‘As notas remetem a qualquer lugar do texto. Assim como a qualquer um de seus brancos.’

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Remedios Varo, Ojos sobre la mesa, 1935.

A relação da nota com a escrita do romance é muito cara para o projeto de pesquisa que estou desenvolvendo e o texto “Paratextos editoriais”, de Gerárd Genette, como uma referência central na discussão sobre a nota como gênero textual, levanta questionamentos importantes que contribuem para a investigação.

Nesse texto, o autor procura definir os elementos que compõem o paratexto, uma zona “indecisa” entre texto e fora-do-texto marcada pela instabilidade, local onde a nota parece se encaixar muito bem pela sua natureza elusiva e fugidia. De acordo com Genette, o campo do paratexto é, em si, muito movediço, um conjunto de práticas de difícil definição que depende menos de conceitos concretos do que de escolhas de método.

A nota, então, cerca essa zona incerta com sua própria carga de relatividade. Genette considera que as suas manifestações são tão diversas caso a caso e, por vezes, tão dependentes de um determinado recorte de um determinado texto que até sua autonomia como gênero poderia ser posta em questão. Seu caráter parcial e local, como referenciadora em particular a um trecho de um texto, seriam seus traços formais mais característicos, já que quase todo o resto seria variável, desde o seu tamanho, disposição, função, nível (como em notas sobre outras notas), momento de adição ao texto, até o seu propósito (ou falta dele). Para ele as notas são, por definição, “pontuais, fragmentadas, como que pulverulentas, para não dizer poeirentas”, de difícil apreensão.

As notas seriam algo de um apelo restrito, sua leitura facultativa exceto para alguns leitores interessados em comentários acessórios a um excerto do texto. A instalação de uma nota tem cunho digressivo e complementar e pode conter desde traduções de citações, indicações de fontes, apoio a argumentos com evidências documentais ou suporte de autoridades, a especulações, observações de terceiros, comentários biográficos, genéticos e registros da facção ou da edição do texto anotado. Dessa forma, o desvio do texto à nota pode significar uma quebra da integridade do texto, mas também pode abrir uma outra dimensão de sua leitura e compreensão.

Comentando o aspecto que me interessa, que é a investigação sobre a prática da anotação relacionada à produção literária, Genette comenta que, de modo geral, as notas em textos ficcionais servem para trazer referências e esclarecimentos a romances históricos. De outra maneira, sua presença pode vir a ser uma transgressão sem justificativa aparente para sua existência. Seriam mais raras as notas ficcionais em si, usadas no intuito de contribuir para, ou até mesmo construir, a ficcionalidade de um texto.

Estudar esse texto se já se justificaria pela sua análise da nota e talvez até por mudanças perceptíveis em seus usos atualmente, sua primeira edição é de 1987. Mas o mais interessante do texto pode ser a abertura que Genette propõe para pensar a relação entre anotação e ficção ao explorar a possibilidade de a anotação ganhar autonomia e reivindicar para si o estatuto de narrativa. Assim, ainda que prevaleça um enfoque na acepção redutora das funcionalidades da nota, Genette abre espaço para o potencial da nota para  “prolongar, ramificar e modular” o texto para além de sua função apenas paratextual. Essa sugestão me motiva a aprofundar minha especulação sobre outros modos de presença da prática da anotação em obras como a Novela Luminosa de Mario Levrero. É possível pensar a anotação como um procedimento de escrita, mais que um dispositivo meramente auxiliar, um mínimo aparato referencial?

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A recorrência de metáforas bélicas nas produções narrativas sobre HIV/aids

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Peter Juhar, Self-Portrait Jumping (1), 1974.

Susan Sontag, no livro-ensaio AIDS e suas metáforas, em dado momento, discute sobre uma das principais formas de abordar a temática do HIV/aids: o uso de metáforas bélicas para se referir ao vírus e à doença. A ensaísta fala no livro sobre como grande parte dos discursos, principalmente aqueles provenientes do campo biomédico, empreendeu uma espécie de bellum contra morbum, guerra à doença, para formular estratégias e ações que tivessem como objetivo lidar com a epidemia emergente no final do Século XX.

A estratégia de utilizar vocabulário e ideias relativas ao universo bélico para falar sobre doenças parece ter se consolidado nos contextos de pré e pós-guerra do início do Século XX, durante as epidemias de sífilis e tuberculose, e a partir daí passou a ser a tônica da maioria das campanhas de saúde pública que lidavam com crises sanitárias. Validadas pelo campo biomédico, as metáforas bélicas se espalharam para outros grupos sociais e acabaram por atingir toda a sociedade. Assim, torna-se comum encontrar nos mais diversos espaços sociais discursos que remetem à ideia de guerra à doença.

Se, nos diversos discursos, essa forma de falar sobre HIV/aids é comum, também na produção literária brasileira essa espécie de metaforização da epidemia é usual e recorrente. Romances como Amarga herança de Leo, de Isabel Vieira, ou ainda, Pequeno segredo, de Heloisa Schurmann, escritos no final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, respectivamente, ainda trazem construções que indicam que a infecção por HIV representa uma sentença de morte, uma batalha a se travar contra o vírus, assim, como aquelas explicações que indicam que o sistema imunológico humano seria uma espécie de exército que protege o corpo de potenciais inimigos, as doenças. Não se pode perder de vista que essas construções permeavam o imaginário sobre a epidemia no início de sua emergência e persistiram por muito tempo, principalmente, nas campanhas de saúde pública voltadas ao público jovem.

No romance de Guido Arosa, O complexo melancólico (2019), diferentemente do que a maioria das outras obras apresenta, há um conflito armado em curso na narrativa. Um dos inimigos desta batalha é o próprio sujeito homossexual, aquele que “o gozo, que dura poucos segundo, causa uma Hiroshima”, como afirma um dos personagens. Perseguido pelo poder instaurado, esse sujeito é condenado à morte “pela doença” ou “pelo Estado”. Nesse aspecto, pode parecer que a obra de Arosa se aproxima de outras narrativas sobre o tema, porém é preciso considerar que essa condenação atribuída é ao corpo homossexual que, independente da presença do HIV/aids, torna-se alvo predominante tanto da guerra simbólica, quanto da violência física fomentada pelo simbolismo bélico.

Se “a guerra é definida como uma emergência na qual nenhum sacrifício é considerado excessivo”, como aponta Sontag, a “guerra à aids” justificaria, inclusive, a perseguição aos sujeitos homossexuais, apontados quase sempre como culpados pela epidemia. Por isso, não é incomum nos discursos e nas produções narrativas, que o foco do esforço bélico esteja mais no corpo desses sujeitos e menos no vírus. No entanto, em relação aos outros grupos sociais, o combate travado é sempre contra o vírus apenas, o que reforça a ideia de que o inimigo desta guerra não é apenas o HIV mas toda uma coletividade que vem sendo atacada desde sempre.

Ensaio, vida e espetáculo

Marília Costa

Recentemente, tive a oportunidade de assistir ao espetáculo “Espontaneamente – genealogia da memória” com a Cia. de teatro Improviso Salvador, que fazia parte da programação do Festival Lusoteropolitana. A peça foi encenada no Teatro Sesc Pelourinho e ao adentrar o local me deparei com o primeiro estranhamento: o palco estava repleto de cadeiras e os atores orientavam o público a sentar ali. Logo de início o elenco solicitou que o público usasse a imaginação, pois eles estavam sem cenário e por isso improvisavam, pois o cenário tinha ficado preso no Teatro Castro Alves para vistoria por conta de um incêndio dias antes da apresentação. A ausência do cenário foi mais um recurso para a quebra da quarta parede, já que a interação dos atores com a plateia vai se tornando mais intensa até que o público torna-se parte da cena.

Durante o espetáculo, os atores relatavam experiências pessoais amorosas, infantis e outras que envolviam traumas e relações familiares. Tudo estava baseado na improvisação das histórias, com toques de humor à narrativa dos dramas. Não demorou muito para que os atores começassem a apontar para a plateia que se acomodou no palco e solicitar que as pessoas compartilhassem memórias que tivessem relação com as experiências dos atores. A dinâmica se manteve: uma pessoa da audiência contava sua história de amor e os atores a encenavam no palco com improvisos.

Dois procedimentos chamam a atenção. A peça demorou muito para começar e pareceu de início estar atrasada, mas, na verdade, o espetáculo já tinha começado no hall do teatro. Os atores disfarçados de público interagiram com os espectadores que estavam aguardando a abertura da sala e fizeram uma sondagem para saber quem tinha histórias interessantes para compartilhar. Depois de iniciado o espetáculo, a audiência acompanha um processo de dupla ficcionalização da vida no palco, já que o enredo é improvisado a partir dos dados biográficos das próprias vidas dos atores e também do público. Esse é o procedimento artístico fundamental dessa encenação teatral.

Assistir a esse espetáculo me fez lembrar de outra experiência: “By Heart” de Tiago Rodrigues, já comentada em um post anterior. A mobilização de não atores para ocupar o centro do palco cria uma “situação teatro” e transforma o espetáculo em um Work in process. O termo, utilizado por Renato Cohen para pensar a performance, indica como ensaio e espetáculo fazem parte de um mesmo momento de construção e se abrem para a convocação do público que participa de modo ativo da representação.

Autor, assinatura, e o livro com “vida própria”

Allana Santana

Créditos da imagem: Adrian Wiszniewsky – La Befana (2013)

Em Frantumaglia, os editores de Ferrante afirmam acreditar que o livro venha para esclarecer, “de modo definitivo”, os motivos pelos quais a autora se mantém afastada da lógica da mídia. A obra não deixa dúvida de que a escolha pelo anonimato é feita antes mesmo da publicação de seu primeiro livro, Um Amor Incômodo. Para Ferrante, os livros não precisam mais de seus autores após terem sido escritos. Para dizerem algo, basta apenas que encontrem leitores dedicados, que decidam agarrar e puxar os fios que formam o estofo da obra. Livros cujo autor pouco importa, mas que possuem uma “intensa vida própria” são os tipos favoritos de Ferrante, que decide apostar nessa convicção.

A leitura me levou a refletir sobre as aproximações do posicionamento da autora italiana com Barthes, pois em “A morte do autor” ele afirma que o texto é um ato performativo, produzido por um scriptor (muito diferente da tradição do autor todo poderoso do século XIX ou do Autor-Deus, que é como Barthes refere-se a essa concepção) que surge junto com o texto, que começa na linguagem para encontrar o leitor.

O que me interessa é pensar de que maneira esse cenário contribui para minhas reflexões sobre a movimentação autoral em Ferrante. De maneira que minhas investigações me levam a pensar não apenas no movimento em torno da autoria, mas também da assinatura.  E aqui é Derrida que aparece para mim com sua noção de assinatura. Para Derrida, a assinatura é uma marca do autor que substitui sua presença, e por isso indica também ausência.

A evocação a Derrida parece pertinente porque lendo Fantrumaglia percebemos um movimento de ausência e presença de Ferrante junto a seu texto. A escritora italiana defende seu anonimato, a primazia da obra, mas os textos, afirmando essa defesa, também funcionam como uma forma de consolidar a marca, a assinatura “Elena Ferrante”, que orienta a crítica e o modo de leitura de seus textos.

Espaço biográfico e escrevivência

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: Adão e Eva no Paraíso Brasileiro (2015), de Rosana Paulino.

Leonor Arfuch toma emprestado o termo espaço biográfico de Philippe Lejeune e realiza um corte sincrônico para relacioná-lo com o universo narrativo contemporâneo em que ”o eu se desdobra em múltiplas máscaras”. Dessa forma, ela não busca definir a especificidade dos termos que possuem incidência biográfica, mas tensionar como a ânsia pela presença e ”sua insistência nos mais diversos registros do discurso social” poderia apresentar como se configura a subjetividade em nosso tempo.

Para alguns, a reconfiguração dessa subjetividade possui um viés negativo já que temos grande exposição da intimidade, excesso de narcisismo e indistinção entre vida pública e privada. Esse tipo de crítica recai principalmente nas obras de autoficção, por ser um termo que vive em uma zona nebulosa e que desestabiliza o estatuto ficcional da narrativa ao mesmo tempo em que deixa em suspenso o caráter verídico do factual.

No entanto, termos como escrevivência também possuem influência do biográfico, mas parecem estar inseridos dentro dos aspectos positivos que Arfuch aponta sobre a guinada subjetiva. Textos em que vemos ”estratégias de autoafirmação, recuperação de memórias individuais e coletivas, busca de reconhecimento de identidades e minorias e afirmação ontológica da diferença”, elementos que estão associados ao termo de Evaristo, como comentei em posts anteriores.

Uma obra que podemos observar através desse viés é Solitária, de Eliana Alves Cruz.  Ela aborda a história  de Eunice e Mabel, mãe e filha que passam a maior parte de suas vidas em um quartinho de empregada.  A narrativa poderia ser pensada através da chave de leitura da escrevivencia por ter como foco a subjetividade do sujeito negro fora dos estereótipos estabelecidos; pela reconstrução da história contada sobre os corpos das mulheres afro-brasileiras através da tomada de consciencia racial de mãe e filha, além da circularidade temporal e a simultaneidade de vozes.

Uma das tensões entre o lado de dentro e o lado de fora no romance ocorre por meio da relação com um episódio trágico recente, a morte de Miguel, de 5 anos, em Recife. No capítulo, Eunice precisa terminar de preparar a refeição da festa de despedida de Camila, filha da dona da casa, e pede que a jovem olhe um pouco Gil, já que não havia mais ninguém no momento e a mãe dele, também empregada da casa, havia saído para comprar ingredientes. Infelizmente, Camila deixa o menino sozinho em um quarto e ele cai da cobertura do prédio.

Nessa cena, o corte que Eunice sofre na mão, que ocorre no mesmo momento em que a criança sofre a queda, estabelece um paralelo entre essa dor que é individual, mas também de todo um grupo. As narrativas parecem atravessar a tessitura textual e interpelar o leitor a pensar sobre o que ele vivenciou ao estabelecer relação com outros discursos que ecoam na sociedade.

Para Arfuch, o espaço biográfico pode ser útil para compreender a contemporaneidade e, através da relação com outras disciplinas, as configurações que temos hoje de sujeito, subjetividade, e espaço, por exemplo. Sendo assim, nos próximos passos da minha pesquisa pretendo discutir sobre como a multiplicação de vozes como a de Eliana Alves Cruz e Jeferson Tenório estão ecoando dentro desse espaço ao utilizar essa perspectiva biográfica que se aproxima do coletivo e que atravessa a esfera pública. 

A guinada documental

Luciene Azevedo

Diego Rivera, Los Murales de la Industria de Detroit (1932-1933)

Como a ficção pode nos ajudar a imaginar futuros possíveis? A pergunta tem me inquietado em especial porque estou interessada em pensar as formas narrativas do presente que vem se caracterizando como o que tem sido chamado de uma guinada documental.

Tal Brasil, qual romance? de Flora Sussekind é o livro que mais agudamente expõe as voltas ao documental como uma característica estruturante da historiografia literária brasileira. Sussekind realça nessa recursividade três momentos importantes: nosso naturalismo do século XIX, o regionalismo modernista e, na década de 70, o surgimento do romance reportagem. A conclusão é ácida. Nesses momentos, a literatura afasta-se da ficção, veta a imaginação e se instala confortavelmente sob a égide de uma representação mimética da realidade, esquecendo o trabalho com a linguagem.

Essa posição entre literatura e documento, ainda que com mais nuances, também é reiterada por Silviano Santiago ao identificar na onda de publicações reconhecidas como romances-reportagem a “desficcionalização do texto literário”. Santiago não quer colocar em jogo o valor dessas obras, como o faz Flora,  mas  reconhece nessa produção “um laço menos afetivo com a literatura” .

O que me interessa observar é que os críticos relacionam o movimento que a literatura faz na direção de uma zona discursiva alheia a seu domínio (o jornalístico, o domínio do fato, o da história para registrar, documentar os abusos da ditadura) com um desleixo em relação ao investimento ficcional. Essa espécie de queixa ou lamento, reapareceu recentemente com o comentário, que também tem algo de alerta, de Lígia Diniz sobre a concessão do Nobel a Annie Ernaux, já que, na sua visão, o prêmio legitima um descaso generalizado com a ficção no presente.

É verdade que muitas obras hoje oferecem ao leitor uma linguagem crua, sem metáforas ou eufemismos, um discurso claro, que não impõe quase nenhum obstáculo à leitura fluida, no qual a fabulação é minimalista (uma espécie de fabulação que não está calcada na criação de personagens, em suas elucubrações interiores ou em suas peripécias), pois o que lemos suporta sem problema ser confrontado com sua situação real (como afirma Kamenszain comentando o livro de Analia Couceyro, El nervio ótico).

O surgimento de nomenclaturas paradoxais com as quais nos deparamos no presente (romance de não ficção, ficções reais, pós-ficção, literatura documental) são uma porta de entrada para uma interrogação sobre as formas peculiares como as ficções se embaraçam com e problematizam a própria ideia do que chamamos de realidade no presente.

Me parece que é um desafio repensar porque voltamos mais uma vez ao documento. Mas a grande questão é: será possível pensar a guinada documental sem reduzi-la a mais um momento de enquadramento positivista do real? Ou seja: a aliança da literatura com o documento no presente pode constituir ainda uma abertura imaginativa em relação ao real?  Como a guinada documental pode  nos ajudar a perceber melhor o modo como as verdades estão em disputa hoje?

“Ele não vale o risco”: a abordagem do relacionamento sorodiscordante no romance Fake, de Felipe Barenco

Ramon Amorim

Créditos da imagem: David Worjnarowicz, Sem título (série homens vendados 1), 1982

O romance Fake (2014), de Felipe Barenco, narra a transição para a vida adulta do personagem Téo e aborda sua entrada na faculdade, a relação com a família e o conturbado namoro com Davi, que se descobre vivendo com HIV pouco depois de os dois se conhecerem. Tendo o Rio de Janeiro como cenário, a narrativa aborda questões acerca do universo de jovens adultos que trafegam por universidades, shopping centers e bairros de classe média da capital fluminense.

Movida pelo interesse em investigar a temática do HIV/aids, uma das chaves de leitura desta narrativa passa pela discussão sobre relacionamentos sorodiscordantes (ou sorodiferentes), tendo em vista que é uma questão central na obra, assim como representa grande parte da hesitação do protagonista e dos seus amigos em relação ao namoro recente, tensionado pelo estado sorológico de Davi. Visto como potencialmente perigosa, a aproximação entre os dois personagens é considerada como um relacionamento de risco para Téo, que possui pouca experiência sexual e tem a sorologia negativa para HIV.

A questão do “relacionamento de risco” atravessa toda a narrativa e sua presença pode ser vista, entre outras formas, nos recorrentes conselhos dos amigos do protagonista sobre o perigo que o namoro representa para a saúde dele. O argumento, quase sempre, é construído sobre a ideia de que manter um relacionamento com alguém HIV positivo se configuraria como uma “prova de amor” e somente funcionaria se houvesse “amor de verdade”. Nesse sentido, a manutenção do namoro significa uma ameaça constante, desnecessária, sobretudo porque “O Davi não vale o risco”, como afirma um personagem.

Por essa ótica, manter um relacionamento com Davi, considerando sua sorologia, exigiria mais esforço e mais amor (o “verdadeiro”) do que em uma relação com outra pessoa, negativa para HIV. Isso leva a pensar em como os sujeitos “posithivos” são construídos socialmente como aqueles não merecedores de afeto. Enquanto isso, o sujeito “negativo” é visto como o que por amar muito consegue, com alguma dose de altruísmo, superar a presença do vírus para manter o vínculo afetivo, ou seja, um ser superior em relação a seus pares, como Téo parece se ver, apesar do seu discurso dizer algo diferente disso.

O problema desse tipo de construção é que ela coloca o sujeito com HIV na qualidade de inferior em relação aos que não convivem com o vírus, o que pode ser lido como uma forma de sorofobia. Essa prática não é exclusiva dos personagens e do narrador do romance de Barenco, ela surge de forma recorrente em diversas narrativas brasileiras. Pode-se dizer que esse tipo de representação é uma constante na literatura nacional, causando surpresa apenas quando não aparece nas produções literárias.

Essa face da sorofobia, que atravessa o romance (sendo produzida inclusive pelo protagonista e seus amigos, entre eles uma jovem médica) e quase toda a produção nacional, aparece de forma mais ou menos articulada a outras. Isso faz pensar em como a representação do HIV/aids ainda recorre aos mesmos mecanismos e construções presentes desde as primeiras narrativas sobre o tema, escritas há quase quatro décadas. O que, talvez, o romance de Felipe Barenco traga de mais original seja o fato de que o personagem com HIV acaba se revelando como o antagonista da obra. Na falta de outras imagens originais, essa seja a que mais acrescenta ao imaginário produzido sobre a temática.

Os meios técnicos e a literatura contemporânea

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: “Instagram” – Richard Prince, 2014, Galeria Courtesy Gagosian. Fotografia de Robert McKeever.

Flora Sussekind em Cinematógrafo de letras aborda a relação entre a história literária brasileira e os meios técnicos que passaram a “enformar” a técnica de muitos autores:  “Não se trata mais de investigar apenas como a literatura representa a técnica, mas como, apropriando-se de procedimentos concernentes à fotografia, ao cinema, ao cartaz, transforma-se a própria técnica literária”. Na esteira de Sussekind, Ana Claudia Viegas em “Escritas contemporâneas: literatura, internet e a ‘invenção de si’”, pensando no advento dos computadores e na interação entre literatura e internet, investiga: “quais as marcas deixadas pelo computador na escrita das últimas gerações?” Podemos apostar que a internet, sobretudo as redes sociais neste novo século, implica numa mudança de comportamento, na forma de fazer política, nas maneiras de escrever e ler literatura, da mesma forma que, a partir da década de 50, uma geração inteira teve seu imaginário forjado pela televisão.

Sem que este post tenha a intenção de aprofundar essas transformações, como faz Sussekind ao analisar inúmeras obras surgidas entre o final do século XIX e o começo do século XX, meu interesse principal é pensar a internet como suporte, como vitrine de exposição dos autores e suas obras e como meio de interação com os leitores. Sobre isso, já falei um pouco em minha postagem anterior.

Tendo escolhido Natália Timerman para analisar esse modo de presença dos autores nas redes, é possível afirmar que os leitores de Timerman podem acompanhar o processo de construção do livro que está sendo escrito, um pouco da vida pessoal da autora (ou ao menos o que ela seleciona para exposição), suas relações com outros autores e como vai forjando e fortalecendo afinidades apoiada na própria dinâmica das redes. Mas também me interessa investigar se é possível identificar uma mudança nos procedimentos de escrita, tal como faz Sussekind, analisando, por exemplo, as narrativas de Lima Barreto e sua relação com a linguagem do jornal. Inicialmente, posso afirmar que as redes sociais também migram para a obra da autora e estão no centro da reflexão que propõe sobre o comportamento dos personagens.

Em Copo Vazio, por meio da brevíssima relação entre Mirella e Pedro iniciada no Tinder e finalizada abruptamente por um sumiço, virtual e real de Pedro, podemos observar marcas da fluidez dos relacionamentos contemporâneos, Timerman questiona a percepção de visibilidade total oferecida pela internet e captura o fugidio e o efêmero desse nosso tempo através desses dois personagens que vão sendo construídos a partir do modo como se relacionam com os mecanismos da internet: “Todos os dias, quase todas as horas, Mirela entra na página de Pedro no Facebook atrás de atualizações, de notícias da existência dele. Será que está bem? Será que está vivo?”

Assim, podemos dizer que também a trama é construída com base em uma rotina a que os usuários dessas redes estão sujeitos:  “Entra de novo na página de Pedro no Facebook. Online!, ele está online. Escreve? Melhor não. Já não está mais online. Ainda bem que não escreveu. Da próxima vez, alguns minutos depois, lá está a bolinha verde: diante de alguma tela está Pedro, assim como ela, logo ali. Antes que se pergunte se deve ou não, escreve por mensagem: Pe, tentando muito falar com você. Ele visualiza e não responde”.

Timerman explora as redes sociais como tema de construção da sua obra e expõe comportamentos e efeitos do virtual em nossa subjetividade e em nossos afetos. Me parece, então, que a autora realiza com eficácia a representação da lógica das redes, mas seria possível afirmar que “transforma-se a própria técnica literária”? Essa interrogação também faz parte de minha pesquisa.

Curadoria e literatura

Luciene Azevedo

Créditos da imagem: Monalisa indígena, Denilson Baniwa

Há não muito tempo atrás, Christy Walpole, uma estudiosa canadense interessada no gênero ensaio, chamava a atenção para a proliferação de estudos sobre essa forma de escrita. Na opinião de Walpole, a instabilidade de sua forma, a dificuldade de sua nomeação, a indecidibilidade a respeito de seu lugar (arte ou ciência?) constituem características do ensaio que se ajustam e respondem bem às demandas de nosso tempo. Mas é a tradição que se inaugura com Montaigne, o caráter tateante do pensamento que afasta certezas, que a crítica afirma ser o mais valioso artifício para o enfrentamento de tempos tão dogmáticos, referindo-se em especial ao discurso político americano dos últimos anos.

Assim, como resposta ao que chama de dogmatismo da paisagem política e social, Walpole propõe a “ensaificação de tudo”, que caracteriza como “um convite para manter a elasticidade do pensamento e aceitar a ambivalência inerente ao mundo”.

A proposta de Walpole também pode ser utilizada para pensar a noção de curadoria, já que seu uso tem se tornado cada vez mais difuso. Alguns teóricos têm atribuído esse impulso curatorial à insidiosa presença da internet em nossas vidas, à proliferação de dados e informações a que estamos sujeitos cotidianamente. Daí a importância que a seleção, uma operação básica do curador, tem para o contemporâneo. Uma evidência disso é o modo como os próprios algoritmos assumem o papel de curadores cibernéticos de nossas escolhas e gostos, organizando nossas playlists ou nossos feeds de notícias.

Mas o que significa pensar a curadoria como uma prática literária? E como seria possível pensar o autor no papel de curador e do quê, exatamente?

É evidente que a mais básica operação realizada pelo curador é a seleção, a escolha, o recorte que faz de determinado trabalho de um artista para a montagem de uma exposição. Embora as operações mais evidentes em jogo na curadoria das práticas literárias sejam o gesto de seleção e recontextualização do material com o qual trabalha o autor curador, é possível pensá-la como um procedimento de elaboração narrativa e poética que tem consequências mais amplas e afeta nossa ideia moderna de arte e, por tabela, de literatura, colocando em xeque muitos elementos importantes para as artes e para a literatura hoje: a questão da criatividade, da originalidade autoral, a valorização da obra inacabada, a importância do processo sobre o produto acabado e do leitor para a elaboração do sentido.

Além de pensar no processo curatorial do qual se vale Ana Maria Gonçalves para elaboração de Um defeito de Cor, tal como analisa Lílian Miranda, poderíamos mencionar outras obras publicadas nos últimos anos em que é possível identificar o autor operando como um curador. Lendo Kafkianas, obra póstuma de Elvira Vigna, o que o leitor tem diante de si são contos? Anotações de leitura? Aí, a curadoria revela-se por meio dos procedimentos de seleção, cópia e comentário que sugerem uma conversa com o universo kafkiano, um processo que é ao mesmo tempo um misto de recontagem das narrativas do autor tcheco e um modo de expor a construção do processo de leitura que redimensiona as fronteiras entre o ficcional, o analítico e o comentário autoral de Vigna.

E em Sessão de Roy Frankel? Como opera a curadoria? O “poema” é um “recorte e cole”, uma seleção e montagem feita pelo autor a partir das notas taquigrafadas da sessão da câmara dos deputados que votou o impeachment da presidenta Dilma Roussef em 2016. A obra revela a potencialidade das mínimas intervenções feitas à transcrição dos votos dos deputados durante a sessão. Caracterizados como uma prática curatorial, os cortes (e outros recursos poéticos como a manipulação gráfica das palavras) potencializam sentidos, evidenciam o clima de polarização de opiniões, acentuando a hibridez entre o discurso político e a ficção.

Os cortes estratégicos expandem os sentidos das falas e exploram a ambivalência das posições, evocam tudo o que o discurso não diz explicitamente

E nesta tarde ensolarada, 
neste domingo, 
dia 17 de abril de 2016, 
vamos fazer a história, 
decidir o 
que 
queremos   
para o futuro deste       
                                          País

Em meio à gravidade da situação e das consequências que teve para o país (sentidas ainda hoje sob a presidência do atual mandatário), a declaração, destacada de seu contexto original, ganha ares cômicos, edulcorados, pelo registro da “tarde ensolarada”. Aqui, a mera recontextualização realça a farsa que estava sendo encenada. Mas também chama a atenção o corte estratégico em “decidir o/ que/ queremos” que gera uma ambiguidade só possível de ser lida após a intervenção formal, já que o discurso afirma uma vontade, uma decisão, um querer, mas o corte sugere uma hesitação, uma espécie de gagueira, que sugere todo o intrincado conjunto de elementos em jogo na escolha pela decisão de cassar o mandato da presidenta eleita. O exercício curatorial de Frankel promove intervenções que parecem mínimas, mas cujos efeitos são perturbadores porque revelam toda uma dimensão latente ao histrionismo do momento político.  Essa dissociação entre o dito e o não dito é feita de maneira quase silenciosa, mas produz um efeito poderoso no leitor e põe a descoberto o caráter farsesco do processo.

A apropriação (da narrativa canônica de Kafka, como o faz Vigna, ou do registro dos votos de uma sessão do Congresso Nacional, no caso de Frankel), procedimento básico da lógica curatorial, retoma os sentidos instituídos de cada um desses materiais para escavar, escrutinar novas possibilidades de indagação sobre eles, especulando sobre as opacidades que contêm.

Autoria e construção de carreira literária nas redes

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: “Fusion”, Ziqian Liu, 2020

Em meu post anterior, expus um pouco dos objetivos de minha pesquisa atual de iniciação científica. Durante os próximos 12 meses, pretendo analisar a relação entre a construção de uma trajetória autoral e a participação dos escritores nas redes sociais. Selfies, postagens de divulgação das obras ou participações em eventos, compartilhamentos de comentários de leitores e alguns detalhes do próprio processo de escrita criativa: essas são algumas das muitas facetas que podemos encontrar nos perfis de muitos e diferentes autores presentes nas redes sociais hoje.

Natália Timerman é a autora que passei a ler e a acompanhar virtualmente. Conheci a autora a partir da leitura de Copo Vazio, que é também  seu primeiro romance publicado por uma grande editora, a Todavia, em 2021. Atualmente, Timerman anunciou que está preparando a escrita de um novo livro com alguns elementos autobiográficos que se misturam ao ficcional. Em uma selfie postada na sua conta pessoal do Instagram, no dia 24 de setembro de 2022, a escritora Natália Timerman posa para câmera com olhar aparentemente sonolento e como legenda podemos ler o seguinte texto: “Eu entendi, tomando esse sol, na pausa da escrita do meu livro, que só vou conseguir dormir depois que terminá-lo, só vou conseguir acordar depois das 05:30 da manhã de novo depois que tiver colocado o ponto final. Só então deixarei de abrir os olhos de repente, pro escuro ainda, inquieta, com o livro inteiro na cabeça e no corpo”.

A reflexão sobre a rotina da escrita associada à foto da própria autora é um indício de como a busca por um certo equilíbrio entre a exposição da intimidade e a construção de um universo ficcional é uma preocupação que funciona não apenas como mote da produção literária, mas também da performance pública dos autores. Em sua coluna semanal para o site Uol, Timerman escreveu: “Por que postar? Por que refletir dessa forma, em público, com textos escritos no Instagram e não nas páginas do meu diário? Porque mostrar o rosto dos que amamos a quem não conhecemos, ou a quem conhecemos de longe, essas pessoas, os seguidores, que não partilham do nosso cotidiano? (…) Em que momento a declaração pública em um post virou uma espécie de medida de afeto, de garantia de apreço, de asseguramento de existência?”.

Ainda em outro texto, na mesma coluna semanal citada anteriormente, dessa vez sobre a ambiguidade entre o silêncio e a agitação inerentes ao ofício do escritor contemporâneo, Timerman diz: “(…) Para escrever –e também para ler– eu necessito não só de tempo, mas principalmente de silêncio. E por mais que eu goste do burburinho literário, de participar de debates, festas, lançamentos e conversas, literatura é quase sempre silêncio. Mas como é difícil dizer não”.

O silêncio e a quietude indicados como imperativo para a escrita parecem, no entanto, incompatíveis com o burburinho do movimento on-line. A interação, quase em tempo real com os leitores, facilita a comunicação e cria um fluxo próprio de informações e atuações, típico das dinâmicas interativas das redes. Na foto, postada em 7 de fevereiro de 2022, Timerman posa ao lado do companheiro e na legenda anuncia: “Outro dia fui procurar um texto meu na internet e, ao digitar meu nome, apareceu como uma das opções de busca do Google ‘Natália Timerman Marido’. É esse aqui, gente, o @eder_camargo, que vai ficar bravo comigo por fazer essa postagem, com quem amo dividir a vida, e quem me faz tomar as melhores decisões há exatos 6 anos”.

A observação dos movimentos no campo literário hoje sugere que a presença dos autores na internet funciona como uma forma de circulação importante para o nome do autor (em especial, para aquele que está se apresentando ao campo, publicando suas primeiras obras). Essa presença também sugere outros aspectos a serem observados: o modo como se dá essa auto-exposição, o modo como as redes funcionam como escritórios de promoção e autogerenciamento da própria imagem e da obra que vai sendo construída. Para minha pesquisa, observar esses movimentos significa interrogar como se constrói um autor hoje.