“um arquivo do exorbitante. Um livro dos sonhos pela existência diversa”

Lílian Miranda

Créditos da imagem: Retrato de Billie Holiday e Mister, Nova York, c. fev. 1947. William P Gottlieb Collection, Library of Congress Music Division

Para compreender melhor o conceito de fabulação crítica, recentemente iniciei a leitura do livro Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais, de Saidiya Hartman. A autora inicia com “Uma nota sobre o método” e comenta sobre a escolha por narrar histórias íntimas ou que nunca foram pensadas fora de um imaginário escravocrata.

Hartman recria vozes e deseja dar vida com riqueza de detalhes a personagens reais que tiveram suas histórias reduzidas e cristalizadas em “registros de cobradores de aluguel; pesquisas e monografias de sociólogos; transcrições de julgamentos; fotografias do gueto; relatórios da delegacia de costumes, assistentes sociais e oficiais de condicional[…]”. Nesses documentos as personagens tinham suas existências marcadas pela imposição da subalternidade e eram vistas como problemas para a sociedade norte-americana de sua época.

As personagens listadas por Hartman ainda nas primeiras páginas ganham uma breve descrição ao lado do nome. Personalidades como Ida B. Wells, Billie Holiday e W. E. B. Du Bois entram na narrativa assim como Mamie Sharp – “uma beldade de dezenove anos que aluga um apartamento de três cômodos em um cortiço na Saint Mary Street, Filadélfia” – e muitas outras figuras anônimas aparecem nos arquivos com os quais Hartman entra em contato:

Quem se dedica a historicizar a multidão, as pessoas despossuídas, subalternas e escravizadas, se vê tendo de enfrentar o poder e a autoridade dos arquivos e os limites que eles estabelecem com relação àquilo que pode ser conhecido, à perspectiva de quem importa e a quem possui a gravidade e a autoridade de agente histórico.

Dentre as principais obras estudadas para a escrita da minha dissertação Vidas rebeldes, belos experimentos tem sido até o momento a que melhor delineia o processo de curadoria de arquivos para construção de narrativas que apostam nesse lugar de ficção e não-ficção ao mesmo tempo. A fabulação crítica pode ser lida como esse modo de contar a história partindo de um olhar humano e atento que dá possibilidade de existências plurais para figuras homogeneizadas pelo registro histórico.

Ainda que o livro apresente uma forma inespecífica e não seja fácil encaixá-lo em um gênero exato (no site da Amazon.com aparece nas categorias “Literatura Comparada”, “Ensaios (livros)” e “Estados Unidos em história”), em vista da divisão de capítulos, do uso das imagens e da mescla de linguagem poética e teórica, Vidas rebeldes vai construir narrativas de vida a partir de rastros que tornam coletivas as experiências. É por isso que chama ainda mais a atenção a existência de um personagem chamado “o coro” e que é definido como sendo “Todas as jovens sem nome da cidade tentando encontrar uma forma de viver e em busca da beleza”.

Ao final, ao longo de mais de 60 páginas, constam notas, referências e um índice remissivo das inúmeras imagens e da grande quantidade de dados mencionados ao longo do livro, que se constitui como um trabalho de pesquisa admirável e fundamental para (re)pensarmos relações entre a História e o documento.

Deixe um comentário