Quem é a “Amiga genial”?

Allana Santana

Créditos da imagem: Hans Breder, Body/Sculptures, 1969-1973


Em meu último post, me arrisquei a comentar algumas transformações na forma do bildungsroman, a partir de uma leitura de A amiga Genial. Agora, gostaria de explorar melhor a relação entre as duas personagens principais da quadrilogia de Elena Ferrante, Lila e Lenu.

No prólogo de A amiga Genial, Lenu narra o sumiço de Lila, que é o evento propulsor da narrativa:

“Estava extrapolando o conceito de vestígio. Queria não só desaparecer, mas também apagar toda a vida que deixara para trás. Fiquei muito irritada. Vamos ver quem ganha dessa vez, disse a mim mesma. Liguei o computador e comecei a escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou na memória”.

Assim, a trama da tetralogia, do ponto de vista de Lenu, é a história da amizade das duas, bem como a narração das experiências vividas por ambas ao longo de toda uma vida. Lenu busca dar uma ordem a essas vidas, mas como a presença de Lila é fundamental, mas vestigial, escorregadia, a escrita de Lenu falha em capturar Lila, ao mesmo tempo em que não desiste de tentar realizar essa captura.

Desde o princípio, a diferença de personalidade das narradoras afeta a trama também. A presença de Lila está associada a situações de impulsividade, a fortes emoções, o que contrasta com a ordem que Lenu quer dar à narrativa.

Um exemplo: durante a adolescência das meninas, Lenu é abordada pelo filho do farmacêutico e outro garoto, que apostam que os seios de Lenu não são verdadeiros, desconfiando que ela usa enchimento. Para tentar convencê-la, o garoto propõe dividir com ela as vinte liras que ganharia, caso Lenu aceitasse o desafio. Após uma breve dúvida, recebe o dinheiro de antemão e revela os seios para os dois em um local mais afastado. Após recontar esse evento, a narradora associa seu comportamento à influência de Lila em sua vida, que atua sobre ela como um “fantasma exigente”:

“E se estivesse com Lila? Eu a teria puxado por um braço e sussurrado em seu ouvido: vamos embora; e depois, como sempre, eu acabaria ficando, só porque ela, como sempre, teria decidido ficar. Ao contrário, em sua ausência, após uma breve hesitação, me pus em seu lugar. Ou melhor, abri um espaço para ela em mim”.

Mas talvez o episódio mais caracteristico da maneira como a “formação” da personalidade de ambas se embaralha, se entrelaça seja o momento em que as amigas decidem se aventurar pela primeira vez fora dos limites do bairro, a partir da ideia de Lila. A presença de Lila parece inspirar coragem em Lenu, que afirma que “sozinha, eu jamais teria coragem de encarar”. Mas, quando estão prestes a sair do túnel que representa os limites do bairro, Lila decide voltar, enquanto Lenu quer continuar andando: “Notei que várias vezes ela se virava para trás, e eu também comecei a me virar. Sua mão começou a suar. […] Por que Lila olhava para trás? Por que tinha parado de falar? O que estava dando errado?”. Após a empreitada ter dado errado, a narradora parece refletir sobre esse comportamento. A atitude de Lila parece contrariar a imagem que Lenu tinha da amiga e que vinha sendo construída pela trama para o leitor. Assim, o inusitado da atitude de Lila é uma porta para o estranhamento que altera os planos iniciais de Lenu, que ao tentar capturar a existência de Lila, se depara com uma figura fugidia:

“Verificara-se uma curiosa inversão de comportamento: eu, apesar da chuva, teria continuado o caminho, me sentia longe de tudo e de todos, e a distância – o descobrira pela primeira vez – apagava dentro de mim qualquer vínculo, qualquer preocupação; Lila bruscamente se arrependera do próprio plano, tinha renunciado ao mar, quisera voltar aos limites do bairro. Eu não conseguia entender.”

A isso me referi acima quando associei a construção das personagens à construção da própria trama narrativa. O fato de que Lenu não consegue “explicar” Lila tem impacto direto na forma de organização da narrativa. A fortuna crítica da obra não se cansa de chamar a atenção para a smarginatura, tão cara para a escrita de Ferrante. Poderíamos entender que o que sai das margens diz respeito não apenas ao desejo inicial de Lenu de fazer de Lila mais do que vestígio, retirando-a da condição de fantasma, mas também de “escrever cada detalhe de nossa história, tudo o que me ficou na memória”. É inegável que acompanhamos a infância, a adolescência e a vida madura de ambas ao longo da quadrilogia, mas também é inegável que em meio a essa (pretensa) linearidade nos envolvemos nos dilemas, nas digressões, nas angústias de Lenu que se entremeiam aos episódios.

O leitor também experimenta essa ambivalência. Acompanhamos com avidez os acontecimentos, mas a narrativa faz questão de nos propor uma desmarginação. É isso o que acontece, por exemplo, quando acreditamos, durante a leitura da maior parte da obra, que A amiga genial do título é  Lila. Entretanto, quase no final do livro, é Lila quem se refere a Lenu como sendo sua amiga genial.

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