim de criar um habitus literário no qual o privilégio romântico dado ao conteúdo conviveria, complementarmente e não paradoxalmente, com as formas da estética clássica sem perder de vista a herança modernista de um Drummond e de um Bandeira. Nem forma nem conteúdo se sobreporiam, mas sim formariam um todo coerente e coeso no qual o aspecto formal, assim como a linguagem, não seria um fim e nem apenas um meio, mas a própria confirmação do pensamento literário e filosófico que externava.
Seu livro O mundo como ideia é o exemplo mais rematado disso. Fruto de 40 anos de labor poético (1959-1999), essa obra é a compilação de sua lição de modelagem. Introduzida por 10 ensaios, o livro já se inicia delimitando sua Ars Poética. Suas poesias, inéditas ou revisitadas, colocam em prática a sua filosofia da forma, por meio da qual demarca suas influencias, escolhas e contrapontos com poéticas diversas, realizando um panorama geral da arte e, em especial, da poesia que, reflexiva, dobra-se muitas vezes sobre si mesma e sobre questões que envolvem os limites do real e do ideal.
Em seu primeiro texto, O cego nu: um exórdio, Bruno já comunica os anseios de seu “livro-arena” no qual “lutava por uma filosofia da forma que me permitisse exercer sem má consciência o grave, o difícil ofício da poiesis.” (p. 16). Seu principal embate é consigo mesmo, digladiando-se entre o mundo-como-tal e o mundo-como-ideia, que lhe serve de título, por meio de diálogos com Aristóteles e Platão entre outros filósofos, pintores e poetas: Pascal, Kant, Mallarmé, Bonnefoy, Ungaretti, Botticelli, Rimbaud, Drummond, Bandeira, Cecília Meireles etc.
O mundo como ideia foi composto como uma construção arquitetônica, resultado de anos nos quais o poeta debruçou-se sobre ele “Compondo-o, decompondo-o e recompondo-o” (p. 20). Dividido em três partes (Livro primeiro: Lição de modelagem; Livro segundo: Lição das trevas e Livro Último: Imitação da música), nele, encontramos poemas como este:
POST-SCRIPTUM A UMA TRADUÇÃO
Pobre Paul Valéry, queria tanto
um vento que o arrancasse ao seu torpor!
Mas em vez de cantar queria o Canto,
a Coisa Pura sem tirar nem pôr,
sem tocar nada, a vaga, a chaga ou a flor…
Como esperar que um vento alasse o manto
da sua estranha estátua de isopor
– a Ideia – se o seu hábil esperanto
sem esperança de interlocutor,
era aquela magia sem quebranto,
a geometria? E como ser cantor
do mundo-como-ideia sem no entanto
atar as mãos ao vento, esse escultor
a desmanchar estátuas por enquanto…? (p. 342)
Publicado logo após a tradução que Bruno realiza do poema Le Cemitiêre Marin, de Valéry, esse soneto é um exemplar do pensamento tolentiano sobre a criação poética. Modelo do que se convencionou chamar de poésie pure, ou poesia absoluta, O Cemitério marinho reúne um ideal poético a ser alcançado, no qual as palavras e as formas, não o conteúdo, seriam o real discurso do fazer poético, numa progressão do que já anunciara Baudelaire e efetivara Mallarmé, sem esquecermos o esteticismo da Art pour l’art. Ao traduzi-lo, Bruno comunica ideais valerianos, e, ao publicar o Post-Scriptum, faz-lhes, mais que um adendo, um contraponto.
“Em vez de cantar querer o Canto” é ter o poema como um fim em si mesmo. A “Coisa pura”, ou seja, a poesia pura não era a defesa de um ideal de pureza, mas sim de uma poesia que toma o conteúdo pela forma e abdica da metafísica, da subjetividade do lirismo clássico em busca de uma materialidade poética na qual a linguagem prevaleceria ao pensamento.
Para Bruno, a “Ideia” é “uma estranha estátua de isopor”, passa uma impressão de concretude que não se sustenta, e a poesia pura, formalista e autotélica, corre o risco de tornar-se ininteligível, “um hábil esperanto sem esperança de interlocutor”, uma “geometria” que se torna tão abstrata que perde sua capacidade de comunicar. Esse seria o centro do que ele chama de mundo como ideia, isto é, a construção conceitual de uma realidade que acaba por ser deformada em poesia, uma lição de trevas, a qual o próprio Valéry traiu e da qual Bruno não passou incólume.
É ali e ali só que hão de durar,
para sempre e em lugar
da agonia da luz e seu mistério,
figurações de um fogo-fátuo apenas,
irretocáveis e imutáveis cenas
de um bailado de sombras ao sol-pôr:
a dança aritmética e lunar
da luz conceitual num cemitério
que até Paul Valéry, fino amador
de sombras, desistiu de idealizar. (p. 115)
TOLENTINO, Bruno. O mundo como ideia. São Paulo: Globo, 2002.