Arquivo do mês: julho 2021

Fotografias e narrativas

Samara Lima

Créditos da imagem: “As fantasias eletivas” de Carlos Henrique Schroeder

Como já comentei, minha pesquisa de iniciação científica busca investigar a presença de imagens fotográficas nas produções literárias contemporâneas. Durante minha investigação, percebi que seja abrigando múltiplas significações, embaralhando as noções de ficção e verdade, ou ainda sendo tratadas como mero registro documental, a presença de imagens em meio a narrativas ficcionais não deixa de nos causar certa perturbação, por mais comum que esse procedimento esteja se tornando.

Hoje, gostaria de comentar As fantasias eletivas, um romance escrito por Carlos Henrique Schroeder e publicado no ano de 2018. Aí, acompanhamos a história de Renê, um recepcionista de hotel incomodado com as visitas de Copi, uma travesti argentina. O personagem é uma espécie de homenagem ao famoso escritor argentino Raul Damonte Botana, mais conhecido como Copi, que faleceu em decorrência de complicações relacionadas à AIDS. 

A relação entre os dois personagens começa com uma briga e se consolida em uma inesperada amizade. Da mesma forma que Renê, pouco a pouco, o leitor vai desvendando a trajetória de Copi: o gosto pela leitura, sua tristeza interior, o curso de jornalismo em Buenos Aires, as tentativas de seguir o caminho da escrita e sua paixão pela fotografia. 

Em um dado momento da narrativa, acompanhamos as reflexões de Copi sobre a fotografia, sobre a relação das imagens com a literatura. Copi revela a Renê uma sequência de fotos, acompanhadas de “pequenos textos”. As fotos, reproduzidas no livro, mostram objetos simples: um relógio, um espelho, uma placa de trânsito, tiradas com uma Polaroid. Essas imagens retratam o ordinário do cotidiano e a solidão dos objetos, mas também a própria solidão e condição de outsider de Copi. Mas que relação pode haver entre a reprodução das fotos e o universo ficcional elaborado pelo romance?

Para Copi, as fotografias são instantes capturados da realidade e funcionam como “uma espécie de segunda memória.” É curioso notar que essa percepção é facilmente comparada com o comentário de Joan Fontcuberta, em A caixa de Pandora, acerca da fotografia analógica. Entre tantas outras coisas, o autor comenta que, durante muito tempo, “a fotografia esteve tautologicamente ligada à memória”, preenchendo arquivos, coleções, álbuns familiares, a fim de servir como documento e autenticação da experiência.

É bem verdade que a visão da fotografia como atestação da existência de uma realidade está cada vez mais sendo contestada na contemporaneidade, mas é esse pensamento que parece impregnar não apenas as reflexões que Copi faz sobre a fotografia, mas também o modo de funcionamento das imagens junto à narrativa de Schroeder. 

A imagem que abre este post faz parte da série de fotos tiradas por Copi e me parece um exemplo emblemático para pensar a relação entre texto e imagem neste romance. A foto é acompanhada por este texto: 

Os telefones públicos, os populares orelhões, amargam a exclusão completa, imposta pela popularização dos celulares. Pesquisas indicam que 78% dos orelhões consomem entorpecentes. Eles tornam-se um grave problema social, pois é provável que mais da metade deles caia na indigência. Em todos os cantos do país é possível vê-los, sempre sozinhos, cabisbaixos e tristes, à espera de um milagre.

O caráter documental da imagem fica mais evidente quando a personagem afirma mais à frente que seus textos “são baseados em fotografias”. O fato é que as imagens tiradas de sua Polaroid não parecem atuar como potências imaginativas, mas sim como meros artifícios para “entender um pouco mais os processos literários” nos quais Copi diz estar interessado. 

O texto dá vida ao orelhão, conferindo a ele tristeza e abandono em função da massificação dos celulares. Entretanto, quando questionamos o efeito da presença da foto em meio à narrativa, é evidente que a imagem não parece instaurar dúvidas, expor as contradições da representação ou oferecer formas de expansão do texto, já que opera por reduplicação: observamos a imagem de um orelhão e em seguida lemos uma menção direta ao telefone público. Aqui, é o texto que “amplia” e acondiciona a imagem (documental) à narrativa, pois o texto emoldura a foto destacando a “solidão e o abandono” do orelhão, que por sua vez funciona como metáfora da condição de Copi, tal como retratado pela narrativa.

Quem é a “Amiga genial”?

Allana Santana

Créditos da imagem: Hans Breder, Body/Sculptures, 1969-1973


Em meu último post, me arrisquei a comentar algumas transformações na forma do bildungsroman, a partir de uma leitura de A amiga Genial. Agora, gostaria de explorar melhor a relação entre as duas personagens principais da quadrilogia de Elena Ferrante, Lila e Lenu.

No prólogo de A amiga Genial, Lenu narra o sumiço de Lila, que é o evento propulsor da narrativa:

“Estava extrapolando o conceito de vestígio. Queria não só desaparecer, mas também apagar toda a vida que deixara para trás. Fiquei muito irritada. Vamos ver quem ganha dessa vez, disse a mim mesma. Liguei o computador e comecei a escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou na memória”.

Assim, a trama da tetralogia, do ponto de vista de Lenu, é a história da amizade das duas, bem como a narração das experiências vividas por ambas ao longo de toda uma vida. Lenu busca dar uma ordem a essas vidas, mas como a presença de Lila é fundamental, mas vestigial, escorregadia, a escrita de Lenu falha em capturar Lila, ao mesmo tempo em que não desiste de tentar realizar essa captura.

Desde o princípio, a diferença de personalidade das narradoras afeta a trama também. A presença de Lila está associada a situações de impulsividade, a fortes emoções, o que contrasta com a ordem que Lenu quer dar à narrativa.

Um exemplo: durante a adolescência das meninas, Lenu é abordada pelo filho do farmacêutico e outro garoto, que apostam que os seios de Lenu não são verdadeiros, desconfiando que ela usa enchimento. Para tentar convencê-la, o garoto propõe dividir com ela as vinte liras que ganharia, caso Lenu aceitasse o desafio. Após uma breve dúvida, recebe o dinheiro de antemão e revela os seios para os dois em um local mais afastado. Após recontar esse evento, a narradora associa seu comportamento à influência de Lila em sua vida, que atua sobre ela como um “fantasma exigente”:

“E se estivesse com Lila? Eu a teria puxado por um braço e sussurrado em seu ouvido: vamos embora; e depois, como sempre, eu acabaria ficando, só porque ela, como sempre, teria decidido ficar. Ao contrário, em sua ausência, após uma breve hesitação, me pus em seu lugar. Ou melhor, abri um espaço para ela em mim”.

Mas talvez o episódio mais caracteristico da maneira como a “formação” da personalidade de ambas se embaralha, se entrelaça seja o momento em que as amigas decidem se aventurar pela primeira vez fora dos limites do bairro, a partir da ideia de Lila. A presença de Lila parece inspirar coragem em Lenu, que afirma que “sozinha, eu jamais teria coragem de encarar”. Mas, quando estão prestes a sair do túnel que representa os limites do bairro, Lila decide voltar, enquanto Lenu quer continuar andando: “Notei que várias vezes ela se virava para trás, e eu também comecei a me virar. Sua mão começou a suar. […] Por que Lila olhava para trás? Por que tinha parado de falar? O que estava dando errado?”. Após a empreitada ter dado errado, a narradora parece refletir sobre esse comportamento. A atitude de Lila parece contrariar a imagem que Lenu tinha da amiga e que vinha sendo construída pela trama para o leitor. Assim, o inusitado da atitude de Lila é uma porta para o estranhamento que altera os planos iniciais de Lenu, que ao tentar capturar a existência de Lila, se depara com uma figura fugidia:

“Verificara-se uma curiosa inversão de comportamento: eu, apesar da chuva, teria continuado o caminho, me sentia longe de tudo e de todos, e a distância – o descobrira pela primeira vez – apagava dentro de mim qualquer vínculo, qualquer preocupação; Lila bruscamente se arrependera do próprio plano, tinha renunciado ao mar, quisera voltar aos limites do bairro. Eu não conseguia entender.”

A isso me referi acima quando associei a construção das personagens à construção da própria trama narrativa. O fato de que Lenu não consegue “explicar” Lila tem impacto direto na forma de organização da narrativa. A fortuna crítica da obra não se cansa de chamar a atenção para a smarginatura, tão cara para a escrita de Ferrante. Poderíamos entender que o que sai das margens diz respeito não apenas ao desejo inicial de Lenu de fazer de Lila mais do que vestígio, retirando-a da condição de fantasma, mas também de “escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou na memória”. É inegável que acompanhamos a infância, a adolescência e a vida madura de ambas ao longo da quadrilogia, mas também é inegável que em meio a essa (pretensa) linearidade nos envolvemos nos dilemas, nas digressões, nas angústias de Lenu que se entremeiam aos episódios.

O leitor também experimenta essa ambivalência. Acompanhamos com avidez os acontecimentos, mas a narrativa faz questão de nos propor uma desmarginação. É isso o que acontece, por exemplo, quando acreditamos, durante a leitura da maior parte da obra, que A amiga genial do título é  Lila. Entretanto, quase no final do livro, é Lila quem se refere a Lenu como sendo sua amiga genial.

HIV/AIDS no conto “Três apitos”, de Marcelo Moutinho

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Alice Neel, Nancy, 1980

“Três apitos” é um dos contos presente no livro Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional, 2017), lançado pela editora Record, do escritor carioca Marcelo Moutinho. A narrativa tem como tema central a descoberta da infecção por HIV da protagonista e como este acontecimento modifica seu relacionamento afetivo e sua relação consigo mesma. Narrado em primeira pessoa, o conto busca mostrar a convivência com o vírus do ponto de vista de uma personagem feminina que tem como um dos principais projetos de vida a maternidade.

O interesse na narrativa de Moutinho diz respeito a meu primeiro momento durante a pesquisa de doutoramento, que busca mapear as formas de representação do HIV/AIDS nas produções literárias brasileiras e observar conexões entre o universo ficcional e o social.

O conto “Três apitos” oferece formas de representação da doença pouco vistas nas produções mapeadas até aqui. Entre essas questões, há três que se sobressaem pela baixa ocorrência nas produções da literatura brasileira que investiguei até agora. Chama a atenção, por exemplo, a presença da contaminação por HIV em uma mulher heterossexual vivendo em uma relação monogâmica. A questão envolvendo a presença da contaminação em personagens que trafegam no universo heteronormativo é rara nas narrativas que venho lendo. Sua presença na narrativa de Moutinho amplia o leque de subjetividades e representações relacionadas à essa temática.

Outro desvio em relação às obras que trazem representações da doença ou da contaminação pelo vírus, é o fato de que podemos acompanhar o tratamento da protagonista que utiliza medicação para controle do HIV, pois desde “Depois de agosto”, conto de Caio Fernando Abreu escrito em 1995, os medicamentos para HIV aparecem na ficção, inaugurando a “narrativa pós-coquetel”, porém quase sempre os personagens representados nesta dinâmica são homens homossexuais.

Mas talvez o mais interessante seja a discussão sobre a maternidade em uma personagem com o vírus. Antes do diagnóstico, a personagem tinha como principal projeto de vida a constituição de uma família e a geração de uma criança, o que aparentemente também era o desejo do namorado da narradora. A revelação da soropositividade dela, porém, além de causar o término do relacionamento, encerra seu sonho de ser mãe: “arquivei a ideia da maternidade. Mais do que isso, a própria ideia do amor”.

Entre tantas outras abordagens feitas pelo conto (o machismo, os efeitos colaterais dos medicamentos, a revelação da soropositividade, o abandono etc.) o protagonismo de uma personagem mulher que também é a narradora da sua história, além da discussão sobre a maternidade, talvez seja o que de mais importante a narrativa ofereça para pensar uma ampliação dos modos de representação da doença.