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Espaço biográfico e escrevivência

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: Adão e Eva no Paraíso Brasileiro (2015), de Rosana Paulino.

Leonor Arfuch toma emprestado o termo espaço biográfico de Philippe Lejeune e realiza um corte sincrônico para relacioná-lo com o universo narrativo contemporâneo em que ”o eu se desdobra em múltiplas máscaras”. Dessa forma, ela não busca definir a especificidade dos termos que possuem incidência biográfica, mas tensionar como a ânsia pela presença e ”sua insistência nos mais diversos registros do discurso social” poderia apresentar como se configura a subjetividade em nosso tempo.

Para alguns, a reconfiguração dessa subjetividade possui um viés negativo já que temos grande exposição da intimidade, excesso de narcisismo e indistinção entre vida pública e privada. Esse tipo de crítica recai principalmente nas obras de autoficção, por ser um termo que vive em uma zona nebulosa e que desestabiliza o estatuto ficcional da narrativa ao mesmo tempo em que deixa em suspenso o caráter verídico do factual.

No entanto, termos como escrevivência também possuem influência do biográfico, mas parecem estar inseridos dentro dos aspectos positivos que Arfuch aponta sobre a guinada subjetiva. Textos em que vemos ”estratégias de autoafirmação, recuperação de memórias individuais e coletivas, busca de reconhecimento de identidades e minorias e afirmação ontológica da diferença”, elementos que estão associados ao termo de Evaristo, como comentei em posts anteriores.

Uma obra que podemos observar através desse viés é Solitária, de Eliana Alves Cruz.  Ela aborda a história  de Eunice e Mabel, mãe e filha que passam a maior parte de suas vidas em um quartinho de empregada.  A narrativa poderia ser pensada através da chave de leitura da escrevivencia por ter como foco a subjetividade do sujeito negro fora dos estereótipos estabelecidos; pela reconstrução da história contada sobre os corpos das mulheres afro-brasileiras através da tomada de consciencia racial de mãe e filha, além da circularidade temporal e a simultaneidade de vozes.

Uma das tensões entre o lado de dentro e o lado de fora no romance ocorre por meio da relação com um episódio trágico recente, a morte de Miguel, de 5 anos, em Recife. No capítulo, Eunice precisa terminar de preparar a refeição da festa de despedida de Camila, filha da dona da casa, e pede que a jovem olhe um pouco Gil, já que não havia mais ninguém no momento e a mãe dele, também empregada da casa, havia saído para comprar ingredientes. Infelizmente, Camila deixa o menino sozinho em um quarto e ele cai da cobertura do prédio.

Nessa cena, o corte que Eunice sofre na mão, que ocorre no mesmo momento em que a criança sofre a queda, estabelece um paralelo entre essa dor que é individual, mas também de todo um grupo. As narrativas parecem atravessar a tessitura textual e interpelar o leitor a pensar sobre o que ele vivenciou ao estabelecer relação com outros discursos que ecoam na sociedade.

Para Arfuch, o espaço biográfico pode ser útil para compreender a contemporaneidade e, através da relação com outras disciplinas, as configurações que temos hoje de sujeito, subjetividade, e espaço, por exemplo. Sendo assim, nos próximos passos da minha pesquisa pretendo discutir sobre como a multiplicação de vozes como a de Eliana Alves Cruz e Jeferson Tenório estão ecoando dentro desse espaço ao utilizar essa perspectiva biográfica que se aproxima do coletivo e que atravessa a esfera pública. 

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Sobreviver ao real

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: Pintura habitada (1975), de Helena Almeida

Em “Autoficção e sobrevivência”, Eneida Maria de Souza parte da obra Desarticulaciones, de Sylvia Molloy, para comentar o termo de Doubrovsky. A autora relaciona a autoficção à sobrevivência de duas maneiras. Souza afirma que Molloy elabora uma obra autoficcional sobre a amiga que sofre de Alzheimer como “uma forma de reconquistar sua imagem por meio da palavra” e ao mesmo tempo investe na “sobrevivência das formas”, já que a autobiografia continua presente na tensão provocada pela autoficção.

Para a crítica, a autoficção embaralha “o aspecto referencial da autobiografia e a pretensa autonomia da ficção”, pois os leitores ao mesmo tempo em que se prendem aos aspectos referenciais, ficam presos em um pacto ambíguo no qual o autor desestabiliza o real ao ficcionalizar elementos da vida. Apesar de valorizar essa oscilação, Souza em alguns momentos do texto acaba pendendo para um dos lados,  já que comenta que “Entre a autobiografia e o ‘romance do eu’ a ficção se coloca como intermediária’’, o que  faz parecer que a ficcionalidade é o fiel da balança.

Mas pensando na ideia de sobrevivência, me interessa discutir o que poderia significar essa postura em obras autoficcionais e também nas chamadas escrevivências.

Como a própria Eneida comenta, na obra de Molloy há o interesse de ficcionalizar um momento difícil, uma dor. Vemos essa ação em muitas obras autoficcionais brasileiras como em O pai da menina morta, de Tiago Ferro, O filho eterno, de Cristóvão Tezza, e A chave de casa, de Tatiana Salem Levy. Nessas obras, os personagens buscam sobreviver à dor, reelaborar a vida para poder seguir em frente, e a tensão entre vida e ficção é um  artifício literário que estimula a ambiguidade e torna contraproducente enxergar no autor a mesma dor sem nenhuma mediação. Pelo menos, é isso o que parece sugerir a resistência de muitos autores ao reconhecimento da dimensão autobiográfica de suas produções.

Mas será que esse mesmo efeito está presente nas obras da escrevivência? O termo elaborado por Conceição Evaristo busca trazer visibilidade para a população afro-brasileira que foi apagada ou que era estereotipada dentro da literatura. Dessa maneira, sobreviver na escrevivência representa tanto a sobrevivência dos personagens que passam por situações de racismo e reivindicam o direito de serem ouvidos e vistos, quanto dos próprios autores, sujeitos negros que possuem experiências compartilhadas com seus personagens, como acontece em O avesso da pele, de Jeferson Tenório e Becos da Memória, de Conceição Evaristo.

A ambiguidade é um terreno delicado. Alguns autores parecem assumir a escrevivência para suas obras a partir da experiência compartilhada de negritude com os personagens, mas, ao mesmo tempo, temem que essa vivência reduza suas obras a testemunhos. A noção de sobrevivência, destacada no argumento de Souza, para pensar os projetos da escrevivência e da autoficção tem rendimentos distintos. No entanto, algo parece persistir em ambos: certa suspeita da diminuição do valor literário das produções caso sejam filiados à autobiografia, mesmo que as narrativas  provoquem o olhar do leitor para o lado de fora.

O eu e o nós. Autoficção e escrevivência

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: Obra da série Geometria Brasileira, de Rosana Paulino (Foto: Reprodução/ Isabella Matheus)

Como já mencionei em posts anteriores, busco investigar as tensões entre autoficção e escrevivência nas obras A chave de casa, de Tatiana Salem Levy, e O avesso da pele, de Jeferson Tenório. Hoje gostaria de explorar como ambos os romances, cada um à sua maneira,  exploram a experiência autobiográfica em suas narrativas.

É comum a crítica se referir ao romance A chave de casa como autoficção.  Na obra de Tatiana Salem Levy, conhecemos a história de uma jovem (que não ganha nome na narrativa) que se sente paralisada depois da morte da mãe e que também se recupera das feridas deixadas por um relacionamento abusivo. À medida que  lemos, podemos observar ao menos duas coincidências biográficas entre a personagem e a autora: ambas têm a mesma idade e são judias. Esse jogo fica mais evidente em relação a Salem Levy se acompanhamos as entrevistas e as correspondências com sua história pessoal, confirmadas ou negadas pela própria autora em relação a sua personagem na obra.

Explorando essa ambiguidade, a narrativa insiste em confrontar as certezas de quem narra, já que vamos acompanhando contraversões do que já tínhamos lido, como nas passagens em que a mãe, que narra entre colchetes, desmente as memórias da filha.

Nasci fora do meu país, no inverno, num dia frio e cinzento. Duas horas de contração sem poder parar, porque eu não tinha virado e a anestesista não estava lá. Penou, a minha mãe, para me ter. E, quando vim ao mundo, ela nem pôde me segurar nos braços, tinham-lhe dado anestesia geral. Pior: quando acordou, percebeu que lhe tinham feito um corte na vertical.
 
[Lá vem você narrando sob o prisma da dor. O exílio não é necessariamente sofrido. No nosso caso, não foi. (…) Quando você nasceu, não estava frio nem cinzento. Não penei para parir. Não tomei anestesia geral nem tenho cicatriz, você nasceu de parto normal.]
 

Assim, chama a atenção o fato de que a narrativa parece emular uma conversa na qual a narradora expõe seu sofrimento, dirigindo-se a um “você”, como maneira de demonstrar sua dor.

Você escondeu o quanto pôde, evitou a palavra até onde foi possível. Você assegurou-me de que não morreria doente. De que não morreria. Você assegurou-se disso, agarrou-se a essa certeza que criara para si, mas também para mim. Eu acreditei, você não morreria. […] Não importa aonde for, faremos outro pacto e, se mais tarde for preciso, outro, e depois outro e outro e outro. Faremos quantos pactos forem necessários, mudaremos de mundo quantas vezes nos exigirem, mas uma coisa é certa: minhas mãos estarão sempre coladas às suas.

Vamos pensar agora em outro romance, O avesso da pele, de Jeferson Tenório. Aí, conhecemos Pedro, um jovem que perdeu o pai para a violência policial e que, vivendo o luto, resgata a memória do racismo atrelado a toda uma vida. Na obra, o narrador não deseja criar um jogo ambíguo com o leitor, no sentido de que ele diz e não diz que Pedro é (e ao mesmo tempo não é) Tenório. Não poderíamos aqui falar exatamente em uma autoficção, pois nada na narrativa aponta para elementos autobiográficos autorais. Ou será que podemos? Tenório é autor negro e em depoimento público já afirmou que seu livro pode ser entendido como autoficção.

Mas o mesmo recurso narrativo presente em Salem Levy chama a atenção e parece sofrer um deslocamento na narrativa de Tenório. Trata-se da utilização do pronome pessoal ‘você’. Depois de algumas páginas percebemos que Pedro escreve também como se conversasse  com o pai morto. Mas como os pronomes são lugares vazios também podemos pensar que a narrativa avança para fora da página e chama o leitor, “você”, para ouvir Pedro e vivenciar as experiências dos sujeitos negros na sociedade.

Até aquele momento você nunca havia sofrido racismo, assim, tão descaradamente, não que você se lembre. Mas você não se chocou, pois uma espécie de inércia tomou conta do seu corpo, você não sabia reagir. Na época você nem sabia muito bem o que significava ser negro. Não havia discutido nada sobre racismo, nada sobre negritude, nada sobre nada. Naquele momento voce era apenas um corpo negro.

Mas por que não pensamos em escrevivência, no conceito cunhado por Conceição Evaristo para se referir à escrita da experiência autobiográfica explorada ficcionalmente para fazer emergir as narrativas de mulheres negras silenciadas? Próximo à ideia de que o pessoal é político, Evaristo realça que o eu é sempre nós, toda individualidade negra é sempre parte de um coletivo.

Será que a narrativa de Tenório, elaborada ficcionalmente, pode extravasar a página e se remeter à experiência de mulheres e homens negros violentados pelo racismo?  Tenório trabalha com questões coletivas que parecem incidir tanto sobre sua biografia quanto sobre a realidade de todos nós, em um mundo no qual o racismo recrudesce.

Por enquanto, me debato com a nomenclatura (autoficção? Escrevivẽncia?), mas o que mais me interessa é entender a tensão entre os termos e a maneira como a subjetividade tratada como problema parece transbordar as obras e interpelar o leitor em sua própria vivência.

Falar de nós, escrevendo a vida

Caroline Barbosa

 Créditos da imagem: Lebohang Kganye (Untitled, 2011)

No artigo Intelectuais escreviventes: enegrecendo os estudos literários, Lívia Natália aponta que o termo escrevivência, cunhado por Conceição Evaristo, vai além da cultura escrita por nascer do corpo, existir através da vida vivida. No entanto, ela destaca que o nascimento da narrativa a partir dessa vivência não está apoiado em uma base narcísica, pois o sujeito negro ao ficcionalizar sua experiência transborda o texto literário e atravessa as experiências do coletivo.

Ainda segundo a teórica, a narrativa da população afro-descendente não surge de um lugar autocentrado porque para este sujeito a elaboração de uma imagem de si é mediada pela opressão e o racismo, que afirmam que o sujeito negro está  “em descompasso com aquilo que se crê ser o modelo”.

Assim, a noção de escrevivência pode ser pensada como uma maneira desse sujeito forjar sua voz e apresentar a outros indivíduos esse processo de elaboração das suas vivências. Um exemplo disso dentro do texto literário ocorre quando o narrador da obra  O avesso da pele, de Jeferson Tenório, utiliza o pronome pessoal ”você” para se referir ao pai, um homem negro, mas ao mesmo tempo transborda aquela experiência individual e interpela todo um coletivo:

Você apenas pensou que havia um problema com você, mas talvez nunca tenha percebido que toda aquela vontade de ficar calado, que toda aquela vontade de permanecer quieto, pudesse ter a ver com a cor da sua pele. Que o seu receio de falar, seu receio de se expor, pudesse ter a ver com as orientações que você recebeu desde a infância: não chame a atenção dos brancos.

Assim, podemos pensar que a noção de escrevivência é um gesto maior que apenas um elemento da exacerbação das subjetividades no presente, que também atua como uma forma de resistência para resgatar o que ficou recalcado.

Escutar-se falar de si

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: A sala de audição, de René Magritte, 1952

Na obra Esboço, Rachel Cusk aborda a história de uma escritora chamada Faye. O enredo não tem grandes reviravoltas, pois a personagem vai para Atenas dar um curso de escrita criativa e a obra aborda as conversas que tem com desconhecidos, alunos do curso e  amigos com quem ela encontra na cidade.

Diferente da autoficção tal como caracterizada pelo criador do termo, o francês Serge Doubrovsky, o livro de Cusk não apresenta um personagem com o mesmo nome da autora e só muito sutilmente podemos ler alguns dados biográficos de Cusk na atuação de Faye.  Assim, Esboço parece apostar em uma aproximação através do distanciamento, já que a narradora pouco  fala sobre si:  tudo o que sabemos é através da sua relação com o outro.

É durante a leitura (ou da escuta?) das conversas entre Faye e um enorme número de personagens que ficamos sabendo que é escritora, divorciada e possui dois filhos, informações que se aproximam dos dados biográficos de Cusk. Investigando um pouco sobre a carreira literária de Cusk, ficamos sabendo que duas obras anteriores da autora abordam explicitamente suas experiências, seja como mãe em A Life’s Work: On Becoming a Mother, seja sobre a separação e o divórcio, temas explorados em  Aftermath: On Marriage and Separation. Não deixa de ser interessante perceber como em Esboço o movimento parece ser  contrário. Não se trata de falar da vida da autora espalhando dados autobiográficos em meio à criação da ficção,  pois é a voz do outro que a reflete e a apresenta.

Já sabemos que muitos teóricos torcem o nariz para a autoficção considerando que o sucesso do termo é apenas resultado do excesso de interesse pela vida privada que a cultura midiática produz. Para esses críticos, seu exercício é sempre narcísico. No entanto, Cusk parece distorcer afirmações como essas, propor um investimento, uma dobra ao próprio desafio de falar de si.

Como?

Poderíamos arriscar que Cusk fala de si, mas apenas através da escuta do outro. É claro que a autora não desconhece as discussões em torno das escritas de si no presente. Tendo lançado dois livros de não ficção, investigando sua própria vida (a maternidade, o divórcio), a trilogia que começa com Esboço (Trânsito e Mérito são os dois outros títulos que completam o experimento), se quer romance, mas também um pouco diferente desse gênero. E talvez  as camadas de sentido que os discursos dos personagens vão produzindo e as pistas que são deixadas para o leitor sobre a própria estrutura da obra, sejam também uma interrogação sobre a ficção, o romance e a autobiografia.

Escrita de si, Escrita de nós

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: “As filhas de Eva” (2014), Rosana Paulino.

Como um dos resultados de minha pesquisa de iniciação científica, apresentei uma tabela sobre os conceitos que pareciam ser variantes do termo autoficção (alterficção,  alterbiografia e autoficção especular, entre outros). Me chamava a atenção, naquele momento, o fato de que o conceito de escrevivência sempre aparecia próximo e ao mesmo tempo distante desse rol de nomenclaturas. Por isso, resolvi dar prosseguimento a essa indagação em meu mestrado.

A origem do termo autoficção já é bem conhecida. Ele surge na França em 1977, após Serge Doubrovsky se sentir impelido a preencher uma das casas vazias no quadro elaborado por Philippe Lejeune, em 1973, para explicitar a noção de “pacto autobiográfico”. A casa mencionada, que Lejeune não conseguiu completar,  dizia respeito à relação onomástica entre autor, narrador e personagem.

Nesse contexto, Doubrovsky publicou o romance Fils (1977) e o chamou de autoficção. O escritor definiu sua prática como “ficção de fatos e acontecimentos estritamente reais”, e definiu também algumas características para seu empreendimento: a ausência de linearidade, o uso da metalinguagem, a exploração do tempo presente e de um pacto oximórico com o leitor (verdade e ficção), a fragmentação, o caráter psicanalítico do texto.

Na contemporaneidade, essa prática ganha destaque pela valorização do biográfico, com o incremento da exposição midiática e do interesse pela vida do autor, por exemplo. Diana Klinger chama de escritas de si as obras que transitam entre o ficcional e o factual, como a autoficção, próprias de nosso contexto atual em que público e privado se confundem.

Mas Conceição Evaristo, pesquisadora e escritora, parece repensar o solipsismo e o egocentrismo comumente relacionados a essas escritas, quando, ao cunhar o termo escrevivência o aproxima de uma “escrita de nós”, que diz respeito não apenas às vivências de um indivíduo, mas também à história de um coletivo, o da população afro-descendente.

O termo escrevivência foi mencionado pela primeira vez em 1995 pela própria Evaristo no Seminário de Mulher e Literatura. A imagem que embasa o termo é a da Mãe Preta, aquela que vivia como escrava dentro da casa-grande cuidando e contando histórias para adormecer os filhos dos poderosos. Assim, o projeto literário de Evaristo é apresentar a população afro-descendente, com foco especial nas mulheres negras, a partir das suas subjetividades, longe dos estereótipos racistas.

As principais características presentes nas obras de escrevivência são a ficcionalização de uma vivência individual que ao mesmo tempo transpassa a experiência do coletivo; o tempo circular, pois o trânsito entre passado e presente é constante, e a exploração de uma linguagem que se aproxima da oralidade, através do uso de palavras cotidianas, do modo de construção frasal, dos sentidos explorados pela carga simbólica que é trabalhada pelo texto.

Será que podemos pensar modos de relação entre a autoficção, que nasce do ambíguo, do jogo com o leitor, e a escrevivência que une o sujeito de enunciação individual com o coletivo, que busca revelar memórias que foram negadas? Como o campo literário está lidando com produções que possuem subjetividades, objetivos e temas narrados de formas distintas, mas que fazem parte do mesmo cenário literário contemporâneo: o do incremento da exposição e revelação de subjetividades?

A autoficção no Brasil

Caroline Barbosa

Crédito da imagem: Tobias Schwarz/Reuters (2012)

Como me referi em um post anterior, a variação dos termos que surgiram a partir da discussão sobre a autoficção (como, por exemplo, alterbiografia, autonarração, autofabulação) poderia contribuir para a recusa dos autores brasileiros de nomear suas obras como autoficcionais. Entretanto, ao longo da pesquisa, pude pressupor que a própria recepção do termo por parte dos pesquisadores brasileiros têm influência na forma como os escritores o recebem.

Luiz Costa Lima acredita que o problema para a existência de um termo como autoficção está na falta de análise crítica do que seria realmente ficção. De acordo com o teórico, a autoficção seria “um grau mais acentuado das autobiografias” e que o termo apenas contribui para enfatizar o trabalho com a subjetividade, já demasiadamente presente em nossa produção ficcional. Já Alcir Pécora comenta que toda ficção diz respeito a formas de produção de uma subjetividade, mas, na opinião do crítico e professor da Unicamp, a autoficção “está bem mais próxima da falsificação da experiência e da história como espetáculo vulgar”.

Por outro lado, Luciene Azevedo realça a instabilidade epistemológica provocada pelo termo, que o mantém em uma zona nebulosa, mas prefere destacar as possibilidades que ele abre para as obras contemporâneas. Para a pesquisadora, o termo permite que as fronteiras entre realidade e ficção sejam redefinidas, modificando, dessa forma, nossa própria relação com o literário.

Outra pesquisadora que  analisa as potencialidades da autoficção é Luciana Hidalgo. Ela acredita que o termo entrou em processo de banalização ao ser usado para obras muito diversas, inclusive para o que chama de um excesso de subjetivação, em alguns casos. No entanto, Hidalgo valoriza o fato de que a autoficção explora um “eu” que, durante muito tempo, foi vetado na especulação teórica e na produção ficcional e que agora a autoficção revela sem repressão e sem os tabus do passado.

Assim, considerando as posições de alguns pesquisadores brasileiros, pude perceber que o termo ainda não é totalmente aceito e continua indefinido. Alguns teóricos, apesar de reconhecerem que a autoficção possui muitas pontas soltas, conseguem analisar a sua importância para a literatura, enquanto outros, acreditam ser apenas mais uma forma de autobiografia com foco excessivo no “eu”.

A maioria dos escritores brasileiros não recebe muito bem o termo. Daniel Galera acredita que o termo é passageiro; Itamar Vieira Junior vê a autoficção como um excesso de subjetividade que serve para afirmar certa visão da branquitude nas obras literárias; Michel Laub discute que há mais de um conceito para o termo e que essa diversidade pode levar a classificar obras como autoficcionais sem que as obras sejam autoficção; Cristóvão Tezza minimiza e rejeita para suas obras o termo, pois acredita que o elemento biográfico é apenas mais um dispositivo narrativo a ser usado na ficção.

Esse breve esboço deixa ver que a autoficção permanece um termo instável. No entanto, a problematização que desperta já é motivo suficiente para prestarmos mais atenção nele.

A entrevista e a recepção da obra

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: Room in Brooklyn (1932), Edward Hopper

A pesquisa que desenvolvo atualmente está interessada em analisar o modo como os autores reagem à classificação de seus livros como autoficção. Como mencionei em posts anteriores, a última obra publicada por Carola Saavedra, o romance Com armas sonolentas, não pode ser exatamente entendido dessa maneira, mas chama a atenção o fato de que nas entrevistas concedidas pela autora sempre sejam tematizados traços de sua biografia, em especial sobre sua relação com a maternidade, para discutir o livro. É curioso perceber o interesse por elementos relacionados à vida da autora mesmo quando eles não são diretamente explorados no texto, quando não há um pacto ambíguo apontando para uma intencional confusão entre a vida e a ficção.

Daniela Versiani no artigo intituladoEntrevista, performance e a alternativa dramática” menciona a importância da entrevista enquanto ferramenta para “indagação, confirmação ou até mesmo correção de suposições” em torno à obra. Segundo Versiani, a entrevista pode ser utilizada como “paratexto, orientador de leituras ou desarticulador de mal-entendidos”. Para a crítica, as entrevistas não devem ser tomadas como documentos que atestam a sinceridade do entrevistado. Ao afirmar isso, Versiani não sugere que a entrevista esteja baseada em inverdades, mas que durante a sua realização entra em jogo uma performance dos interlocutores: há evasivas, desvios e adivinhações que são fatores presentes em qualquer comunicação. Dessa forma, Versiani sugere que talvez seja possível tirarmos partido da entrevista como gênero discursivo para entendermos melhor as obras e a  importância que a figura do autor voltou a assumir no presente.

Quando Saavedra é impelida a falar de sua recente maternidade ou de como o feminismo atravessa seu texto, observamos que a autora nem sempre traz  intencionalmente elementos biográficos para a leitura da obra, mas ainda assim muitas vezes é levada a falar desses tópicos como se fossem possíveis chaves de leitura para o romance. Quando há perguntas que mencionam, por exemplo, diretamente a relação da autora com a filha, Saavedra é impelida a relatar elementos biográficos para falar da obra, como acontece na entrevista que concedeu na Flip em 2019:

“… a existência da Vitória te fez mais emotiva nesse sentido, te faz sentir essas histórias de uma forma mais acentuada?”

“É porque tem a ver com a minha trajetória, pra te falar da questão da Vitória, e quando a minha filha nasceu, aí eu que passei anos da minha vida, tipo, eu não queria ser mãe, sabe, porque eu me colocava totalmente nesse lugar ‘não, eu não vou ser mãe porque eu tenho que escrever’  e aí nisso tudo eu comecei a querer ser mãe eu falei ‘porque que eu tenho que escolher ou escrevo ou sou mãe’  então nesse momento poder dizer ‘não, eu quero ser mãe e  quero poder escrever’, enfim essas coisas acontecem. Ser a Vitória e  também o fato de ser uma menina, eu comecei a pensar “gente eu pus uma menina no mundo. Em  que mundo ela vai viver?”. Sabe então aí eu comecei a olhar pra tudo, pra mim, enfim pra coisas que foram acontecendo, pro movimento feminista e tudo calhou na minha vida dizer ‘não, isso é uma questão essencial e eu preciso falar sobre isso’”

Considerando o retorno à figura do autor e a ampliação e valorização do espaço biográfico, como pensado por Leonor Arfuch, minha pesquisa, então, quer se apropriar da reflexão elaborada no ensaio de Versiani para investigar se e como a entrevista, considerada como um “novo corpo de signos oferecido à leitura” atua no processo de mediação e recepção de Com armas sonolentas.

A autora, a entrevista e o romance

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: O dentro e o fora , 1963, Lygia Clark.

Tem se tornado muito comum encontrarmos análises em que a performance pública do escritor é trazida como um elemento para analisar sua produção literária. As perguntas elaboradas pela Bondelê, um canal de resenhas e entrevistas da internet, para a  entrevista realizada, em 2018, com Carola Saavedra insistiam que a autora relacionasse elementos biográficos para comentar aspectos de seu romance, Com armas sonolentas. Apesar de a obra não poder ser considerada uma autoficção (não há correspondência entre o nome da autora, da narradora ou de nenhuma personagem), inúmeras entrevistas e resenhas insistem em aproximar a autora (suas opiniões, mas também dados biográficos) a seus personagens.

Arriscaria a dizer que o tópico mais comentado nas resenhas e entrevistas que a autora compila em suas redes sociais diz respeito à relação que mantém com sua filha, já que o romance trata também de relações filiais. O tema da maternidade, que diz respeito à personagem Anna, é quase infalível nas perguntas lançadas a Saavedra que é solicitada a expor sua opinião, sua posição sobre o tema. Para a autora, o desejo de ser mãe era mascarado por concepções patriarcalistas que colocam a mulher em um local de precisar escolher entre a maternidade e a carreira e por esse motivo, maternar se tornou uma questão complexa em sua vida até a chegada da filha:

É porque tem a ver com a minha trajetória, pra te falar da questão da Vitória, e quando a minha filha nasceu, aí eu que passei anos da minha vida, tipo, eu não queria ser mãe, sabe, porque eu me colocava totalmente nesse lugar “não, eu não vou ser mãe porque eu tenho que escrever” e aí nisso tudo eu comecei a querer ser mãe eu falei ‘porque que eu tenho que escolher ou escrevo ou sou mãe’ então nesse momento poder dizer ‘não, eu quero ser mãe e quero poder escrever’, enfim essas coisas acontecem.

Drama semelhante é vivido pela personagem Anna no romance, pois ela sonhava em ser atriz e ao engravidar sente que a criança não faz parte dela “Quando soube que estava grávida, fingi que não era comigo (…) A mulher não grávida se olhava no espelho e não se reconhecia”.

Nas entrevistas, aparece também o comentário sobre a relação entre Maike e a Avó que tematiza a questão da identidade e da ancestralidade. Para a autora esse romance de formação das mulheres lhe atravessa e nas entrevistas é possível ver traçada uma linha quase reta entre a narrativa que aborda questões sobre a condição da mulher e a maternidade e a escritora Carola Saavedra, mulher e mãe.

O que me interessa ao fazer esse comentário é compreender porque mesmo não se tratando de uma obra que explora recursos autoficcionais, a autora continue sendo interpelada a falar em primeira pessoa, não apenas como autora, pessoa pública, “fora” da obra, mas a se responsabilizar também pelos temas, pela forma como lida com eles dentro da obra e como constrói seus personagens. Talvez um passeio pelos lançamentos mais recentes do mercado editorial (lembro obras como O peso do pássaro morto de Aline Bei, Maternidade de Sheila Hei e Contos ordinários de melancolia de Ruth Ducaso que abordam de distintas maneiras a representação da condição da mulher hoje) possa nos levar a pensar, como o sugeriu Josefina Ludmer, que a literatura hoje é um “dentrofora” (importam a posição do autor, as discussões que movimentam a sociedade) e por isso a obra de Saavedra seja relacionada com sua opinião pública como autora, mulher e mãe.

Autoficção: o lado de fora

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: René Magritte- La réproduction interdite, 1937.

Vincent Colonna define quatro categorias distintas para o que chama fabulação de si. Na autoficção fantástica “o escritor está no centro do texto como uma autobiografia (é o herói), mas transfigura sua existência e sua identidade, em uma história irreal, indiferente à verossimilhança”; na autoficção biográfica, por outro lado, o autor fabula a partir de dados reais, evita o fantástico e com o mecanismo do ‘mentir-verdadeiro’ modela sua imagem; a autoficção especular se configura como aquela em que há um reflexo do autor ou do livro dentro do próprio livro, ele não está mais no centro do texto, se torna apenas uma silhueta; e, por fim, a autoficção intrusiva, que faz pensar na figura do narrador colada a do autor, sem fazer parte da história, se torna apenas alguém que conhece os detalhes da narrativa e vai transmiti-los ao leitor com quem mantém constante contato durante a narração.

As definições de Colonna foram muito criticadas, em especial, a autoficção fantástica. Serge Doubrovsky, o criador do termo, a considerava absurda por não estabelecer um pacto oximórico com o leitor. Porém, não deixa de ser interessante testar dentro da grande gama de vertentes da autoficção, a autoficção especular como uma das chaves de leitura da obra de Saavedra.

Seria possível pensar a obra de Carola Saavedra, Com armas sonolentas, como uma possibilidade de autoficção especular. Saavedra, a autora, embora não se nomeie no texto como tal, pode ser lembrada a partir de alguns dados biográficos “emprestados” a uma das narradoras, presente nas bordas da narrativa, como no trecho que destaco a seguir:

“Sentia que meu conhecimento da língua ia ficando cada vez melhor, mais fluente, e junto a isso a sensação de que viver numa língua estrangeira era tornar-se, mesmo que sutilmente, outra pessoa. No meu caso, essa pessoa que eu me tornava, apesar de um pouco tosca, me parecia muito mais próxima de mim do que a que vivia na Alemanha, como se em português eu me tornasse quem eu realmente era.”

A aposta de que o romance flerta com a autoficção se dá a partir do momento em que esse discurso da personagem Mike se alinha com os discursos da própria Saavedra em entrevistas sobre o livro. Além do trecho acima, há outros relacionados à maternidade, ao sentimento de não pertencer a um só país e a sua língua, à condição feminina. Enfim, aspectos da narrativa que são retomados no discurso de Saavedra, autora, relacionados à sua vida.

E é essa mesma miríade de vertentes que surgiram a partir da autoficção que torna o conceito difícil de ser caracterizado . Tudo é autoficção? Nada é autoficção? A obra de Carola Saavedra, em que sua presença é apenas uma silhueta, seria mesmo uma autoficção especular? É dentro desse espaço impreciso que busco compreender a resistência dos autores à prática autoficcional.