Em busca da autoficção

Por Davi Lara

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Crédito da imagem: Stephen Boyle

Uma das formas mais tradicionais de se abordar a autoficção é inseri-la dentro daquilo que se convencionou chamar de “o retorno do autor”. Por “retorno do autor” entenda-se a revalorização da figura do autor por um amplo leque de agentes e agências do campo literário no contemporâneo. Assim, depois da paulatina desvalorização da instância autoral na literatura e na teoria modernista – que culminou no anúncio da “morte do autor” feita por Roland Barthes em 1968 – eis que as gerações mais recentes viram ressurgir o interesse pela figura autoral. Os sinais desse ressurgimento, por assim dizer, se veem hoje em todos os lugares: nas teses acadêmicas, nas manchetes dos jornais especializados, na proliferação das festas literárias, das oficinas de escrita criativa, das bienais do livro… e pelo número crescente de narrativas em que há a intromissão da voz autoral.

O mais interessante desse enquadramento é que, ao se colocar a autoficção ao lado de eventos extratextuais como as festas literárias, se põe em evidência um elemento muito importante deste gênero narrativo: o esgarçar dos limites entre a ficção e a realidade. Deste modo, é comum se pensar a autoficção para além dos limites do objeto livro, abarcando todas as instâncias midiáticas em que a figura do autor dá o ar de sua graça, como as redes sociais, por exemplo. Com um pouco de atenção, é possível ver como alguns autores contemporâneos constroem uma persona autoral fazendo uso de diversas plataformas, inclusive seus próprios romances. Se, por um lado, a realidade invadiu os livros de ficção, por outro, a ficção parece invadir a própria realidade na medida em que se torna mais claro esse processo de (auto)criação da persona artística de um escritor.

Como resultado disso, se tem a noção de um eu multifacetado e descentrado, que se baseia não em um eu primordial e pré-existente ao texto, mas num eu que se constrói junto com o texto, no texto. Se a persona que aparece nas redes sociais está equiparada à persona literária, então não há por que considerar qualquer persona como superior à outra, incluindo a persona familiar, a persona do trabalho etc., não importa, todas valem o mesmo. Em um importante estudo, a crítica argentina Diana Irene Klinger (2012) já aponta para essa característica ao “articular a escrita com uma noção contemporânea de subjetividade, isto é, um sujeito não essencial, incompleto e suscetível de auto-criação”. Contudo, por mais que essas reflexões nos afastem da crítica estritamente textual, conforme é ou foi praticada pelos estruturalistas, por exemplo, isso não significa que devamos abandonar a reflexão sobre a forma. Logo, uma das perguntar que surgem é: se a autoficção traz uma nova concepção de autoria menos autocentrada e sem a referência de um eu primordial, quais são as estratégias narrativas que dão corpo a essa concepção contemporânea de autor? Ou, pra ser mais sucinto, qual é a obra que nasce deste novo autor?

Esta pergunta não é de fácil resolução, haja vista a diversidade de obras que são reunidas, hoje, sob o signo da palavra-valise. Levando isso em consideração, qualquer tentativa de estabelecer uma forma própria da autoficção privilegiará um corpo de obras e ignorará outros. Isso não impede, contudo, que, tomando o cuidado de não generalizar, busquemos identificar certos campos de força dentro do continente que se chama de autoficção. Num post recente aqui do blog, Fernanda Vasconcelos cita o “estado de estúdio”, termo cunhado por Reinaldo Laddaga para designar as obras contemporâneas em que o escritor, dentro da narrativa, comenta o seu processo de escrita. De modo análogo, a já citada crítica Diana Klinger (2012), num estudo sobre a autoficção, assinala o caráter inacabado, incompleto de algumas obras, como um work in progress. Como um exemplo deste processo, poderíamos mencionar o romance citado por Fernanda Vasconcelos, o volume 1 da hexalogia do norueguês Karl Ove Knausgård, A Morte do Pai – Minha Luta 1, onde depois de mais de cem páginas de reminiscências sobre a infância do autor, o leitor é conduzido ao escritório de trabalho de Knausgård e acompanha aqui e ali, o processo de escrita da obra que está lendo.

Também no romance Paris Não Tem Fim do escritor espanhol Enrique Vila-Matas, o protagonista escreve notas para uma conferência sobre a ironia e, não por mera coincidência, o romance que estamos lendo é dividido em pequenas partes, como se fossem as próprias anotações do protagonista. Soldados de Salamina, do também espanhol Javier Cercas, por sua vez, conta a história de um personagem chamado Javier Cercas durante as pesquisas para a preparação de uma narrativa real que se chamará “Soldados de Salamina”. Nesses três romances se têm exemplos distintos de obras em construção, work in progress, que soam também como uma espécie de making of do romance. O romance mesclado com a preparação do romance, para citar mais uma vez Roland Barthes.

O mais instigante disso é que, com o work in progress, a forma literária espelha o mesmo perfil de incompletude e fragmentação que é assumido pela figura autoral. Há uma correspondência entre uma coisa e outra, dando uma unidade para a ideia da autoficção. Assim, se este gênero desafiador pode ser entendido como um componente do movimento mais amplo do “retorno do autor” e, por isso, tende a escapulir para fora dos limites textuais, arriscaria dizer que, dentro do campo estrito da literatura, essa nova experiência do eu promove uma mudança na forma do romance.

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4 Respostas para “Em busca da autoficção

  1. A relação entre a mudança no tratamento da subjetividade autoral (dentro e fora dos textos) e as formas literárias no contemporâneo é muito bem colocada em seu post, Davi. Se pensamos que a farta bibliografia sobre a forma do romance costuma associar a transformação de uma maneira de entender o sujeito no início da modernidade à inserção paulatina de um texto calcado na ficcionalidade, me parece totalmente pertinente considerar que um certo tratamento da subjetividade hoje pode estar relacionada a uma transformação da forma de contar histórias. O desafio é o como, é a produção de comentário crítico-teórico. Acho que seu post dá mostras dessa disposição.

  2. Davi, agradeço a referência ao post que escrevi anteriormente sobre a obra autobiográfica de Karl Ove Knausgård, a hexalogia Minha Luta. Seu texto acrescenta um importante apontamento que não ficou evidenciado no meu post: se o romance apresenta uma forma outra, ela está diretamente ligada ao sujeito contemporâneo. E esse sujeito é atravessado pela evidente habilidade de autoficção no atual cenário – considerando sua multiplicidade de plataformas e modos de visibilidade. A ficção literária não fica impune a esse esgarçar da tensão ficção/realidade, bem explicada por você, e as estratégias da escrita de si parecem ser moldadas pela autoficção possibilitando outras formas de narrar. Achei pertinente a aproximação das noções do work in progress e da estética de laboratório, como foi citado. Ambas noções parecem condizerem com essa habilidade de criar(-se) e recriar(-se) aceleradamente. Seu texto é claro e agencia importantes conceitos, boas chaves de leituras, como foi comentado. Já quero ler o texto citado da Klinger e o seu próximo texto no blog.

  3. Muito obrigado pelo comentário, Fernanda. Fico feliz em ver como nossos interesses são próximos. Espero que possamos estreitar mais esse diálogo. Quanto ao livro de Diana Irene Klinger, é uma boa leitura. Um abraço!

  4. Pingback: O eu lírico e os outros eus I | Leituras contemporâneas - Narrativas do Século XXI

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