Arquivo do mês: julho 2015

Um passeio no bosque da autoficção

11758949_887485014620643_116781503_n

Por Davi Lara

Quem quer que se aventure no bosque da autoficção, logo vai perceber que ele está longe de ser objeto de consenso crítico. Bem longe disso, a autoficção é um conceito controverso que está marcado pela polêmica desde suas origens. Num post recente aqui do blog, Nilo Caciel comenta e resume, sob a forma de verbete, alguns dos momentos decisivos da história crítica da autoficção, dando uma atenção especial ao seu episódio fundador (para ler o post clique aqui). Como Caciel aponta, o termo ganhou uma fortuna crítica errática, que só cresceu nesses quase quarenta anos de história, sem que, no entanto, o tom polêmico diminuísse.

Em um texto de 2007, o crítico francês Jean-Louis Jeanelle (2014, p. 127) lança mão dessa definição irônica do termo: “a autoficção é uma aventura teórica”, definição cuja ironia não deixa de conter uma verdade. Levando-se em conta as muitas divergências em torno do termo, se pode dizer que o pesquisador ou mesmo o leitor curioso que queira se lançar nessa selva teórica terá seu acesso negado a uma grande extensão do seu território se não souber o francês, idioma no qual é escrita a maioria dos textos sobre o assunto. É nesse contexto que o livro Ensaios sobre a autoficção, organizado por Jovita Maria Gerheim Noronha, surge como um importante empreendimento editorial.

Nessa antologia de ensaios, o leitor brasileiro é apresentado a sete ensaios (e uma entrevista) de teóricos franceses, alguns deles traduzidos pela primeira vez para o português. Se não se pode dizer que os ensaios tratem do tema de maneira exaustiva (o que, ademais, seria impossível), pode-se perceber o esforço da organizadora em disponibilizar textos de modo a dar uma ideia panorâmica da situação do debate crítico em torno da autoficção no país de origem do termo. Em alguns ensaios, os autores discordam entre si, defendendo definições conflitantes, ou usando abordagens distintas. Em outros, os ensaístas se preocupam em fazer um apanhado de outros textos sobre o termo, traçando genealogias teóricas, apontando filiações e discordâncias entre as diversas contribuições críticas.

Assim, o leitor vai tomando contato com as principais questões da autoficção. No parágrafo final do post de Caciel, publicado aqui neste blog, o autor lança uma pergunta: quando falamos em autoficção trata-se de um tipo de narrativa nova ou é, ao contrário, um nome novo para uma prática antiga? Como representante desta última opinião, temos Vicente Colonna, autor da dissertação Autofoction & autres mythomanies littérais, escrita em 1989 sob a orientação de Gérard Genette, e reescrita e publicada em 2004 (o texto do livro é um excerto dessa última versão), onde o autor estabelece uma tipologia do gênero autoficcional que remete a narrativas tão antigas como A divina comédia, de Dante, e os escritos de Luciano de Samósata. Do outro lado desta contenda, está Philippe Gasparini, cujo ensaio “Autoficção é o nome de quê?” parte da hipótese de que a autoficção “se aplica, em primeiro lugar e antes de tudo, a textos literários contemporâneos”, pois essa hipótese lhe “parece ser, ao mesmo tempo, a mais fecunda do ponto de vista da poética e a mais conforme à gênese do conceito de autoficção.” (GASPARINI, 2014, p. 181)

Eu mencionei essa questão, mas poderia mencionar outras, como a que envolve o gênero (autoficção é ou não um gênero?), ou a relativa ao nome próprio do autor (tem que existir a homonímia entre autor, narrador e personagem para ser autoficção?). Retomei a interrogação privilegiada também por Caciel, pois o debate em torno da atualidade do termo autoficção tem uma importância especial para mim, já que, em minha pesquisa, o conceito aparece como uma aposta para a compreensão do tempo presente, o qual, ao meu ver, se deixa observar a partir dos dilemas desse “gênero” (se assim o podemos chamar). Seja como for, qualquer que seja o interesse do pesquisador ou do leitor curioso, esses Ensaios sobre autoficção podem servir como um guia de viagem para quem deseja conhecer mais a história e a conformação da aventura teórica, ainda em curso, da autoficção, sem precisar, para isso, continuar a depender dos textos de segunda mão (resenhas e resumos sobre o termo) e entrar em contato direto com alguns de seus principais textos.

NORONHA, Jovita Maria Gerheim (Org.). Ensaios sobre a autoficção. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. 245 p.

Representações de escritor: Um beijo de Colombina

livro_beijoa (1) (1)

Por Neila Brasil

Adriana Lisboa, escritora carioca, começou a carreira literária em 1999, com o romance Os fios da memória, e recebeu vários prêmios e amplo reconhecimento crítico, sendo traduzida para vários países.

Um beijo de Colombina, publicado em 2003 pela editora Rocco, revela um interessante processo em sua construção, considerando-se as estratégias narrativas. O livro conta a história de Teresa, uma escritora que planejava compor um romance baseado em poemas de Manuel Bandeira. Interessa ressaltar que, cada capítulo do romance recebe um título oriundo da obra Estrela da Vida Inteira, estabelecendo um espaço de jogo entre a escrita de Adriana Lisboa e a poesia do escritor modernista.

Adriana Lisboa em Um beijo de Colombina cria a ficção dentro da ficção: escreve um livro sobre outro livro que deveria ser elaborado pela personagem Teresa: “Teresa me falou menos dele do que de seu próximo projeto, um romance baseado em poemas de Manuel Bandeira” (LISBOA, 2011, p. 5).

O narrador do romance é um jovem professor de latim que tenta compreender como ocorreu a morte, tão inesperada, quanto misteriosa, de sua namorada Teresa, que morrera afogada no litoral fluminense. Angustiado pela perda, ele entra no mundo da escritora e vai tecendo, a partir de suas memórias, os principais acontecimentos relacionados aos oito meses de convivência com Teresa: “Quando aconteceu o acidente, o afogamento, fazia oito meses que morávamos juntos” (LISBOA, 2011, p. 3).

Em Um beijo de Colombina, a representação da figura do escritor aparece bem próxima da realidade de muitos autores contemporâneos.  Teresa, a escritora-personagem era formada em letras, dava aulas particulares de português para pagar o tempo que era dedicado à atividade de escrita de seus textos. Ficamos sabendo através do relato do narrador que Teresa já havia publicado dois livros de contos, por uma editora menorzinha, e logo em seguida um romance por uma editora importante. A escritora que dava aulas de português para sustentar a atividade de escrita é premiada, dessa forma, abandona as aulas e passa a se dedicar apenas aos seus projetos: […] “em novembro ela ganhou o primeiro prêmio, no princípio de dezembro, como se fosse mágica, – como se fosse romance -, o segundo, e os alunos de português viraram águas passadas” (LISBOA, 2011, p. 7).

É interessante pontuarmos que a tematização no romance de episódios que envolvem a consolidação da carreira de um escritor, como a publicação do primeiro livro,  as premiações que recebe,  os eventos literários dos quais participa, e as entrevistas que concede acabam compondo o texto do autor. Em Um beijo de Colombina, o narrador revela ao leitor as suas impressões sobre a escritora-personagem, e nos permite pensar na figura do escritor real, que assim como a personagem Teresa muitas vezes precisa conciliar a atividade da escrita com outros trabalhos para garantir a sobrevivência, equilibrando-se entre a profissionalização como escritor e uma segunda vida, para falar como Bernard Lahire, que lhe garanta a manutenção financeira.

Assim, em Um beijo de Colombina, Lisboa também possibilita aos estudiosos da literatura contemporânea refletir sobre as diversas possibilidades de representação do escritor. Além de construir, uma narrativa onde o lirismo é predominante, Lisboa consegue apresentar parcialmente como funciona a trajetória de uma escritora por meio da personagem Teresa. O livro abre espaço, portanto, para refletirmos sobre a condição do escritor contemporâneo.

 

LISBOA, Adriana. Um beijo de Colombina. [recurso eletrônico] Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2011.

Lourenço Mutarelli e a experimentação com a linguagem dos quadrinhos

imagem post tais

Por Taís Veloso

Quando meu pai se encontrou com o et fazia um dia quente (2011) de Lourenço Mutarelli lança um desafio ao leitor acostumado a ler histórias em quadrinhos. Mais comumente, o gênero, tal como nós o conhecemos, apresenta separação entre um quadro e outro na apresentação visual das histórias. Essa separação, na linguagem técnica, ganha o nome de sarjeta, segundo McCloud, e é responsável não apenas por instigar o leitor à participação, mas também para criar as dimensões temporais e espaciais através da linguagem visual. Assim, a sarjeta é responsável por grande parte da magia e mistério que existe na essência dos quadrinhos.  (MCCLOUD,2002, p. 66)

Na publicação de Mutarelli, que apresenta uma ilustração a cada página, não traz os tradicionais balões com os diálogos entre os personagens e está cheia de referências silenciosas aos autores de eleição de Mutarelli, como Bradbury, Burroughs, Bortolotto, além do próprio autorretrato do autor, o leitor tem de montar um quebra-cabeças, já que, em uma página, encontramos uma imagem, mas, às vezes, apenas em um momento à frente, vamos poder reconstruir certa lógica narrativa. Dessa maneira,  as imagens também constroem uma narração.  Segundo Eisner (2005), na forma de narrativa gráfica o escritor e o artista preservam sua soberania porque a história vem do texto e é embelezada pela arte gráfica. Com Quando Meu Pai… , Mutarelli parece ter resolvido bem essa tensão entre imagem e texto.

MUTARELLI, Lourenço.Quando meu pai se encontrou com o et fazia um dia quente.Companhia das letras, São Paulo,2011.

MCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. M.Books, São Paulo, 2002.

EISNER, WILL. Narrativas Gráficas. Devir livraria, São Paulo, 2005.