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Vidas que se contam

Marília Costa


José Leonilson, filme “A paixão de JL”

Desde antes de meu ingresso no mestrado as narrativas autoficcionais vêm despertando meu interesse. Neste post pretendo comentar brevemente o romance Baseado em fatos reais da escritora francesa Delphine de Vigan para pensar o que considero uma tendência da literatura contemporânea: a utilização da narrativa em primeira pessoa para criar uma tensão entre a biografia do autor e a ficção criada por ele sobre sua própria vida.

O livro Baseado em fatos reais, narrado em primeira pessoa, é a história de uma escritora, cujo nome é o mesmo da autora. A personagem narradora, Delphine, está diante de uma crise na carreira, pois, após fazer grande sucesso com seu último livro autobiográfico, não consegue escrever mais, a ponto de ter crises de pânico só de pensar na ideia de retornar ao trabalho de escrita. Ficamos sabendo que a origem da crise tem a ver com a reação do público à sua obra, que interpreta a narrativa como realidade, não como ficção, e com a reação da crítica que vê na autoficção um modo de a autora se promover mercadologicamente com a exposição narrada da intimidade de familiares e amigos. Ou como a própria narrativa nos conta:

“Eu havia escrito um livro autobiográfico cujos personagens tinham sido inspirados em pessoas de minha família. Os leitores haviam se apaixonado por eles, me perguntado o que acontecera com um ou com outro. Tinham me confessado uma afeição particular por determinados personagens. Os leitores tinham questionado a realidade dos fatos. Tinham feito sua investigação. Eu não podia ignorar isso. E o sucesso do livro, no fim das contas, talvez fosse fruto apenas dessa característica. Uma história de fatos reais ou considerada como tal. Apesar do que eu dizia. Apesar das precauções que eu usara para afirmar que a verdade é elusiva e reivindicar minha subjetividade. Eu tocara na realidade e a armadilha havia me capturado.”

Em meio ao bloqueio criativo, Delphine conheceu L., uma ghostwriter, que de início se apresenta como um ombro amigo, mas depois começa a interferir nos rumos da narrativa: enquanto Delphine deseja embarcar na ficção, L. incentiva a escritora a mergulhar mais profundamente na sua biografia para dar aos leitores o máximo de verdade possível:

“As pessoas sabem que apenas a literatura permite chegar à realidade. As pessoas sabem o quanto é custoso escrever sobre si, sabem reconhecer quem é sincero e quem não é. E, acredite em mim, elas nunca se enganam. É, as pessoas, como dizem o seu amigo, querem a verdade. Querem saber se ela existiu. As pessoas não acreditam mais na ficção e até desconfiam dela, devo dizer. Elas acreditam no exemplo, no testemunho. Olhe a sua volta. Os escritores se apropriam dos fatos corriqueiros, multiplicam as introspecções, as narrativas documentais, demonstram interesse pelos esportistas, pelos bandidos, pelas cantoras, pelos reis e rainhas, perguntam sobre suas famílias. Por que você acha que fazem isso? Porque esse material é o único válido. Por que voltar atrás? Você não deve travar a luta errada. Você está fugindo, fingindo que vai voltar a ficção por um único motivo: porque se recusa a escrever seu livro-fantasma.”

O argumento de L. não vale apenas para as produções literárias: o público nunca esteve tão interessado nas histórias verdadeiras, supervalorizando, às vezes, uma obra porque é baseada em fatos reais. Esse gosto pelo real também está presente no cinema, na produção de séries disponíveis em canais da internet. Mas o que parece interessante no livro de Vigan é que a narrativa assume um tom especulativo sobre o próprio termo autoficção e sua potencialidade, uma dicção ensaística que quer tatear, apalpar os problemas da relação entre a vida e sua narração, testando seus limites, o que me parece um gesto muito presente na produção da literatura atualmente.