Arquivo do mês: março 2023

Autoficção e performance em Los diarios de Emilio Renzi

Carla Carolina Moura Barreto

Créditos da imagem:  Foto: Jorge Silva/Reuters. Ilustração: Zé Otávio

“[…] me asombro, como si yo fuera otro (y es lo que soy)”
(Ricardo Piglia, em Los diarios de Emilio Renzi)

Ricardo Piglia, um dos maiores escritores argentinos do século XX, registrou sua vida cotidiana em trezentos e vinte e sete cadernos ao longo de cinquenta anos. O escritor os manteve guardados até 2012, quando decide desarquivá-los e dar início a um trabalho de releitura, seleção e reescritura, transcrevendo e organizando seus cadernos, a fim de publicá-los. Assim, os diários do escritor se convertem em uma série intitulada Los diarios de Emilio Renzi, dividida em três volumes– Años de formación (2015), Los años felices (2016) e Un día en la vida (2017) – que trazem em seu interior memórias íntimas e marcas de uma vida atravessada pela obsessão pela leitura e escrita. Os diários, que podem ser lidos como romance de formação, são construídos a partir de fragmentos, recortes, colagens, metalinguagem e duplos (Piglia/Renzi, realidade/ficção, memória/História), mostrando-se híbridos e complexos.

Piglia publica os diários sob a assinatura do assíduo personagem de suas obras, Emilio Renzi, tido pela crítica como seu alter ego, uma vez que o nome do personagem consta no nome completo do autor: “Ricardo Emilio Piglia Renzi”. Além disso, alguns biografemas da vida de Renzi apontam para a persona extratextual de Ricardo Piglia. Com isso, temos o famoso duplo Piglia/Renzi, visível já nas capas dos livros, escritos por um e assinados por outro. Vemos essa cisão eu/outro com mais nitidez na construção do texto de Piglia, que transita entre primeira e terceira pessoa verbal para falar sobre si, resultando em um distanciamento. O autor, que emprega aspas e citação para dar voz a quem escreve o diário, se afasta do texto, descrevendo-se como outro, apresentando-se como um “biógrafo de si mesmo”, o que torna o texto paradoxal. Com isso, Piglia se distancia da autoria e da responsabilidade do conteúdo dos relatos que apresenta, no entanto, não se desvincula completamente, uma vez que ele coloca em cena seu duplo.

Esse jogo textual ambíguo criado por Piglia, que mais se configura como uma espécie de “mascaramento”, confunde o leitor desprevenido que espera ler a história de um “eu” real e aponta para uma performance do autor, que encena um “eu” e se insinua como uma sombra real no texto. Piglia atua em seus diários, como em uma mise en scène. Ele escreve a partir do reflexo que vê em seu espelho, de modo a eleger o que vai ou não inscrever do real que o cerca, algo próprio da escritura performática do diário, segundo o professor e crítico Seligmann-Silva.

Assim, Piglia constrói uma narrativa autoficcional. Ele afasta-se da experiência para refletir sobre ela e atribuir-lhe novos significados, recriando-a e recriando-se como ficção. Desse modo, essas duas personalidades fragmentadas criadas no texto, Piglia/Renzi, se imbricam, se confundem e nos confundem. Com isso, Piglia joga um jogo performático, de afirmação e negação, que afasta o compromisso com a “verdade” e conspira contra a possibilidade de transmitir a realidade, colocando em cena, de maneira mais evidente, o caráter ficcional da obra. Além disso, em Los diarios de Emilio Renzi, Piglia nos apresenta os mecanismos de construção da memória; problematiza a figura do autor; nos mostra a ficção como estratégia de lidar com a realidade; além de nos revelar os bastidores da criação de algumas de suas obras. Assim, ele escreve, também, para manter ativas as lembranças; para que seu testemunho pessoal perdure; para lembrar e ser lembrado, de modo a escrever para si e para outros, “arremessando-se no vazio para que algum leitor o segure no ar”.

Carla Barreto é doutoranda em Teoria e História Literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

‘As notas remetem a qualquer lugar do texto. Assim como a qualquer um de seus brancos.’

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Remedios Varo, Ojos sobre la mesa, 1935.

A relação da nota com a escrita do romance é muito cara para o projeto de pesquisa que estou desenvolvendo e o texto “Paratextos editoriais”, de Gerárd Genette, como uma referência central na discussão sobre a nota como gênero textual, levanta questionamentos importantes que contribuem para a investigação.

Nesse texto, o autor procura definir os elementos que compõem o paratexto, uma zona “indecisa” entre texto e fora-do-texto marcada pela instabilidade, local onde a nota parece se encaixar muito bem pela sua natureza elusiva e fugidia. De acordo com Genette, o campo do paratexto é, em si, muito movediço, um conjunto de práticas de difícil definição que depende menos de conceitos concretos do que de escolhas de método.

A nota, então, cerca essa zona incerta com sua própria carga de relatividade. Genette considera que as suas manifestações são tão diversas caso a caso e, por vezes, tão dependentes de um determinado recorte de um determinado texto que até sua autonomia como gênero poderia ser posta em questão. Seu caráter parcial e local, como referenciadora em particular a um trecho de um texto, seriam seus traços formais mais característicos, já que quase todo o resto seria variável, desde o seu tamanho, disposição, função, nível (como em notas sobre outras notas), momento de adição ao texto, até o seu propósito (ou falta dele). Para ele as notas são, por definição, “pontuais, fragmentadas, como que pulverulentas, para não dizer poeirentas”, de difícil apreensão.

As notas seriam algo de um apelo restrito, sua leitura facultativa exceto para alguns leitores interessados em comentários acessórios a um excerto do texto. A instalação de uma nota tem cunho digressivo e complementar e pode conter desde traduções de citações, indicações de fontes, apoio a argumentos com evidências documentais ou suporte de autoridades, a especulações, observações de terceiros, comentários biográficos, genéticos e registros da facção ou da edição do texto anotado. Dessa forma, o desvio do texto à nota pode significar uma quebra da integridade do texto, mas também pode abrir uma outra dimensão de sua leitura e compreensão.

Comentando o aspecto que me interessa, que é a investigação sobre a prática da anotação relacionada à produção literária, Genette comenta que, de modo geral, as notas em textos ficcionais servem para trazer referências e esclarecimentos a romances históricos. De outra maneira, sua presença pode vir a ser uma transgressão sem justificativa aparente para sua existência. Seriam mais raras as notas ficcionais em si, usadas no intuito de contribuir para, ou até mesmo construir, a ficcionalidade de um texto.

Estudar esse texto se já se justificaria pela sua análise da nota e talvez até por mudanças perceptíveis em seus usos atualmente, sua primeira edição é de 1987. Mas o mais interessante do texto pode ser a abertura que Genette propõe para pensar a relação entre anotação e ficção ao explorar a possibilidade de a anotação ganhar autonomia e reivindicar para si o estatuto de narrativa. Assim, ainda que prevaleça um enfoque na acepção redutora das funcionalidades da nota, Genette abre espaço para o potencial da nota para  “prolongar, ramificar e modular” o texto para além de sua função apenas paratextual. Essa sugestão me motiva a aprofundar minha especulação sobre outros modos de presença da prática da anotação em obras como a Novela Luminosa de Mario Levrero. É possível pensar a anotação como um procedimento de escrita, mais que um dispositivo meramente auxiliar, um mínimo aparato referencial?

A recorrência de metáforas bélicas nas produções narrativas sobre HIV/aids

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Peter Juhar, Self-Portrait Jumping (1), 1974.

Susan Sontag, no livro-ensaio AIDS e suas metáforas, em dado momento, discute sobre uma das principais formas de abordar a temática do HIV/aids: o uso de metáforas bélicas para se referir ao vírus e à doença. A ensaísta fala no livro sobre como grande parte dos discursos, principalmente aqueles provenientes do campo biomédico, empreendeu uma espécie de bellum contra morbum, guerra à doença, para formular estratégias e ações que tivessem como objetivo lidar com a epidemia emergente no final do Século XX.

A estratégia de utilizar vocabulário e ideias relativas ao universo bélico para falar sobre doenças parece ter se consolidado nos contextos de pré e pós-guerra do início do Século XX, durante as epidemias de sífilis e tuberculose, e a partir daí passou a ser a tônica da maioria das campanhas de saúde pública que lidavam com crises sanitárias. Validadas pelo campo biomédico, as metáforas bélicas se espalharam para outros grupos sociais e acabaram por atingir toda a sociedade. Assim, torna-se comum encontrar nos mais diversos espaços sociais discursos que remetem à ideia de guerra à doença.

Se, nos diversos discursos, essa forma de falar sobre HIV/aids é comum, também na produção literária brasileira essa espécie de metaforização da epidemia é usual e recorrente. Romances como Amarga herança de Leo, de Isabel Vieira, ou ainda, Pequeno segredo, de Heloisa Schurmann, escritos no final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, respectivamente, ainda trazem construções que indicam que a infecção por HIV representa uma sentença de morte, uma batalha a se travar contra o vírus, assim, como aquelas explicações que indicam que o sistema imunológico humano seria uma espécie de exército que protege o corpo de potenciais inimigos, as doenças. Não se pode perder de vista que essas construções permeavam o imaginário sobre a epidemia no início de sua emergência e persistiram por muito tempo, principalmente, nas campanhas de saúde pública voltadas ao público jovem.

No romance de Guido Arosa, O complexo melancólico (2019), diferentemente do que a maioria das outras obras apresenta, há um conflito armado em curso na narrativa. Um dos inimigos desta batalha é o próprio sujeito homossexual, aquele que “o gozo, que dura poucos segundo, causa uma Hiroshima”, como afirma um dos personagens. Perseguido pelo poder instaurado, esse sujeito é condenado à morte “pela doença” ou “pelo Estado”. Nesse aspecto, pode parecer que a obra de Arosa se aproxima de outras narrativas sobre o tema, porém é preciso considerar que essa condenação atribuída é ao corpo homossexual que, independente da presença do HIV/aids, torna-se alvo predominante tanto da guerra simbólica, quanto da violência física fomentada pelo simbolismo bélico.

Se “a guerra é definida como uma emergência na qual nenhum sacrifício é considerado excessivo”, como aponta Sontag, a “guerra à aids” justificaria, inclusive, a perseguição aos sujeitos homossexuais, apontados quase sempre como culpados pela epidemia. Por isso, não é incomum nos discursos e nas produções narrativas, que o foco do esforço bélico esteja mais no corpo desses sujeitos e menos no vírus. No entanto, em relação aos outros grupos sociais, o combate travado é sempre contra o vírus apenas, o que reforça a ideia de que o inimigo desta guerra não é apenas o HIV mas toda uma coletividade que vem sendo atacada desde sempre.

Ensaio, vida e espetáculo

Marília Costa

Recentemente, tive a oportunidade de assistir ao espetáculo “Espontaneamente – genealogia da memória” com a Cia. de teatro Improviso Salvador, que fazia parte da programação do Festival Lusoteropolitana. A peça foi encenada no Teatro Sesc Pelourinho e ao adentrar o local me deparei com o primeiro estranhamento: o palco estava repleto de cadeiras e os atores orientavam o público a sentar ali. Logo de início o elenco solicitou que o público usasse a imaginação, pois eles estavam sem cenário e por isso improvisavam, pois o cenário tinha ficado preso no Teatro Castro Alves para vistoria por conta de um incêndio dias antes da apresentação. A ausência do cenário foi mais um recurso para a quebra da quarta parede, já que a interação dos atores com a plateia vai se tornando mais intensa até que o público torna-se parte da cena.

Durante o espetáculo, os atores relatavam experiências pessoais amorosas, infantis e outras que envolviam traumas e relações familiares. Tudo estava baseado na improvisação das histórias, com toques de humor à narrativa dos dramas. Não demorou muito para que os atores começassem a apontar para a plateia que se acomodou no palco e solicitar que as pessoas compartilhassem memórias que tivessem relação com as experiências dos atores. A dinâmica se manteve: uma pessoa da audiência contava sua história de amor e os atores a encenavam no palco com improvisos.

Dois procedimentos chamam a atenção. A peça demorou muito para começar e pareceu de início estar atrasada, mas, na verdade, o espetáculo já tinha começado no hall do teatro. Os atores disfarçados de público interagiram com os espectadores que estavam aguardando a abertura da sala e fizeram uma sondagem para saber quem tinha histórias interessantes para compartilhar. Depois de iniciado o espetáculo, a audiência acompanha um processo de dupla ficcionalização da vida no palco, já que o enredo é improvisado a partir dos dados biográficos das próprias vidas dos atores e também do público. Esse é o procedimento artístico fundamental dessa encenação teatral.

Assistir a esse espetáculo me fez lembrar de outra experiência: “By Heart” de Tiago Rodrigues, já comentada em um post anterior. A mobilização de não atores para ocupar o centro do palco cria uma “situação teatro” e transforma o espetáculo em um Work in process. O termo, utilizado por Renato Cohen para pensar a performance, indica como ensaio e espetáculo fazem parte de um mesmo momento de construção e se abrem para a convocação do público que participa de modo ativo da representação.