“um arquivo do exorbitante. Um livro dos sonhos pela existência diversa”

Lílian Miranda

Créditos da imagem: Retrato de Billie Holiday e Mister, Nova York, c. fev. 1947. William P Gottlieb Collection, Library of Congress Music Division

Para compreender melhor o conceito de fabulação crítica, recentemente iniciei a leitura do livro Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais, de Saidiya Hartman. A autora inicia com “Uma nota sobre o método” e comenta sobre a escolha por narrar histórias íntimas ou que nunca foram pensadas fora de um imaginário escravocrata.

Hartman recria vozes e deseja dar vida com riqueza de detalhes a personagens reais que tiveram suas histórias reduzidas e cristalizadas em “registros de cobradores de aluguel; pesquisas e monografias de sociólogos; transcrições de julgamentos; fotografias do gueto; relatórios da delegacia de costumes, assistentes sociais e oficiais de condicional[…]”. Nesses documentos as personagens tinham suas existências marcadas pela imposição da subalternidade e eram vistas como problemas para a sociedade norte-americana de sua época.

As personagens listadas por Hartman ainda nas primeiras páginas ganham uma breve descrição ao lado do nome. Personalidades como Ida B. Wells, Billie Holiday e W. E. B. Du Bois entram na narrativa assim como Mamie Sharp – “uma beldade de dezenove anos que aluga um apartamento de três cômodos em um cortiço na Saint Mary Street, Filadélfia” – e muitas outras figuras anônimas aparecem nos arquivos com os quais Hartman entra em contato:

Quem se dedica a historicizar a multidão, as pessoas despossuídas, subalternas e escravizadas, se vê tendo de enfrentar o poder e a autoridade dos arquivos e os limites que eles estabelecem com relação àquilo que pode ser conhecido, à perspectiva de quem importa e a quem possui a gravidade e a autoridade de agente histórico.

Dentre as principais obras estudadas para a escrita da minha dissertação Vidas rebeldes, belos experimentos tem sido até o momento a que melhor delineia o processo de curadoria de arquivos para construção de narrativas que apostam nesse lugar de ficção e não-ficção ao mesmo tempo. A fabulação crítica pode ser lida como esse modo de contar a história partindo de um olhar humano e atento que dá possibilidade de existências plurais para figuras homogeneizadas pelo registro histórico.

Ainda que o livro apresente uma forma inespecífica e não seja fácil encaixá-lo em um gênero exato (no site da Amazon.com aparece nas categorias “Literatura Comparada”, “Ensaios (livros)” e “Estados Unidos em história”), em vista da divisão de capítulos, do uso das imagens e da mescla de linguagem poética e teórica, Vidas rebeldes vai construir narrativas de vida a partir de rastros que tornam coletivas as experiências. É por isso que chama ainda mais a atenção a existência de um personagem chamado “o coro” e que é definido como sendo “Todas as jovens sem nome da cidade tentando encontrar uma forma de viver e em busca da beleza”.

Ao final, ao longo de mais de 60 páginas, constam notas, referências e um índice remissivo das inúmeras imagens e da grande quantidade de dados mencionados ao longo do livro, que se constitui como um trabalho de pesquisa admirável e fundamental para (re)pensarmos relações entre a História e o documento.

HIV/aids: os desafios na abordagem da epidemia hoje

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Pepe Espaliú (1955–1993), 1992, Carrying (performance)

O ano de 2023 marca as quatro décadas da confirmação oficial do primeiro caso de HIV/aids no Brasil. Em 2023, a novela “Pela noite”, que faz parte do livro Triângulo das águas, escrito por Caio Fernando Abreu, também faz quarenta anos da sua publicação. Se em 1983 a crise da aids ainda se configurava como um medo mais ou menos distante, como indicado pelos personagens do texto ficcional do autor gaúcho, de lá para cá o que se viu foi a agudização da crise de saúde pública, muitas mortes, a associação de grupos sociais marginalizados ao vírus e à doença, entre outros tantos desdobramentos. Mas também acompanhamos a consolidação de formas mais eficazes de tratamento, a ampliação das formas de proteção, além da camisinha, e de controle da infecção, a descoberta de que o vírus pode ficar indetectável e, portanto, o portador não mais o transmite. O que parece ter mudado muito pouco, porém, é o estigma que acompanha os sujeitos positivos.

Vários desafios se colocam em relação ao manejo do HIV e da aids. Do ponto de vista biomédico, talvez a cura (o que significaria a erradicação do vírus do organismo infectado) seja o principal objetivo, ainda que não o único, a ser buscado. Já no campo social, o caráter educativo em relação à doença e ao vírus deve ampliar a circulação de informações seguras sobre as formas de prevenção e tratamento e se concentrar em desfazer o estigma associado aos sujeitos positivos, quase sempre homens, segundo o imaginário social.

A produção literária também enfrenta desafios. O maior deles talvez esteja relacionado à construção de imagens sobre o vírus e a doença ainda amparadas no contexto de emergência da epidemia, ou seja, nos primeiros anos da década de 1980. Assim, ainda é comum a representação que aproxima HIV/aids e morte, relacionando também doença e vírus a grupos sociais já marginalizados, principalmente àqueles que fazem parte da comunidade LGBTQIAPN+. Os sujeitos heterossexuais, sobretudo os homens, ao contrário do que mostram as estatísticas, não aparecem representados na condição de doentes ou portadores do vírus, no entanto, segundo o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, entre os anos de 1994 e 1998, eles lideraram com folga os números de novas infecções.

Considerando ainda informações divulgadas em 2022 no relatório da UNAIDS, um programa conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS, as mulheres correspondem a 53% das pessoas vivendo com HIV. No entanto, a presença de personagens mulheres que têm a doença ou o vírus em narrativas e outras criações estéticas contemporâneas ainda é muito inferior ao número de sujeitos inseridos na homocultura, que aparecem doentes ou infectados em romances e contos.

Por fim, mesmo nas narrativas produzidas por homens gays ou outros grupos dentro da comunidade LGBTQIANP+, os impactos psicossociais e as imagens oriundas quando da emergência da epidemia (morte, sofrimento, medo da transmissão e/ou da infecção) ainda são muito presentes e permanecem como o modelo de representação para a quase totalidade dos personagens. A representação reincidente em muitos textos literários de que a infecção por HIV é um destino inescapável dos sujeitos homossexuais não se coaduna com o avanço científico na área, nem parece levar em conta as diferentes maneiras de prevenção que vão da camisinha à PEP. O que pode ser visto como uma prova de que há muitas questões ainda a serem superadas.

Há muitos recortes no país da literatura

João Daniel Oliveira1

Créditos da imagem: Vista de Delft, de Veermer

Como se sabe, quando ingressamos na pós-graduação, apresentamos um anteprojeto que dificilmente segue incólume ao longo do percurso. Trata-se de um recorte de interesses para o pesquisador, o qual, esponjoso e camaleônico, mostra-se apto a abrir mão de alguns caminhos e se enveredar por outros após entrar em contato com colegas de temas distintos, com sucessivas reuniões de grupos de pesquisa ou de orientação, com referências novas a cada disciplina. O pesquisador vai picotando suas ideias, fazendo colagens e promovendo abandonos, chegando ao ponto de realizar uma cisão quase umbilical. Isso aconteceu comigo quando fui apresentado a Argonautas, de Maggie Nelson, que, não por acaso, é em si um livro de recortes.

A autora informa, na seção de agradecimentos, que apresentou trechos do livro em diferentes formas: como parte de uma palestra, como livreto de instalação, em revistas e em antologias. Os estudiosos de literatura costumam considerar o período pós-moderno como um continuum “recortado” por excelência: fragmentado, líquido, desconstruído, rizomático etc. Há o mosaico enciclopédico de Pynchon; há, após a morte do autor, seu retorno simbiótico em distintas escritas do eu; há inventividades formais “recortadas” em jogos de amarelinhas e diários de anos ruins; há a autoteoria de Preciado e da própria Nelson. São, portanto, inúmeros recortes pós-modernos.

Mas Grande Sertão já é “recortado”. As linhas de Clarice também. A sintaxe de Carolina Maria, idem. E o fluxo de Woolf; e o Bloomsday; e as trocas de perspectiva de Enquanto agonizo; e o enjambement de Mallarmé. A verborragia de Whitman é tamanha que parece recortada. Há um recorte de verossimilhança em Madame Bovary. Paródias e pastiches não seriam recortes? Cervantes recortou os romances de cavalaria? O romance, dividido em capítulos, não é um compilado de recortes? Balzac não quis fazer um recorte da vida burguesa? A própria polissemia do termo “recorte” não é um recorte? E os ensaios de Montaigne? Recortes. O gênero ensaio já não seria um gênero recortado por excelência? Aforismos? Recortes. As mil e uma noites? Recortes de várias histórias. Homero? Um cara que recortou uma saga em dois grandes grupos, os quais, por sua vez, foram desmembrados em diversos… recortes. Pode-se dizer, assim, que não é possível haver literatura sem recortes? Que a literatura é recorte? Que a mímesis, enquanto recorte da realidade, não consegue capturar sua essência, como acusa Platão, e, portanto, já nasceu fragmentária? Que Argonautas não seria, portanto, um parente distante, mas consideravelmente próximo da Ilíada e da Odisseia? Que os argonautas são, inclusive, figuras da mitologia grega, o que atesta a flagrante contiguidade de um livro de 2015 com uma tragédia euridipiana de mais de 400 anos antes de Cristo?

Mas há uma singularidade neste Argonautas que não me parece discernível nas demais obras citadas. Há uma aparente falta de planejamento que torna este livro, na minha opinião, bastante orgânico. O seu grupamento de temas abordados – teoria queer, casamento, maternidade, literatura, machismo, teoria, crianças, política, economia, ficção, sexualidade, dentre outros – não jorra e nem vem a conta-gotas. Não é coerente nem incoerente. Não segue uma linha e nem é confuso (nem linear, nem circular). Simplesmente é. A sua classificação sistemática é uma missão impossível. A sua ficha catalográfica, que não utiliza “ficção” ou “romance”, também não põe “literatura”. Os índices são “família”, “estudos de gênero”, “teoria queer” e “memórias”. Dentro da ficha em si, a listagem de assuntos é: “1. famílias”, “2. identidade de gênero”, “3. minorias sexuais – famílias” (de novo), “4. Nelson, Maggie, 1973 – Família” (de novo!) e “5. Teoria Queer”. Ao mesmo tempo, sabemos intimamente e intuitivamente que estamos diante de um texto literário. Como isso é possível? Qual é o truque?

Acho que ainda não li algum livro tão “recortado” quanto este. Em todas as páginas. Até mesmo na mancha gráfica. Até mesmo na ficha catalográfica. Até mesmo na capa da edição brasileira, na qual há, precisamente, um corte que simboliza – spoiler alert – um recorte de identidade de gênero.

1 João Daniel Oliveira é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA. É mestre e especialista em Estudos Literários pela UEFS, instituição na qual também se graduou em Letras Vernáculas. É professor do ensino básico, escritor e membro do Conselho Municipal de Cultura de Feira de Santana, representando a cadeira de literatura.

TRAJETOS DE UMA PESQUISADORA EM FORMAÇÃO: a complexidade da escrita de si em Annie Ernaux e Saidiya Hartman

Joázila Santos

Créditos da imagem: imagem retirada do pai de Annie Ernaux, em Yvetot, usada como capa da obra
O lugar (2021) – arquivo pessoal da autora.

Em minha trajetória acadêmica, as mulheres escritoras sempre foram alvo e guia. Na graduação, Virginia Woolf; no mestrado, Sylvia Plath; no doutorado, Annie Ernaux. No entanto, o que constantemente rodeava qualquer fase da pesquisa de graduação e mestrado eram as complexidades biográficas percebidas nos textos lidos. Foi assim que a autora francesa, Annie Ernaux, entrou em minha vida acadêmica, a partir da leitura de Os Anos (2022): apagando a linha que separa escrita literária e vida pessoal, incluindo as complexidades sociais trabalhadas pela memória.

“Não existe um ponto de interseção entre o que acontece no mundo e o que acontece com ela, são duas retas paralelas, uma é abstrata, toda feita de informações que chegam mas são logo esquecidas, e a outra é fixa.”, diz Ernaux, ao refletir sobre si em terceira pessoa e, simultaneamente, sobre seu pai e a França pós-guerra. Quando li esse trecho, em janeiro de 2022, enquanto produzia ainda minha dissertação, um novo horizonte se abriu e o interesse pela escrita de si se aprofundou ainda mais, o que acarretou a construção de projeto para a seleção de doutorado com a ousada escolha de usar o termo “autoficção” para a produção literária de Ernaux.

Porém, ao ler a própria autora negar que sua escrita seja ficcionalizada, mais uma gaveta se abriu na minha estante de horizontes da vida acadêmica. O interessante desse processo é que isso aconteceu pela discordância que tive com a autora e diversas questões surgiram: será que eu tenho cacife para discordar de Ernaux? Será que isso é ser pesquisadora? Será que eu ainda a vejo como autoficção? O que ela entende por ficção? Será que para ela é um mero recurso de invenção?

Essas questões ainda permanecem.

Contudo, em uma das disciplinas do doutorado, conheci a escritora Saidiya Hartman, cujo manejo desse limite entre ficção ou não – ironicamente em um texto considerado não ficção- se dá pela busca para atrelar a memória coletiva à memória individual.

O texto a que me refiro é Perder a mãe – uma jornada pela rota atlântica da escravidão, cujo prólogo expõe o projeto pessoal e profissional da autora, que visa a recuperar por meio de uma viagem à Africa a rota da escravidão que inclui seu passado e o de sua família por meio do que a autora costuma nomear como não-ficção especulativa.

Créditos da imagem: imagem retirada do livro Perder a mãe – uma jornada pela rota atlântica da escravidão (2021)

Na foto, que aparece em meio ao texto, temos a imagem de duas senhoras. Não há legenda. Comentando a absoluta ausência nos arquivos que visitou de qualquer registro de sua tataravó, a foto é um enigma porque desdiz o texto e se expande na direção de uma memória coletiva roubada pela escravidão e pelo colonialismo, apontando para o destino de tantos outros sujeitos apagados e esquecidos pela história.

E por que faço aqui a conexão de Ernaux com Hartman?

Não apenas porque nas obras da escritora francesa há um intenso diálogo (sempre ambíguo) entre fotos e texto, mas também porque, recuperando a história familiar, como a de seu pai, em Os anos, Ernaux está recuperando uma parte da história dos homens operários e microempreendedores da França do século XX. O que significa também uma maneira de falar de si falando de outros.

Talvez, então, a nomenclatura “não-ficção especulativa” (ainda mais pertinente que a autoficção?), possa ser útil para pensar esse deslocamento e a incidência da primeira pessoa em muitos textos do presente.

Continuemos o trajeto.

Escrever é dispor fragmentos, oscilar entre a ordem e a desordem

Allana Emilia

Créditos da imagem: frame de As praias de Agnès, filme de Agnès Varda (2008)

Na última releitura de As margens e o Ditado, percebi uma nova menção ao termo frantumaglia, que é muito utilizado tanto pela autora quanto por sua fortuna crítica. Ferrante comenta como o termo a assombrava toda vez que a mãe o utilizava para falar de si mesma, e como a associação dele com desordem causava a ela um imenso terror e mal-estar. Segundo Ferrante, por causa desse assombro, ela tenta transformar histórias em narrativas limpas, ordenadas, harmônicas, mas confessa que o que a leva a publicar é “uma energia que quer atrapalhar, desordenar, desiludir, errar, falir, sujar”.

Em frantumaglia ao comentar um trecho de O Inominável de Beckett, a autora afirma que a forma é a única coisa imprescindível na literatura, pois, para ela, a forma pressupõe limites seguros, tranquilidade frente a uma insegurança que se manifesta no eu que escreve. No entanto, ao comentar sua própria escrita, afirma associar-se “à tendência de usar estruturas tradicionalmente robustas, trabalhando-as com cuidado, enquanto esperava, paciente, começar a escrever com a verdade de que sou capaz, desequilibrando e deformando, abrindo espaço para mim mesma com todo o corpo”.

Victor Xavier Zarour Zarzar, um estudioso da obra da autora italiana, toma o romance de Dickens, Grandes esperanças, como um modelo de romance de formação e a compara com a maneira como Ferrante rompe com o gênero ao “desestabilizar as estruturas narrativas do romance de formação”. Essa é uma chave de leitura utilizada por boa parte da fortuna crítica sobre a produção da italiana que costuma referir-se aos livros da tetralogia da autora como romances de (de)formação.

Quando Ferrante afirma deformar as estruturas e abrir espaço para si, podemos pensar que ela também pode se referir ao processo de autocrítica que exerce sobre sua obra ficcional, ao construir e orientar uma reflexão a partir de sua perspectiva sobre formas de ler seu próprio texto. No entanto, até que ponto essa intervenção – da autora como crítica de sua própria obra-  não constitui um fator de controle crítico que cerceia a especulação sobre seus livros é um questionamento que não pode ser perdido de vista.

Her name was Madeleine

Lílian Miranda

A imagem acima compõe um tweet original da página Musée d’Orsay (@MuseeOrsay) em 2019 na rede social X, antigo Twitter. A legenda diz: “Elle sera l’une des grandes icônes de notre prochaine exposition: le “Portrait d’une femme noire”, peint par Marie-Guillemine Benoist en 1800 ( @MuseeLouvre) vient d’être installé dans les salles du #ModèleNoir. Ouverture le 26 mars >http://bit.ly/ExpoModeleNoir.” Alguém (@Selam_S), quatro anos depois da postagem original, comenta: Her name was Madeleine, woman from Guadeloupe.

 Em Uma africana no Louvre, livro resultado da adaptação de duas conferências realizadas por Anne Lafont, historiadora e crítica de arte, a autora propõe uma “nova topografia da arte iluminista”. Comentando o quadro Portrait d’une femme noir de origem francesa que retrata uma jovem negra do século XVIII, Lafont chama a atenção para aspectos da obra que não costumavam ser tematizados na história da arte e empreende uma reflexão que sugere uma mobilidade, um deslocamento do foco de análise das investigações sobre autoria e recepção do quadro na direção de especulações sobre a modelo retratada e sua história. Esse exercício de recalibragem do olhar sugere também  “uma nova exploração dos arquivos relacionados à fatura” do quadro, uma mudança de perspectiva em relação às histórias que podem ser contadas.

Para Lafont, o quadro é interessante por “suscitar uma abordagem nova,[…] soma-se ao projeto de uma história da arte renovada pelas questões da mundialidade (conceito postulado por Edouard Glissant), bem como de uma história da África diaspórica na época do tráfico atlântico”. Para a historiografia da arte tradicional, o seio desnudo de Madeleine apontou, primeiramente,  uma pista erótica,  mas ao comentar acerca das Signares (senhoras) – mulheres negras mestiças senegalesas com condições financeiras abundantes, representadas em pinturas do século XIX, normalmente muito bem vestidas -, Lafont pontua que o amontoado de tecidos seriam um indicativo de status social,  enquanto os seios à mostra, ao contrário, revelam a função de escravizada. Ambas as representações deixam ver aspectos historiográficos de uma época e as diferenças que não são pontuadas comumente por termos acesso a uma história homogeneizada que encara negros africanos de forma única.

Embora a autora faça esse exercício no campo das artes plásticas, é possível pensar um deslocamento semelhante no modo de a literatura contemporânea lidar com as histórias que não foram contadas.

Na última segunda-feira, dia 06 de novembro, o Museu Nacional da Cultura Afro-brasileira (Muncab) em Salvador reabriu suas portas com a exposição “Um defeito de cor”, que contou com a curadoria de Ana Maria Gonçalves e se baseia na trajetória de vida de Kehinde ou Luisa Mahin, a personagem principal do romance. Em consonância com as comemorações do novembro negro e numa cidade cujo slogan a identifica como uma capital afro, a exposição valoriza projetos de artistas negros e a cultura afro-brasileira, espalhando pelo espaço do museu trechos do livro que são associados a trabalhos que versam sobre a ancestralidade e a religiosidade afro-brasileiras. Em uma das salas, uma linha do tempo conta resumidamente datas e eventos que compuseram uma sequência de revoltas ocorridas em território baiano e que estão embrenhados à vida de Kehinde na narrativa de Gonçalves.

A história de Kehinde em forma de exposição chegou ao museu acompanhada de uma roda de conversa com a autora do livro. Gonçalves afirmou que não importa que não haja documentos que comprovem a existência histórica de Luisa Mahin, pois Kehinde ganha vida na ficção e direito a compor também, por meio da literatura, parte da História que nos foi negada, assim como o retrato da jovem no Louvre, que se reinscreve no quadro: Madeleine, de Guadalupe.

Formas narrativas de uma vida anônima e impessoal

Samara Lima

Créditos da imagem: Doctor Heisenberg’s Magic Mirror of Uncertainty, Duane Michal, 1998

Em La vida impropria: anonimato y singularidad (2022), a professora e crítica literária Florencia Garramuño analisa diversas produções de artistas plásticos, escritores e cineastas latino-americanos, como Rosângela Rennó, Edgardo Dobry e Veronica Stigger, a fim de comentar sobre algumas práticas estéticas contemporâneas que parecem abandonar a preocupação com a individualidade e a identidade para explorar formas do impessoal e do anonimato.

Segundo a autora, é possível perceber nas produções atuais um drástico esvaziamento das categorias de indivíduo e subjetividade, pois as vozes, os personagens e narradores expressos nessas obras aparecem muitas vezes como meras testemunhas de um acontecimento, buscando abster-se de toda interioridade e propriedade em função da valorização de situações exteriores, das relações afetivas e da cartografia de espaços e coisas.

O fato é que tais práticas não estão interessadas em uma construção de uma personalidade, em relatar a vida de um sujeito ou de um grupo social em específico, mas, sim, desenhar formas de vidas que transcendam as singularidades de cada um para abarcar o que elas têm em comum com os outros. É importante pontuar que as produções que buscam apostar na impessoalidade não estão completamente privadas do “eu”, pois, como a própria Garramuño argumenta, o impessoal não é o contrário do pessoal. Aí, o que parece estar em jogo é a tentativa de fazer das experiências mais íntimas uma possibilidade de experiência de qualquer pessoa.

Durante a leitura do livro tenho vagado pela minha estante à procura de narrativas literárias que incorporam as dinâmicas da impessoalidade como mecanismo de construção de um olhar sobre a macrohistória. Ou seja, que pensam as relações cotidianas e os eventos do mundo para além da perspectiva da vivência individual.

A primeira obra que me ocorreu foi Os anos (2021), que é apresentada ao leitor como uma autobiografia impessoal de Annie Ernaux, a qual narra a trajetória da autora desde 1940, o ano de seu nascimento, até meados da década de 2000. O livro é baseado numa coleção de fotografias da escritora em diferentes momentos de sua vida. Memórias pessoais, referências culturais e tendências sociais, situações ordinárias e história política, unindo a perspectiva de um indivíduo (Ernaux), de uma geração (aqueles que cresceram após a Segunda Guerra Mundial) e de uma nação (França).

Quanto à forma, um dos aspectos do “coletivo” fica evidenciado no traço mais marcante dessa espécie de autobiografia: Ernaux nunca usa a primeira pessoa do singular, pois constrói o relato a partir do “nós”, ou ocasionalmente, do “um” e “ela”. Essa escolha estilística reflete, por exemplo, a descrição da narradora sobre a maneira como os seus familiares contavam histórias da Segunda Guerra Mundial: as histórias eram contadas com o uso do “nós”, dos pronomes indefinidos e construções impessoais, como se todos fossem igualmente afetados pelos acontecimentos.

Em diversos momentos Florencia Garramuño afirma que uma das potências das formas anônimas é imaginar um certo viver-junto (resgatando Barthes), principalmente no contexto atual de crescimento de ideologias fascistas que destroem toda forma de coexistência. Neste sentido, penso que uma das forças do livro de Annie Ernaux é justamente a luta contra os convites ao individualismo consumista gerado por constantes apelos à singularização e a tentativa de reabilitar o interesse e o valor do comum, dado aqui como uma história que, ao fazer do seu corpo de mulher um lugar de encontro com tantas outras vidas pode, sim, ser compartilhável.

A autoficção como resistência ao individualismo exacerbado

Marília Costa

Créditos da imagem: “Autel de Lycée Chases”, de Christian Boltanski, 1986–87

Sergio Blanco é dramaturgo e diretor franco-uruguaio, conhecido internacionalmente com obras traduzidas para o português, catalão, inglês, francês, alemão, turco, japonês, árabe e norueguês. Tem o trabalho como dramaturgo reconhecido por diversos prêmios como os prêmios Dramaturgia de la Intendencia de Montevideo; Nacional de Dramaturgia del Uruguay;  Florencio al Mejor Dramaturgo.

Sergio Blanco dedicou-se a praticar a autoficção em sua obra dramática e também escreveu o ensaio Autoficción, Una ingeniería del yo (2018) em que teoriza sobre a autoficção no teatro criando uma nova definição centrada no que ele mesmo denomina “pacto de mentira e pacto de verdade” para reelaborar a sua maneira o pacto autobiográfico de Philppe Lejeune. Além disso, também elabora os 10 mandamentos para a autoficção, que seriam algumas operações indispensáveis à autoficção que serviriam como fio condutor para a criação dos espetáculos autoficcionais.

Muitos críticos da autoficção a condenam pelo viés narcisista e pela exposição que o dispositivo teórico, muitas vezes, parece mobilizar. No entanto, na visão de Sergio Blanco, a autoficção funciona a partir de um exercício de alteridade. Assim, a autoficção toma como ponto de partida o “eu” com o objetivo de encontrar o “outro”, autoficção não como autoexposição, mas como uma busca de si mesmo e através do entendimento de si buscar o entendimento da condição humana.

Na contramão da cultura do eu tem-se no século XXI a constante ameaça de negação da subjetividade impulsionada pelas grandes economias e mercados que visam acabar com toda forma de expressão individual no mundo do trabalho, o que torna a sociedade adequada para a implementação do autoritarismo político e do fundamentalismo religioso. Para Blanco, a autoficção é a alternativa artística para resistir a essa tentativa enfática de apagamento da subjetividade.

En este comienzo del siglo XXI, la autoficción vuelve a activarse como una forma de resistir a este individualismo totalizador que termina formateando comportamientos y conductas aberrantes, para volver así a relatos autoficcionales que aspiren  a una palabra singular, libre, autónoma e independiente. Una palabra ajena a los mercados, los misiles y las modas. Una palabra que se busca y que busca. Una palabra que se abre a los espacios interiores de retrospección y reflexión. Una palabra que duda. Que tiembla. Que piensa. Una palabra que sobre todo que se piensa.

O pensamento de Sergio Blanco é interessante porque muitos críticos da autoficção a associam ao individualismo exacerbado e o dramaturgo franco-uruguaio a enxerga como uma forma de resistência ao individualismo exacerbado. Desse modo, coloca no centro da discussão a importância de dizer eu no século XXI, colocando em xeque o traço inconstante e subjetivo da existência individual, a fim de possibilitar a compreensão de que o eu nunca é apenas aquele que o enuncia, mas sim um outro: “La autoficción se inscribe así en un proyecto político de edificación de un yo emancipado que busca desesperadamente a los demás”.

Conflitos difusos em Philip Roth

João Daniel Oliveira[1]

Créditos da imagem: Gespenst eines Genies, Paul Klee

            Quando saiu no ano passado, pela Companhia das Letras, o livro Por que escrever? Conversas e ensaios sobre literatura 1960-2013, de Philip Roth (falecido em 2018), considerei-me afortunado. Eu ingressara no Programa de Literatura e Cultura da UFBA um ano antes, para iniciar meu Doutorado, e me questionava, como ainda hoje me questiono, se o meu projeto não seria lá muito audacioso. Insinuei – no anteprojeto – e continuo insinuando – em artigos de disciplinas, em conversas e reuniões de orientação – que Roth sustentou uma espécie de projeto literário difuso e em conflito com ele mesmo. Devo dizer que o meu projeto para escrever a tese também me parece difuso, em geral; e eu também me flagro, vez ou outra, em conflito comigo mesmo quanto a essa questão. Por isso, vislumbrei em Por que escrever? a possibilidade de pescar informações fornecidas pelo próprio Roth que pudessem validar a ideia.

            Um dos seus ensaios mais famosos, que naturalmente consta na coletânea, fornece uma pista: em Escrevendo ficção nos Estados Unidos, Roth sugere que a vida real estaria tão insana que já teria superado a capacidade imaginativa da ficção, pondo os escritores em uma sinuca de bico. Essa foi uma reflexão feita em 1960. Até então, Roth havia publicado um único livro (Adeus, Columbus). Era como se ele estivesse dando permissão a si mesmo para chutar o balde literário, uma vez que a sociedade americana, tresloucada, estaria apta para lidar com isso. A reação hostil da comunidade judaica tradicional ante os contos de seu primeiro livro nada mais seria que uma manifestação de nicho. Mas, como se sabe, algumas coisas acabaram saindo do eixo.

            Com O complexo de Portnoy (1969)– um romance potente, erótico, polêmico –, Roth sentiu na pele a reação do país que, afinal de contas, fez Hawthorne escrever A letra escarlate. Penso que o ressentimento de Roth com o puritanismo americano (e, em certa medida, com a questão judaica), que já se encontrava demarcado em Adeus, Columbus, passou a polvilhar com ainda mais intensidade toda a sua obra subsequente, não apenas no conteúdo, mas também na forma. Esse ressentimento – o alicerce do seu suposto projeto difuso – parece estar presente, também, nos textos de Por que escrever? Praticamente todas as entrevistas que constam no livro tocam no assunto Portnoy; há uma específica sobre este livro, na qual seu autor está particularmente passivo-agressivo. Há conversas com outros escritores; há palestras; há ensaios bastante inusitados (em um deles, Roth imagina um Franz Kafka imigrante, morando nos EUA, em contato com sua família); e a sombra do ressentimento parece alcançá-los todos.

            Talvez Roth tivesse ojeriza às pretensões taxonômicas do seu trabalho, e eu também não gostaria de ficar à mercê da possibilidade de ter que empreender leituras e análises de todas as suas obras para poder escrever a tese. Mas devo confessar que, quando cheguei na leitura do texto Suco ou molho?, mais de 400 páginas depois, fui tomado de súbita emoção. Nessa palestra de 1994, Roth nos conta que, certa feita, em 1956, numa lanchonete qualquer, encontrou perdida numa mesa uma folha de papel com 19 frases datilografadas. As frases – que ele lê na palestra – seriam nada menos que os 19 inícios dos seus 19 romances publicados até então. Fiquei perplexo. Não seria isso um indicativo robusto de que houve uma tentativa de projeto literário rothiano? Se esse papel existiu de fato, se ele mente ou não, é o que menos importa. Eis sua descrição: “Esse documento – essa brincadeira, essa dádiva, essa coisa incompreensível, seja lá o que fosse, esse nada” – palavras, devo dizer, assustadoramente atribuíveis a vários de seus livros.

Inclusive, não deixa de ser irônico – este elemento tão caro ao discurso rothiano – o fato de que essa mesma palestra acabou sendo publicada como posfácio à edição comemorativa dos 25 anos de O complexo de Portnoy, a obra de cuja sombra inexorável ele tentou tantas vezes escapar (e, pelo visto, falhando), o texto cuja recepção de público e crítica, ao longo dos anos, aparentemente só fez intensificar a sua matéria-prima talvez mais frutífera: seu próprio ressentimento.  


[1] João Daniel Oliveira é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA. É mestre e especialista em Estudos Literários pela UEFS, instituição na qual também se graduou em Letras Vernáculas. É professor do ensino básico, escritor e membro do Conselho Municipal de Cultura de Feira de Santana, representando a cadeira de literatura.

Desafios de uma iniciação científica

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: Me: in the frame – Timm Ulrichs, 1993-98

No mês de setembro deste ano, concluí minha pesquisa de iniciação científica intitulada O retorno do autor: dentro e fora do texto, cujo desenvolvimento pode ser acompanhado em várias publicações deste blog. Assim, o objetivo principal da pesquisa foi investigar a construção da identidade autoral na contemporaneidade, com foco nas plataformas digitais, analisando a interação entre o autor e seus leitores e seguidores nas redes sociais. O cerne da análise concentrou-se na dinâmica entre o dentro do texto (ou seja, a criação literária) e o fora do texto (a presença do autor na internet, nos eventos de divulgação das obras e nas entrevistas que concede). Desde então, tenho considerado a possibilidade de continuar meus estudos para aprofundar as reflexões sobre a interseção entre o campo literário, as redes sociais e a autoria contemporânea.

Uma das complexidades que enfrentei durante a pesquisa diz respeito à definição precisa do termo performance, dada sua variedade de abordagens em diversas disciplinas e contextos acadêmicos. Tornou-se crucial, portanto, delinear com mais clareza a definição de performance relevante para este estudo, especialmente no contexto da atuação da escritora Natalia Timerman no campo literário (sobre isso falo mais nesta postagem aqui). Optei por conceber a performance não apenas como um campo de estudo específico ou uma área do conhecimento, mas sim como uma atitude, representando uma desterritorialização da maneira como se expande o campo literário devido à intensa participação pública do autor em eventos e nas redes sociais.

Considerando que o propósito central da pesquisa consistia em analisar as performances públicas dos autores contemporâneos como uma parte intrínseca do processo de criação literária, outra dificuldade encontrada ao longo da investigação estava relacionada à necessidade de dissociar os conceitos com os quais trabalhei, como poses, máscaras, performances e posturas da noção de falsidade ou de qualquer julgamento moral em relação às escolhas feitas pelos autores contemporâneos. Evitando esses julgamentos, a análise da atuação e das interações da escritora brasileira Natalia Timerman na rede social em que é mais ativa, o Instagram, poderia se tornar um instrumento também para a análise crítica de sua produção cronística e romanesca, com destaque para seu primeiro romance, Copo Vazio.

A investigação então concluiu que o uso dessas plataformas permite à autora não apenas divulgar sua obra, mas também, em certos momentos, tornar-se parte integrante dela. As reflexões apontam para a influência dos elementos autobiográficos compartilhados por Timerman em seu Instagram sobre suas posturas como autora, resultando em um diálogo significativo entre a autora, seus leitores/seguidores e a produção de seus livros.

Essas considerações suscitam questões intrigantes sobre a relação entre as mídias sociais e as posturas dos autores. Talvez, o uso das redes sociais ofereça uma oportunidade para reimaginarmos a tradição literária. Quais são essas novas posturas autorais que irrompem no cenário contemporâneo? É possível que, a utilização das mídias sociais pelos autores esteja incentivando a construção de uma postura autoral que coexiste, e até mesmo precede, a própria assinatura textual? São com indagações como essas que finalizo minha pesquisa de iniciação científica e abro espaço para novas explorações em pesquisas acadêmicas futuras.