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A entrevista e a recepção da obra

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: Room in Brooklyn (1932), Edward Hopper

A pesquisa que desenvolvo atualmente está interessada em analisar o modo como os autores reagem à classificação de seus livros como autoficção. Como mencionei em posts anteriores, a última obra publicada por Carola Saavedra, o romance Com armas sonolentas, não pode ser exatamente entendido dessa maneira, mas chama a atenção o fato de que nas entrevistas concedidas pela autora sempre sejam tematizados traços de sua biografia, em especial sobre sua relação com a maternidade, para discutir o livro. É curioso perceber o interesse por elementos relacionados à vida da autora mesmo quando eles não são diretamente explorados no texto, quando não há um pacto ambíguo apontando para uma intencional confusão entre a vida e a ficção.

Daniela Versiani no artigo intituladoEntrevista, performance e a alternativa dramática” menciona a importância da entrevista enquanto ferramenta para “indagação, confirmação ou até mesmo correção de suposições” em torno à obra. Segundo Versiani, a entrevista pode ser utilizada como “paratexto, orientador de leituras ou desarticulador de mal-entendidos”. Para a crítica, as entrevistas não devem ser tomadas como documentos que atestam a sinceridade do entrevistado. Ao afirmar isso, Versiani não sugere que a entrevista esteja baseada em inverdades, mas que durante a sua realização entra em jogo uma performance dos interlocutores: há evasivas, desvios e adivinhações que são fatores presentes em qualquer comunicação. Dessa forma, Versiani sugere que talvez seja possível tirarmos partido da entrevista como gênero discursivo para entendermos melhor as obras e a  importância que a figura do autor voltou a assumir no presente.

Quando Saavedra é impelida a falar de sua recente maternidade ou de como o feminismo atravessa seu texto, observamos que a autora nem sempre traz  intencionalmente elementos biográficos para a leitura da obra, mas ainda assim muitas vezes é levada a falar desses tópicos como se fossem possíveis chaves de leitura para o romance. Quando há perguntas que mencionam, por exemplo, diretamente a relação da autora com a filha, Saavedra é impelida a relatar elementos biográficos para falar da obra, como acontece na entrevista que concedeu na Flip em 2019:

“… a existência da Vitória te fez mais emotiva nesse sentido, te faz sentir essas histórias de uma forma mais acentuada?”

“É porque tem a ver com a minha trajetória, pra te falar da questão da Vitória, e quando a minha filha nasceu, aí eu que passei anos da minha vida, tipo, eu não queria ser mãe, sabe, porque eu me colocava totalmente nesse lugar ‘não, eu não vou ser mãe porque eu tenho que escrever’  e aí nisso tudo eu comecei a querer ser mãe eu falei ‘porque que eu tenho que escolher ou escrevo ou sou mãe’  então nesse momento poder dizer ‘não, eu quero ser mãe e  quero poder escrever’, enfim essas coisas acontecem. Ser a Vitória e  também o fato de ser uma menina, eu comecei a pensar “gente eu pus uma menina no mundo. Em  que mundo ela vai viver?”. Sabe então aí eu comecei a olhar pra tudo, pra mim, enfim pra coisas que foram acontecendo, pro movimento feminista e tudo calhou na minha vida dizer ‘não, isso é uma questão essencial e eu preciso falar sobre isso’”

Considerando o retorno à figura do autor e a ampliação e valorização do espaço biográfico, como pensado por Leonor Arfuch, minha pesquisa, então, quer se apropriar da reflexão elaborada no ensaio de Versiani para investigar se e como a entrevista, considerada como um “novo corpo de signos oferecido à leitura” atua no processo de mediação e recepção de Com armas sonolentas.

Literatura e profissionalização

Por Larissa Nakamura

“profissionalizar-se antes de se tornar um profissional das letras” – Silviano Santiago

Aconteceu em outubro nossa Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), que a cada ano cresce e atrai mais visitantes (quem quiser saber mais, pode acessar a recente entrevista que o organizador do evento, Emmanuel Mirdad, concedeu ao blog). Aproveitamos a oportunidade para assistir às mesas literárias, conhecer os escritores e também entrevistá-los sobre um assunto que muito nos interessa: a profissionalização do autor.

A participação dos autores revela como cada escritor reflete sobre sua carreira, sobre a interação com a mídia, o mercado e os leitores.  João Filho cita a importância de travar parcerias com editores competentes e pequenas editoras locais, que pouco a pouco fortalecem seus catálogos e têm uma preocupação com a qualidade editorial, tornando os livros atrativos e comerciáveis o suficiente para concorrer com as demais publicações do mercado. Além disso, há também o interesse em atingir o grande público, vender e popularizar suas histórias. Notamos que longe de rejeitar os possíveis ganhos econômicos advindos da produção artística, João Filho os compreende como necessários para o escritor, para a construção de uma carreira no campo das letras.

João Filho: […] no Brasil, tem que divulgar a obra. O que é ser escritor profissional no Brasil hoje? Hatoum tava falando mais cedo que os Dois irmãos, que eu considero a obra-prima dele vendeu um negócio absurdo, não foi? Um negócio assim, uma coisa linda, uma cifra maravilhosa, é muito bom acontecer isso. Isso é profissionalização? Eu não sei, até chegar direito autoral, livro que não chega, livro que você tem que ir atrás e a editora é pequena. […] O Gustavo Felicíssimo é o editor da Mondrongo, que publicou A dimensão necessária, ele me convidou em 2013, o livro foi publicado em 2014 e ganhou prêmio em 2015 da Biblioteca Nacional, então pra mim é tudo parceria, porque nesse sentido eu sou profissional. […] eu ganho dinheiro com a literatura e eu quero ganhar dinheiro, eu faço minhas palavras com as de Aurélio Schommer que é quando ele diz “Quero ficar rico”. Eu também quero, entendeu? Eu quero ganhar dinheiro, é claro. Você vê o seu livro adaptado (aponta para Milton Hatoum) pra tevê e eu falei para ele, para Milton, […] ele vai ser o novo Jorge Amado […] eu falo em questões de venda, isso vai ser ótimo para você, é claro. E Jorge Amado deu um conselho para João Ubaldo no seguinte: João Ubaldo reclamando da adaptação que fizeram de O sorriso do lagarto e aí Jorge falou assim: “Cobre o máximo que você puder e não veja.”. É claro que você quer fazer sucesso com o que você produz e eu produzo literatura, então nesse sentido sou profissional. Agora, essa pergunta sempre me deixa sem muita opção de resposta, porque eu só consigo responder assim: eu me empenho no que faço e tento fazer uma parceria com pequenos editores, que eu publico que é o Gustavo Felicíssimo, da Mondrongo, a P55, do Cláudio Portugal. O primeiro (livro), na verdade, foi quase um presente pra mim e todos são quase presentes pra mim, […] e tudo em edições pequenas, bonitas, edições benfeitas, e você trabalha como um mercador, como eu passei minha vida inteira dentro de um comércio, de uma venda no interior, eu continuo mercando, entendeu? Com os meus livros agora.

Eduardo Spohr destaca a pertinência de uma sólida rotina de trabalho que envolve tanto a escrita como o diálogo com os leitores, seja em um evento ou na interação proporcionada pelas mídias sociais.

Eduardo Spohr: Eu acho que o escritor profissional não é só aquele que ganha dinheiro com isso, eu já me considerava escritor profissional desde muito antes. Eu acho que, isso na minha visão, é aquele que leva a profissão a sério: escreve sempre que pode, persiste e tem uma rotina de trabalho. Acho que não só eu, como muitos que aí que não vivem de escrever, eu considero como escritor profissional, que tem essa seriedade na literatura. As feiras literárias fomentam a profissionalização no fato que levam mais gente a se interessar em ler e escrever, e isso que é excelente, a gente precisa de mais gente lendo e escrevendo, alguns vão se tornar escritores, outros não. Tem dois lados no espaço para se divulgar enquanto autor e ter contato com os leitores. O autor fica muito solitário e não vê muito o rosto de leitores, e quando ele vem a esses festivais, feiras, esse encontro é maravilhoso. E para o leitor também é legal, falando enquanto leitor, quando eu vou a feiras e vejo os autores que eu gosto, é o maior barato, porque você vai lá e conhece aquela figura que escreveu aquele texto, o contato é muito importante. Eu uso tudo que posso nas redes sociais para ter contato com os leitores, tenho o Twitter, Facebook, Snapchat, tô um pouco velho, mas, às vezes, eu uso também o Instagram.

Dois tabus são desconstruídos pelos comentários dos autores: o primeiro,  presente na fala de Spohr, diz respeito à ideia de que todo autor de best-seller, sem exceção, vive confortavelmente das cifras de suas vendas sem se importar com a fatura de composição do texto; o segundo,  é desmistificado pela preocupação trazida à tona por João Filho com a questão da sobrevivência financeira do autor, o que abala o culto ao artista amador, sem plano de trabalho ou projetos futuros.

Acompanhe no link a seguir a mesa literária de João Filho na Flica: Flica 2016 Ao Vivo | Mesa 4 | A voz do autor.

2016-10-28

João Filho é baiano, mestrando em literatura portuguesa, tem cinco obras lançadas e também traduzidas no exterior, participou de diversas antologias, e em 2015 ganhou o prêmio Alphonsus de Guimaraens pelo livro de poesia A dimensão necessária.

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Eduardo Spohr é carioca, jornalista de formação, publicou cinco livros que são sucesso comercial no país e que agradam ao público jovem por conta das temáticas ligadas ao universo fantástico.

Imagens: Instagram da Flica

Conversando com… Emmanuel Mirdad

Entrevista concedida pelo Whatsapp a Neila Brasil

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Festas literárias, como a de Paraty e a de Cachoeira, desempenham importante papel na promoção dos escritores e de suas obras. Nessa entrevista, Emmanuel Mirdad, um dos organizadores da Flica, a Festa Literária de Cachoeira, cidade do Recôncavo Baiano, toca em muitas questões que já foram alvo de nosso interesse nos textos  publicados aqui no blog, como por exemplo a questão da profissionalização do autor, do papel do agente literário. Chama a atenção o fato de Mirdad afirmar que os convites privilegiam autores que já possuem uma carreira literária mais ou menos estabelecida ou que tenham jogo de cintura para circular no campo literário. Não deixa de ser curiosa, então, a formação de um círculo vicioso alimentado pelas festas: o autor tem de ter algum destaque na vida literária para participar da festa, que como evento da vida literária, vai lhe dar algum destaque.

Agradecemos a entrevista e a reflexão que as respostas de Mirdad nos proporcionam. Vamos a ela:

Leituras contemporâneas: Após 5 edições da Flica, quais são os desafios e as conquistas?

Emmanuel Mirdad: Acho que a nossa maior conquista foi ter vingado uma festa literária na Bahia que não tinha e ela ter tido esse sucesso, tanto de público como de repercussão no meio literário. Os autores já conhecem a Flica, o mercado já sabe que tem a Flica. A Flica já está calendarizada. Isso é muito importante porque às vezes os bons eventos surgem e não conseguem se manter, e a gente conseguiu, com o apoio dos patrocinadores, fazer esse evento por cinco edições, chegando agora na sexta edição. Acho que a maior conquista foi isso, ter conseguido fazer uma festa literária na Bahia, porque já se pedia por isso, e também, de ter trazido para Cachoeira mais uma oportunidade de ter um evento cultural de relevância. Como nós já tínhamos a Festa da Boa Morte, a Festa da Ajuda, o São João, então a gente chegou para somar ao escopo de eventos culturais, turísticos da cidade. E o desafio agora é crescer mais e mais, conseguir trazer grandes nomes internacionais para cá e se firmar como uma opção a Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, que é a festa literária mais importante do Brasil.

Leituras contemporâneas: Quais são os critérios para a seleção e participação dos escritores e poetas na Flica?

Emmanuel Mirdad: Bom, esses critérios são definidos pelo curador e os curadores variam durante o tempo. Esse ano e das vezes que eu participei da curadoria, os critérios que a gente utilizou foram a programação, conseguir equilibrar o número de autores nacionais, internacionais e locais, colocar os locais no mesmo espaço de dignidade que nós oferecemos para os nacionais. Ou seja, não é mesa baiana só com baiano. É baiano com nacional, baiano com internacional, para poder valorizar, não é? E a gente sempre teve muito sucesso com isso, o que os autores baianos tiraram de letra. Todos os autores… e geralmente para os autores nacionais, o critério é que seja um grande nome já reconhecido e que esteja lançando um livro no momento. O autor baiano, ele vai a partir dessa condição, de quem está aparecendo mais, quem está vendendo livro, quem está lançando livro, de quem já tem história, de quem já tem experiência em participar desse tipo de evento, quem é disposto a falar, quem fala bem, quem tem o que falar. Então são muitos critérios que dependem especificamente do momento do autor, naquele instante, por exemplo, a gente sempre prioriza trazer autores que estejam lançando livros neste ano ou que tenham acabado de lançar livros. E a gente visa equilibrar a escolha a partir do que já foi definido do autor nacional.

Leituras contemporâneas: Há espaço para novos talentos na Flica?

Emmanuel Mirdad: Sempre teve. Por exemplo, na primeira edição a gente teve um poeta que era menor de idade. É como eu falei na questão anterior, tudo depende dessas variáveis. Se esse novo talento lançou um livro que está sendo bem comentado, que está sendo bem vendido, que tem resenhas  boas por aí, que ele tenha uma aparição, então a gente… o autor, ele tem que existir para que venha fazer parte da programação. Aqueles autores de gaveta que lançam livro, que só os amigos conhecem, fica um pouco difícil. Então o novo talento, ele tem que aparecer para poder ir para a Flica também.

Leituras contemporâneas: Como é o contato com os autores, a negociação envolvendo o convite para participar da festa? A negociação é direta ou mediada pelos agentes literários dos autores?

Emmanuel Mirdad: Então…. varia. Tem autor que a gente só consegue falar com a rede literária, tem autor que a gente consegue falar por via das editoras, e a gente sempre busca falar diretamente com o autor. Quando não é possível, não tem jeito: a gente vai falar com o agente ou com a editora. É que às vezes, por exemplo, um autor famoso ou um autor caro nem tem conhecimento do que é o evento, o que está sendo proposto, porque o cachê não satisfez ao agente, ao empresário, ao produtor, enfim… sendo que ele teria outros ganhos, ganho de imagem e até mesmo ganho pessoal de vir a Cachoeira, conhecer a cidade que todos os autores que vêm se encantam.

Leituras contemporâneas: É possível afirmar que esse evento colabora com a profissionalização de escritores?

Emmanuel Mirdad: Bom, depende. Por exemplo, eu vejo um autor iniciante que está querendo escrever, está querendo ter contato com o meio. A gente proporciona isso, a gente proporciona o acesso ao autor, ele vai ouvir o autor falar, ele vai conhecer o autor, vai vivenciar a cidade; enfim, o lugar, o ambiente, isso tudo influência, mas eu acho que a profissionalização… Vamos pensar naquilo que eu já respondi: se o autor não fizer sua parte junto com a editora de pensar a carreira, de construir a carreira, fica difícil dele ir para a Flica. Então também pode ser que faça, o estimule a buscar a profissionalização, mas acredito que ela só exista mesmo a partir do esforço individual de cada um, da bagagem de leitura e dos cursos, etc. Porque a Flica não é um curso, é apenas um evento de amostragem do que está acontecendo de melhor na literatura.