Joázila Santos
Créditos da imagem: imagem retirada do pai de Annie Ernaux, em Yvetot, usada como capa da obra
O lugar (2021) – arquivo pessoal da autora.
Em minha trajetória acadêmica, as mulheres escritoras sempre foram alvo e guia. Na graduação, Virginia Woolf; no mestrado, Sylvia Plath; no doutorado, Annie Ernaux. No entanto, o que constantemente rodeava qualquer fase da pesquisa de graduação e mestrado eram as complexidades biográficas percebidas nos textos lidos. Foi assim que a autora francesa, Annie Ernaux, entrou em minha vida acadêmica, a partir da leitura de Os Anos (2022): apagando a linha que separa escrita literária e vida pessoal, incluindo as complexidades sociais trabalhadas pela memória.
“Não existe um ponto de interseção entre o que acontece no mundo e o que acontece com ela, são duas retas paralelas, uma é abstrata, toda feita de informações que chegam mas são logo esquecidas, e a outra é fixa.”, diz Ernaux, ao refletir sobre si em terceira pessoa e, simultaneamente, sobre seu pai e a França pós-guerra. Quando li esse trecho, em janeiro de 2022, enquanto produzia ainda minha dissertação, um novo horizonte se abriu e o interesse pela escrita de si se aprofundou ainda mais, o que acarretou a construção de projeto para a seleção de doutorado com a ousada escolha de usar o termo “autoficção” para a produção literária de Ernaux.
Porém, ao ler a própria autora negar que sua escrita seja ficcionalizada, mais uma gaveta se abriu na minha estante de horizontes da vida acadêmica. O interessante desse processo é que isso aconteceu pela discordância que tive com a autora e diversas questões surgiram: será que eu tenho cacife para discordar de Ernaux? Será que isso é ser pesquisadora? Será que eu ainda a vejo como autoficção? O que ela entende por ficção? Será que para ela é um mero recurso de invenção?
Essas questões ainda permanecem.
Contudo, em uma das disciplinas do doutorado, conheci a escritora Saidiya Hartman, cujo manejo desse limite entre ficção ou não – ironicamente em um texto considerado não ficção- se dá pela busca para atrelar a memória coletiva à memória individual.
O texto a que me refiro é Perder a mãe – uma jornada pela rota atlântica da escravidão, cujo prólogo expõe o projeto pessoal e profissional da autora, que visa a recuperar por meio de uma viagem à Africa a rota da escravidão que inclui seu passado e o de sua família por meio do que a autora costuma nomear como não-ficção especulativa.
Créditos da imagem: imagem retirada do livro Perder a mãe – uma jornada pela rota atlântica da escravidão (2021)
Na foto, que aparece em meio ao texto, temos a imagem de duas senhoras. Não há legenda. Comentando a absoluta ausência nos arquivos que visitou de qualquer registro de sua tataravó, a foto é um enigma porque desdiz o texto e se expande na direção de uma memória coletiva roubada pela escravidão e pelo colonialismo, apontando para o destino de tantos outros sujeitos apagados e esquecidos pela história.
E por que faço aqui a conexão de Ernaux com Hartman?
Não apenas porque nas obras da escritora francesa há um intenso diálogo (sempre ambíguo) entre fotos e texto, mas também porque, recuperando a história familiar, como a de seu pai, em Os anos, Ernaux está recuperando uma parte da história dos homens operários e microempreendedores da França do século XX. O que significa também uma maneira de falar de si falando de outros.
Talvez, então, a nomenclatura “não-ficção especulativa” (ainda mais pertinente que a autoficção?), possa ser útil para pensar esse deslocamento e a incidência da primeira pessoa em muitos textos do presente.
Continuemos o trajeto.