Dentro e fora da literatura

Por Luciene Azevedo

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Waltercio Caldas- “A emoção estética”

 

É difícil se aproximar da crítica sobre literatura contemporânea e não se deparar com a tese lançada no texto-manifesto de Josefina Ludmer de que a produção atual deve ser reconhecida como pós-autônoma. Para a argentina, as condições que tornaram possível e firmaram a ideia de arte na modernidade demonstram um notável esmaecimento de sua presença nas práticas artísticas contemporâneas. A começar pela própria distinção entre ficção e realidade que, segundo Ludmer, estão amalgamadas em uma forma indicativa do êxodo da literatura, fazendo-a experimentar “uma drástica operação de esvaziamento”. A ‘realidadeficção’ a que Ludmer alude marcaria o fim da era da autonomia literária e arrastaria de roldão as noções de campo literário, autoria e obra literária.

Em uma das entradas de seu ensaio-diário Aqui, América Latina publicado em 2010, Ludmer recorda uma conversa mantida com a poeta Tamara Kamenszain sobre a produção poética argentina contemporânea. Kamenszain mostra-se surpresa com sua própria falta de recursos para ler a poesia de seus contemporâneos e atribui a isso uma maneira toda particular que o tratamento do tempo presente ganha nos poemas que anda lendo. Ao comentar especificamente um poema de Roberta Iannamico, revela ficar estupefata porque diz não reconhecer senhas de entrada para a leitura do poema que, por sua vez, parece prescindir de determinadas leis de invenção para “trabalhar com um presente cru, sem concessões nem mediações”. Essa descrição dá a Ludmer a impressão de que tal poesia é ‘antiliterária’ e, embora Kamenszain concorde que muitos leitores de poesia não a reconheceriam como tal, sugere que talvez o poema de Iannamico não possa ser considerado poético exatamente porque mantém um distanciamento em relação ao que damos por certo o que seria o literário poético, pois não há ali nenhuma ideia ou metáfora, não se pode encontrar nele nada “profundo”, ao contrário “fica apenas o banal, as nimiedades do presente…a experiência…mas não uma experiência profunda, importante”. A descrição de Kamenszain parece rejeitar a repulsa ao poema ao mesmo tempo em que demonstra certo encantamento desconfiado dessa nova condição. A esse efeito ambíguo Ludmer responde que é possível pensar a produção contemporânea como um “gesto de saída da literatura e de estar ao mesmo tempo dentro dela, um gesto de fora-dentro”

A ideia central dessa literatura não literária é, portanto, a inespecificidade, como já apontou outra argentina, Florencia Garramuño. Dissolvendo-se as condições que delineavam para a arte moderna sua autonomia, a arte contemporânea inscreve-se em uma inespecificidade que complica as antigas certezas que estabeleciam limites entre a ficção e a realidade, a vida e a arte, o autor e o narrador, a arte e a não-arte.

Isso torna mais fácil a recepção do leitor diante de obras como Delegado Tobias de Ricardo Lísias, em que narrador e performance autoral parecem indistintas, ou a hexalogia do norueguês Karl Ove Knausgaard, cuja banalidade da memória do narrador que tem o próprio nome do autor descreve com riqueza de detalhes a textura de um cereal matinal ou a marca dos produtos de limpeza dos quais o personagem-autor se vale para realizar uma faxina.

É claro que há sempre a opção por identificar nossa época com o final dos tempos e reconhecer a idiotia para classificar toda a arte contemporânea. A ambivalência sempre pode perder para o desdém: isso é literatura? Não seria possível, como sugere Ludmer, pensar que estamos vivendo a era de um literário não literário, uma literatura que está saindo de si, na direção de novas formas de criação? Se a resposta for sim, poderíamos, sem culpa, nos divertir e renovar nossas chaves de leitura, para aceitar a surpresa e a estupefação provocada por essas novas narrativas e acolher o estranhamento de sua inespecificidade.

A meu ver, apenas essa segunda opção torna possível interpretar o que Ludmer chama de “drástica operação de esvaziamento”, sem apelar para os diagnósticos apocalípticos que preveem (mais uma vez) o fim do literário. Afinal, a inespecificidade pode ser o indício de um rearranjo das formas de composição narrativa.

Nesse sentido, a literatura contemporânea também lança ao leitor um convite para constituir uma comunidade disposta a conceder a inversão dos clichês mais comuns sobre o presente, lançando seu olhar em uma nova direção, pois embora tudo pareça ruína, pode também ser construção.

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7 Respostas para “Dentro e fora da literatura

  1. Luciene, o texto me remeteu ao conceito de lógica coral que Sussekind aborda no texto “objetos verbais não identificados”, pensando na tentativa de dar um nome aos textos que apresentam hibridismo, mescla com outros gêneros. E um dos aspectos mais interessantes é como esse não lugar, essa literatura para fora dela mesma nos faz indagar incessantemente: o que é o contemporâneo? O que é a nossa literatura? De fato, não são perguntas fáceis, mas é preciso se arriscar, pensar que talvez toda essa imprecisão seja produtiva e que haja uma potência positiva nas novas formas instáveis que se apresentam na arte contemporânea.

  2. Obrigada pelo comentário, Larissa. É isso mesmo. Nós temos que apostar na tarefa crítica de olhar o presente.

  3. Assim como vocês, creio que a aposta contínua e desafiadora de indagar criticamente o contemporâneo configura tarefa importante e necessária. Me chama atenção, nesse cenário, o papel do leitor, que é instigado, de alguma forma, a também migrar nesse movimento de “êxodo da literatura”, a se debruçar sobre essa inespecificidade e a “olhar em uma nova direção”, como Luciene bem coloca. Acho que a imagem, com a obra de Waltercio Caldas, denuncia bastante esse “novo” lugar do leitor: uma elevação instantânea, uma certa instabilidade, um ganho e uma perda…
    O que, a princípio, pode soar apenas como uma saída da zona de conforto, tem uma dimensão bastante profícua para pensarmos a literatura de nosso tempo.

  4. Nivana, a leitura que vc faz da foto da obra de Waltércio Caldas é boa: a arte contemporânea também pode ser uma espécie de incômodo, uma pedra no sapato que ao mesmo tempo prende o fruidor e escapa da zona de um certo entendimento de arte que temos, um círculo aberto, “escapando” do quadrado do senso comum.

  5. O discurso sobre o fim da literatura é algo que está posto. Livros como “A literatura em perigo”, de Tzvetan Todorov, corroboram essa ideia e alertam o leitor sobre essa ameaça iminente. Pensar esse aniquilamento, no entanto, não é recente, e a literatura está aí sendo debatida, inclusive aqui neste blog. Esse discurso atinge, por exemplo, de modo particular e periódico, a poesia, sobretudo depois de manifestos sobre o verso enquanto forma superada. Percebo, no entanto, atualmente, um movimento reflexivo da própria crítica literária que começa a se voltar para o fenômeno poético, criando fissuras que dão espaço a novas maneiras de se pensar a poesia e sua (eterna) crise (vide Siscar). Da mesma forma, o discurso do “fim do literário”, contemporaneamente, vem tomando novos contornos e abrindo espaço para ruptura com os “diagnósticos apocalípticos”. Textos como esse de Luciene doam um novo fôlego às discussões, estimulando que elas deixem de se reduzirem à nostalgia do que um dia foi o literário para passarem a pensar o que ele é hoje. Quer dizer, em vez de situar a “inespecificidade” como letal para o literário e pronto, estudar sua motivação, efeitos, lugar e o próprio “estranhamento” que ela suscita. Talvez a literatura saia ganhando mais se, no lugar das fáceis previsões catastróficas, percebermos que o que está “esvaziado” está aberto a novas possibilidades de preenchimento.

  6. Obrigada pelo comentário, Nívia. Em qualquer época, vamos encontrar quem veja o perigo do fim em qualquer coisa. Isso não é privilégio do contemporâneo. E vc tem razão: crítica É crise. E crises provocam mudanças enquanto os “diagnósticos apocalípticos” costumam apenas se regozijar com a retórica do fim.

  7. Pingback: Literatura e arte: aproximações | Leituras contemporâneas - Narrativas do Século XXI

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