Arquivo do mês: dezembro 2018

O romanesco e a volta das narrativas

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: The return of the poet, Antonio Neves, 1993.

Em meu primeiro post, falei da importância de construir uma base teórica sobre o termo romanesco em suas concepções tradicionais para melhor manusear os contornos que o romanesco assume em Barthes. No intento de continuar esse percurso, é importante estudar o projeto de renarrativização que, de certa forma, reacendeu o interesse pelo romanesco no final do século XX.

Os valores de vanguarda que, durante boa parte do século XX, radicalmente inovaram o modo de escrita de romances, iniciaram uma onda de recusa do método romanesco de contar histórias, que, apesar de continuar a ser produzido pelos autores e consumido pelos leitores, foi relegado à identificação de antiquado e, talvez, um pouco esquecido pela crítica literária. Esse romanesco, tratado de forma pejorativa, renunciava às inovações vanguardistas e era caracterizado por construir um enredo saturado de eventos e amarrados por uma cadeia causal, repleto de personagens extravagantes e polarizados. A rejeição desse tipo de narrativa veio acompanhada de um desprestígio de sua forma pela crítica, já que parecia um retrocesso diante das pesquisas formais do que ficou conhecido como “alto modernismo”.

O “retorno do romanesco”, então, não indica propriamente um ressurgimento dessa forma de narrar, já que ela sobreviveu às vanguardas, mas uma tentativa de recuperar o valor intelectual e remover a carga depreciativa que recaiu sobre o termo e suas técnicas após o desencorajamento de suas formas tradicionais de escrita pela influência de movimentos como o Nouveau Roman, por exemplo. Mas esse retorno, como é possível imaginar, não é tranquilo, livre de tensões. As principais críticas aos clamores de renarrativização consideram o projeto anacrônico, recuperando tradições que não cabem mais no contexto literário atual, além da acusação de visar apenas ao viés mercadológico.

Para Lucas Hollister, em sua tese Problematic Returns: On the Romanesque in Contemporary French Literature, esse processo tem início na década de 80 e constitui um aspecto essencial da literatura contemporânea francesa “séria”. Já no Brasil, o projeto de renarrativização parece ter um interesse maior em angariar a legitimação, por parte da crítica acadêmica, da literatura de entretenimento. Em 2010, um grupo de autores, autodenominados Grupo Silvestre, assinou um manifesto em prol de uma literatura popular brasileira, focada em “uma história bem contada”, “sedução pela palavra”, com estratégias da tradição romanesca para encantar o leitor com um “enredo ágil”, carregado de peripécias, um título atraente, e rejeição de “academicismos” e “experimentalismos vazios” que, segundo os signatários, afastam o leitor e apenas servem para glorificar uma elite “moderninha”.

Nesse cenário, o romanesco levanta uma diversidade de perspectivas que buscam validar ou rechaçar seu lugar dentro da literatura com uma riqueza de argumentos para cada uma delas. O mais interessante é perceber que essa contenda caracteriza o “retorno do romanesco” por meio de estratégias de escrita muito parecidas com a concepção clássica do romanesco relacionada aos romance escritos na idade média.

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Outras experimentações do urbano: múltiplos espaços, diferentes suportes

Milena Tanure

Créditos das imagens: Imagem do livro “Territórios movediços”, de Felipe Rezende e Luma Flôres (Crédito: Caixa de Fósforo).

Iniciei as escritas neste blog falando sobre “Ruína de anjos”, uma peça teatral que, sendo encenada na rua, nos possibilita pensar uma outra experimentação da arte e da representação do urbano. O exemplo me interessa porque na minha pesquisa gostaria de empreender uma discussão sobre as representações contemporâneas da cidade de Salvador.

A princípio, as chaves de leitura eram as representações de cidade e de sua memória nas narrativas literárias baianas contemporâneas com foco na produção em prosa. No entanto, outros dispositivos têm se colocado como indispensáveis para pensar o literário e produzir uma crítica das imagens contemporâneas do urbano. Penso, por exemplo, no livro “Levante, o sistema caiu”, de Daniel Lisboa (Lambes do Mal): “é um manual de desobediência urbana. Nas páginas negras desse tratado pessimista encontramos o anti-fluxo, um atalho para lugar nenhum que pode nos leva a todos os lugares.”

Este livro consiste em uma das descobertas atuais de pesquisa. Ele faz parte do rol de livros de artista que compõe o resultado das atividades da Incubadora de Publicações Gráficas, iniciativa que buscou estimular a criação e desenvolvimento de livros de artista em Salvador e que encerrou suas atividades com a exposição coletiva realizada na RV Cultura e Arte para a divulgação das publicações oriundas do projeto. Colocando em cena algumas temáticas sobre o viver na urbe contemporânea, o projeto impõe a seus leitores questionamentos sobre a própria sacralização do suporte livro tal qual o conhecemos e tensiona as já problemáticas fronteiras entre o literário e não literário, bem como a expansão da literatura por diferentes caminhos do universo da arte.

Dentre os livros da Incubadora estão Multidão de Lucas Moreira e Gris que
inventaria um rol de sujeitos que caminham pelas ruas de Salvador e que são deslocadas para o interior do livro em processo de subjetivação; livro-objeto Marear de Taygoara Aguiar que propõe um trânsito marítimo por embarcações pesqueiras e de passeio dos portos da Baía de Todos os Santos através de uma cartografia afetiva e Territórios Movediços de Felipe Rezende e Luma Flôres que, como consta no release do evento, “aborda realidade, espaço e simulação a partir de mapas da cidade de Salvador. De caráter labiríntico, tal como a velha cidade, suas dobras e traçados urbanos são caminhos por onde se desenrolam um diálogo imaginário entre trechos de Jorge Luís Borges e Jean Baudrillard, protagonizado por personagens que transformam de maneira imediata o espaço […]Funciona simultaneamente como território, livro e objeto escultórico, proporcionando diferentes possibilidades de leitura”.

Diante dessas produções, me dou conta de que quero pensar o corpo que
cartografa, como ele lê/vive a cidade, que cidade é essa e que corpo é esse que se representa. O que procuro não está em estruturas sólidas como antigas construções, mas em processos de feitura, em busca de lugar ou, simplesmente, em trânsito.

A partir dos processos de errâncias urbanas que Paola Berenstein propõe a partir do entrelace entre as experiências urbanas e as narrativas contemporâneas, proponho pensar os processos de subjetivação a partir das experimentações urbanas e, dessa forma, perceber uma cartografia do simbólico em narrativas muito particulares. Vai se percebendo, assim, o modo pelo qual essa pesquisa, pensando imagens de Salvador que se presentificam pela via literária, reconhece a existência de múltiplas vozes que deixam ver representações capazes de revelar a heterogeneidade discursiva da cidade. O contato com os livros aqui citados possibilita pensar, assim, que a pesquisa vai tomando os seus rumos e permite entender, ainda, que, como um corpo errante, o diálogo se dará com representações múltiplas nas múltiplas linhas que entrecruzam a cidade.