Arquivo do mês: maio 2022

Autobiografia, ficção e muitas dúvidas

João Matos

Créditos da imagem: Katie Paterson, Future Library, 2014

Não se pode dizer que o termo “autoficção” é algo recente. Como sabemos, surgiu pela primeira vez na quarta capa do romance Fils, publicado em 1977 por Serge Doubrovsky, numa espécie de resposta ou provocação às considerações de Phillipe Lejeune sobre os pactos de leitura (autobiográfico e ficcional). Apesar de sua vasta circulação no campo literário, ainda há uma grande imprecisão teórica a respeito do conceito, como já explorou a colega Caroline Conceição, aqui mesmo no blog. Talvez por isso o uso do termo ainda levanta “polêmicas” a respeito das obras que podem ser lidas por esta perspectiva.

Não foram poucos os autores e teóricos que se propuseram a definir os desdobramentos da proposição original de Doubrovsky que instituiu um tipo de texto híbrido entre o romance e a autobiografia. Uma dessas discussões gira em torno da tensão que o “novo gênero” cria com uma nomenclatura velha conhecida da teoria literária, o romance autobiográfico. Philippe Gasparini, constatando a existência de um gênero que já explora a mescla entre romance e autobiografia se pergunta: por que apelar para um novo termo?

Talvez seja porque o caráter ambíguo dos textos considerados autoficcionais explora também um tabu para as discussões teóricas em nossa área: a consideração do dado autobiográfico (e, portanto, de um elemento que a teoria insistiu em considerar extra-literário até pouco tempo) como parte integrante do jogo com a elaboração ficcional, mesmo que o próprio autor declare a sua intenção de conceber o texto como “ficção pura”.

Em minha pesquisa de iniciação cientifica tento observar esses impasses considerando o primeiro romance de Tiago Ferro, O Pai da Menina Morta. Aí, lemos a dolorosa reflexão do “pai da menina morta” sobre a perda de sua filha. O trágico falecimento da filha de Ferro foi noticiado em jornais de grande circulação e tematizado pelo autor em um texto escrito para a revista Piauí.

Ao declarar que a autoficção não é um termo adequado para classificar seu romance e que a associação poderia “gerar uma leitura empobrecida do livro”, Ferro não demonstra apenas uma concepção negativa do termo, mas também declara sua confiança na elaboração de um universo ficcional autônomo, capaz de distanciar o “pai da menina morta” da narrativa da tragédia pessoal vivida pelo autor.

Entendendo a recusa ou o acolhimento ao termo como um vestígio dos deslocamentos no modo como tanto a autobiografia como a ficção são compreendidas hoje, tendo a valorizar a complexidade das questões lançadas pelo surgimento do termo autoficção. Será que o hibridismo do autobiográfico com o ficcional cria uma oposição com a liberdade inventiva e formal do escritor? A autoficção nos força a lidar com o estranhamento de novas formas textuais?

Lugar de fala e foco narrativo

Marília Costa

Créditos da imagem: Eduardo Kobra

Em 2020, José Falero publicou, pela editora Todavia, Os supridores. A narrativa trata da trajetória de dois jovens periféricos que trabalham como supridores em uma rede de supermercados e resolvem vender maconha como estratégia para escapar do regime opressor da pobreza. Tudo se passa no bairro Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre, lugar onde o autor cresceu e vive até hoje. O tema central do livro é a discussão sobre a desigualdade social no país, apresentada a partir da lógica marxista, da crítica à meritocracia e da valorização da leitura como fonte de conhecimento e atividade reflexiva que possibilita a não alienação pelo trabalho e pelo consumo.

A fortuna crítica da obra tem destacado que Os supridores é uma obra sobre a periferia e feita na periferia, como pontua Luís Augusto Fischer: “É um escritor que vai além da tradição realista ocidental, da produção de livros de classes confortáveis sobre pobres. É alguém cujo horizonte é o da pobreza e que transita entre a língua falada naquele mundo e a linguagem sofisticada”. Nesse sentido, é interessante pensar como a dimensão interna da obra dialoga com a dimensão externa na análise crítica e na recepção contemporânea.

A dimensão interna da obra diz respeito ao foco narrativo, ou seja, à orientação do olhar do narrador sobre seus personagens. Ao escolher um ponto de vista para a narrativa, o narrador escolhe um recorte, uma posição a partir da qual torna possível a seus leitores conhecerem seus personagens. Em Os supridores, o olhar do narrador concentra-se na perspectiva dos personagens Pedro e Marques e o narrador parece onisciente, mas no final do livro é revelado que, na verdade, trata-se de um dos personagens, Pedro, que conta tudo que viveu em forma de livro.

A dimensão externa à obra nos faz pensar em outro ponto de vista: o lugar de fala, A expressão refere-se à posição do sujeito em relação ao discurso (no sentido foucaultiano de discurso). Aqui o que está em jogo é o locus social da autoria, pois a afirmação da experiência de indivíduos historicamente silenciados ganha destaque e oferece perspectivas distintas e diversas para a leitura da obra.

José Falero, que só recentemente concluiu o ensino médio, vive na Periferia de Porto Alegre e já trabalhou como supridor de supermercado, ficamos sabendo lendo as inúmeras entrevistas dadas pelo autor. Essas informações provocam uma tensão sobre a relação entre o lugar de fala e a noção de ponto de vista e ampliam o comentário sobre a obra, expandindo sua análise para “fora” do texto. Assim, cada vez mais as fronteiras entre o ético e o estético vão se estreitando na contemporaneidade, pois é muito comum aproximarmos o narrador do autor empírico. Nesse sentido, Os supridores é uma obra que convoca o trânsito incessante entre o dentro (o mundo ficcional elaborado por Falero) e o fora, o lugar de fala de seu autor, sua origem proletária, morador de comunidade.

Sobre a madeleine e o trabalho com as lembranças.

Antonio Caetano

Créditos da imagem: (fonte: internet)

Jeanne Marie Gagnebin,  no ensaio O rumor das distâncias atravessadas, recupera do romance No caminho de Swann elementos importantes e o compara a outros dois textos inacabados do próprio Proust, um “romance de sensações”de título Jean Santeuil e o prefácio de um livro de ensaios de crítica literária, o Contre Sainte-Beuve. A comparação acontece em relação ao famoso episódio da madeleine em que o narrador de Proust, ao comer o bolinho, desencadeia uma avalanche de lembranças que constituem a obra Em busca do tempo perdido. Segundo Gagnebin, os textos inacabados de Jean Santeuil estão repletos de momentos de procura e de descrição de “reencontros felizes entre sensação presente e sensação passada”, que remetem aos sentimentos provocados pelo “acaso”, como o episódio da madeleine. 

Já no prefácio de Contre Sainte-Beuve há um episódio muito semelhante ao da madeleine como narrado No caminho de Swann. Em uma noite fria de inverno, o narrador vivencia um rompante de lembranças, de odores e gostos que o transportam aos dias em que passava as manhãs em sua casa de campo. Porém, tal momento se dá após a degustação de uma torrada molhada no chá, não de uma madeleine. 

Dessa forma, Gagnebin aponta que o No caminho de Swann difere tanto do ensaio quanto do “romance de sensações”, mas que, simultaneamente, 

os reúne, misturando em sua composição os gêneros literários do ensaio e do romance, da autobiografia e da ficção, criando uma unidade nova e essencial para a literatura contemporânea, na qual reflexão estética, invenção romanesca e trabalho de lembranças confluem e se apoiam mutuamente (GAGNEBIN, 2006, p. 148).

considerando, assim, os textos inacabados como parte integrante e ativa de No caminho de Swann. Além disso, em vista do seu caráter autobiográfico e ensaístico, a teórica afirma que em No caminho de Swann é empenhada uma luta contra o tempo e contra a morte através da escrita. Gagnebin também assinala que os “acasos” da madeleine e da torrada empenhados por Proust representam algo muito maior, algo  que não depende da nossa vontade para que nos atravesse, e que, exatamente por isso, demanda um olhar treinado, um olhar que já está esperando por um acaso como aquele, que exercita uma seleção de “provas” que deixam o olhar mais apto para acolher esse “acaso” e suas consequências.

Aproveito, então, para tomar como exemplo o romance O pai da menina morta (2018), de Tiago Ferro, em que o narrador deslinda diversos fatores de sua vida (presente e passado) após a morte de sua filha criança. Nesse caso temos uma escrita de luto de um narrador/escritor que confunde a vida desse narrador com o próprio autor, Tiago Ferro, cuja filha de oito anos também faleceu. 

Acontece que em 2016, antes da publicação do romance em 2018, Tiago Ferro publica na revista Piauí um texto intitulado Já não era mais terça-feira, mas também não era quarta, que é dedicado a suas filhas e à mãe delas. Nesse texto ele escreve sobre os acontecimentos que se seguiram após a morte da filha e sobre a sensação de inadequação à vida, que se transformou de forma trágica. Sobre isso, alguns pontos precisam ser destacados. Entre a escrita do texto e do romance há uma aproximação que não é apenas temática, pois lemos na matéria da revista Piauí uma “conversa” entre o episódio vivido pelo narrador e um conjunto de referências culturais que reaparece no romance, como, por exemplo, referências culturais à música e ao cinema (cantores como Chico Buarque e Djavan; os filmes Sete anos no Tibet e Matrix também são mencionados). Mas há uma diferença importante: no romance os nomes dos personagens são trocados ou não são revelados, diferente do que acontece no texto publicado na revista Piauí. 

Portanto, penso que mais do que relações autoficcionais que confundem o narrador do romance com Ferro, o autor, as referências correspondentes presentes na postagem da Piauí e que vão parar no romance O pai da menina morta podem indicar uma escrita que mescla reflexão estética, invenção romanesca e trabalho de lembranças que se apoiam mutuamente exibindo um trabalho de luto pela filha, trabalho este que põe em prática um exercício que treina o olhar e o deixa mais apto para acolher “acasos”, selecionar provas, que permitam buscar, na escrita de luto, rememorar e ficcionalizar a perda, ou seja, uma forma de lutar contra a morte.