Por Fernanda Vasconcelos
Masculinidade, masturbação, mulheres são alguns dos assuntos que o autor norueguês Karl Ove Knausgård comentou na mesa da Feira de Literatura Internacional de Paraty neste ano. Um dos grandes destaques da feira, o autor da série Minha Luta, movimentou o campo literário brasileiro causando burburinho nos bastidores e frenesi em sua recepção. Cercado por câmeras, críticos e leitores-fãs, o autor “astro” mostrou ter presença de palco ao performar com sobriedade, jogo de cintura e domínio literário a discussão sobre sua vida e trabalho como escritor. E os fãs-leitores, que parecem aguardar seus livros como se espera o uso da próxima dose de droga (como comentou o mediador da conversa), aguardaram o autor com a mesma fissura.
O autor, que parece sair do livro e tornar-se palpável “em carne e osso” no palco (ao procurar manter o tom ensaístico e também discutir temas encontrados nos livros), provou que seu fôlego ultrapassa as mais de 3000 páginas escritas que compõem os seis livros da série autobiográfica Minha Luta: “Karl Ove Knausgård, fez o que dele se esperava nesta sexta-feira quando surgiu como superstar no palco: mostrou demais, ainda que em termos literários, e não literais”, comentou um resenhista.
Sobre sua relação com o palco, Knausgård foi questionado pelo mediador da conversa na Flip, Gúrria-Quintana: “você disse que era mais fácil falar sobre essas coisas [trivialidades da vida íntima do autor que aparecem no quarto livro] no palco. Você fala do seu livro, como se eu e você estivéssemos tomando um chopp” E Karl Ove respondeu: “Eu acho que a situação é como escrever, a única coisa é que não é tão criativo assim, mas você tem que ser totalmente livre, dizer o que quiser, besteiras e permitir isso também. Conseguir dizer algo substancial também, mas eu não sei, vergonha é um tema dos meus romances desde o início”.
Knausgård mostrou que sabe seduzir o público com comentários reveladores sobre sua vida íntima transformada em literatura (ou seria o contrário?), seu processo de criação e as consequências da publicação de uma escrita que revela muito de si e também dos outros já que o autor teve de enfrentar as reações da esposa, familiares e amigos que aparecem nos livros, chegando a ser processado. A presença do autor também foi utilizada para divulgar a publicação no Brasil do quarto livro da série Uma temporada no escuro pela Companhia das Letras. Retratando sua adolescência, Karl Ove evoca os pormenores e banalidades dessa fase da vida como se realizasse um sobrevoo sobre o passado. Em longos trechos, a dicção parece reelaborar o vivido e aprofunda-se em reflexões instigantes que fazem do eu um outro.
Talvez essa seja uma das razões, associada às revelações polêmicas e à sua atuação pública, que justifique a superlativa recepção a seu nome de autor no mundo literário contemporâneo.
O áudio da mesa que teve a participação do autor na Feira de Literatura Internacional de Paraty encontra-se no canal da FLIP no Youtube.
Fernanda, ótima discussão. Acredito que o autor Karl Ove Knausgård, enquanto profissional da escrita, sabe fazer a sua devida projeção. A atuação do autor em eventos como a Flip, a sua performance, o diálogo com os leitores, possibilita ao escritor a criação da sua própria presença dentro do campo literário.
“[Karl Ove] mostrou demais, ainda que em termos literários, e não literais”
“O autor, que parece sair do livro e tornar-se palpável “em carne e osso” no palco ”
Fernanda, esses trechos exemplificam bem o que mais chamou a minha atenção em seu texto. Que é essa tendência de se encarar a participação do autor norueguês na Flip como uma extensão ou um complemento da sua literatura. É claro que, de um modo geral, esta tendência é intrínseca a eventos desse gênero, que têm como carro chefe a exposição midiática da figura do autor. Porém, no caso de Karl Ove isso é potencializado pelo fato de seus livros se basearem na exposição íntima de sua vida pessoal. Me parece que isso confirma a hipótese de que a novidade da autoficção, dentro da literatura, estritamente falando, tem haver com as mudanças no campo literário, onde se percebe a tendência de supervalorizar a figura do autor, com festas, oficinas, entrevistas, ensaios fotográficos, documentários etc. É como se a mudança numa coisa (a literatura) e noutra (o campo literário) obedecessem à mesma lógica cultural: a mudança da forma como lidamos com nossa subjetividade. O que você acha disso?
Depois que postei o comentário acima que eu me atentei pro trecho em que falo da “literatura, estritamente falando”. É curioso fazer essa delimitação do lugar estrito da literatura quando falo de uma lógica onde a própria noção de literatura (estritamente falando rs) parece perder ou ter abalado o seu significado estrito, pois a autoficção parece se projetar sempre para fora de si mesma, numa movimento constante, porém nunca completamente realizado. Como se ela estive dentro e fora da literatura, para usar o título do último post de Luciene Azevedo.
É interessante pensar como a recepção mais ranzinza costuma rejeitar qualquer qualidade ao texto de Knausgaard lendo-o somente pelas lentes do espetáculo. Embora só isso já fosse indício suficiente para pensar a rejeição de certa recepção crítica à emergência do biográfico atrelado ao ficcional hoje e a incidência da presença do autor rivalizando com sua obra, encenando um verdadeiro “show do eu” (a expressão é de Paula Sibilia), o mais rentável talvez fosse pensar a possibilidade de as formas (de autoria, do próprio romance) estarem se modificando, como Davi comentou.
David, obrigada pela discussão. Achei pertinente seu apontamento sobre a autoficção, estratégia que se utiliza do jogo da imagem do autor em um “instável movimento” entre a ficção e o biográfico, e concordo que ela pode se relacionar com o modo como o autor utiliza o espaço midiático. Acho ainda que o termo se relaciona com outros gêneros envolvidos com o relato feito em primeira pessoa no “espaço biográfico contemporâneo”, lembrando os estudos de Leonor Arfuch, oferecendo um espaço potente para jogos ilusionistas, questionando a nossa própria percepção do que entendemos por arte e vida. A obra do Karl Ove, incluindo a sua relação com as mídias, apresenta um grande desafio à leitura da forma literária no cenário marcado pela complexidade do contemporâneo.