Novas e velhas formas de narrar

Por Nivana Silva

Favela - Rodrigo Guimarães.gif

“Favela”, por Rodrigo Guimarães

No próximo mês de outubro, Ricardo Lísias lança pela editora Alfaguara seu mais novo livro, A vista particular e, mais uma vez, o autor aposta na ampla divulgação do trabalho nas redes sociais, aferindo a recepção de leitura de sua obra e dando novo espaço a algumas marcas pioneiras do seu estilo autoral. Para além de posts no facebook e no instagram sobre a pré-venda e o lançamento do livro, Lísias também divulgou, estrategicamente, os dois capítulos iniciais da narrativa em outros meios de comunicação: na Revista Piauí, na qual o paulistano atua como colaborador, temos o primeiro capítulo e parte do segundo. Já no Suplemento Pernambuco, encontramos a continuação do capítulo dois de A vista particular.

O leitor que puder ler as páginas iniciais da história antes do seu lançamento oficial, será ouvinte de uma narrativa, que se passa na cidade do Rio de Janeiro, cujo protagonista é um introspectivo artista plástico de trinta e cinco anos, que retrata em suas telas o urbano e a natureza carioca “sem deixar as fronteiras entre esses dois elementos muito claras” (LÍSIAS, 2016). Além de trazer detalhes sobre a temática e os traços dos quadros desse jovem pintor contemporâneo, temos algumas referências interessantes que se destacam no primeiro capítulo, como uma incipiente exposição do artista no Museu de Arte do Rio, no mesmo dia da conferência proferida pelo filósofo e crítico de arte francês Georges Didi-Huberman, e uma resenha do também crítico de arte e artista plástico Rodrigo Naves, com nota direta a uma matéria publicada no caderno cultural “Ilustríssima”, do jornal Folha de São Paulo em outubro de 2015.

Ademais do jogo sutil entre ficção e realidade, o que também chama atenção nas primeiras páginas de A vista Particular diz respeito à possibilidade de se pensar o contemporâneo a partir dele próprio. Após as descrições citadinas e cotidianas (sobretudo relacionadas ao personagem principal e à repercussão de seu trabalho) tomarem conta dos parágrafos iniciais do livro, há, no segundo capítulo, uma espécie de reviravolta, pois o protagonista, José de Arariboia, “é visto subindo a favela do Pavão-Pavãozinho. Ninguém sabe o que acontece por lá. Na volta, uma inesperada performance deixa as pessoas em delírio” (conforme o trecho da sinopse do livro). De uma personalidade naturalmente distraída e até mesmo distante, somos conduzidos à performática cena da espetacularização do sujeito, das câmeras, dos seguidores desconhecidos e dos vídeos que viralizam no YouTube em um curto espaço de tempo. Ao passar de um capítulo a outro, a sensação que impera é de descontinuidade, ou algo como uma suspensão em que emergem alguns questionamentos sobre a contemporaneidade e sobre a própria forma narrativa que se inscreve nesse novo romance de Lísias.

O desvelamento repentino do artista plástico, “que poderia ter sido uma catástrofe [e que] se transforma em sensação” (idem), ao que parece, sinaliza o ponto de partida para uma análise à exposição exacerbada da intimidade e, nesse sentido, há uma retomada, na obra de Lísias, de um comprometimento/crítica social que se delineava nos romances iniciais, como a posição quanto aos moradores de rua em Cobertor de estrelas (1999) e em Duas Praças (2005), e à competição entre executivos d’O Livro dos Mandarins (2009), para citar apenas alguns exemplos. Também encontramos em A vista particular – com foco narrativo em terceira pessoa e com um narrador onisciente nos dois primeiros capítulos – marcas biográficas sutilmente mencionadas de forma ficcional, o que também esteve impresso na consolidação do estilo (antes da fase autoficcional, se é que podemos falar assim) de Ricardo Lísias.

Dessa maneira, é possível ver, de um lado, a (re)inscrição  de uma assinatura acompanhando uma forma de narrar que marcou o estilo inaugural-experimental de Lísias e, do outro, uma nova (e já recorrente) estratégia narrativa associada à divulgação, à performance autoral e aos termômetros de recepção do trabalho por meio das mídias sociais, especialmente. Ressalto, no entanto, que não há uma delimitação precisa, ou claramente definida, entre essas novas/velhas formas (tal como o não limite de fronteiras entre o urbano e a natureza nas telas de Arariboia), mas uma mescla profícua que contribui, sobremaneira, para reafirmar o acolhimento do nome do autor pela cena contemporânea brasileira.

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4 Respostas para “Novas e velhas formas de narrar

  1. Nivana, parabéns pelo texto, ficou muito bom.

    Não deixa de ser curiosa essa tomada de posição de Lísias, que, após apostar parte de sua obra ao projeto de auto-ficção, volta-se para uma, podemos chamar, “voz autoral” da sua primeira fase enquanto autor, como você pontua bem. Há algo aí que deve ser levado em conta: porque esse retorno? Porque agora? Afinal, a fase auto-ficcional projetou muito seu nome de autor. Pensando em campo literário, ao meu ver, é relevante pensar: nenhuma tomada de posição é gratuita.

  2. Oi, Débora. Muito obrigada pelo comentário.
    Acho pertinentes os questionamentos que você levanta a respeito dessa “retomada de estilo autoral”. Lísias lançou mão das características mencionadas de forma bem experimental nos seus romances iniciais. No entanto, elas contribuíram muito para delinear a assinatura do autor no contexto da literatura contemporânea. A publicação d’ “O livro dos mandarins”, por exemplo, foi importante para a consolidação do seu estilo, que, assim como outros romances anteriores, lhe rendeu prêmios e reconhecimento literários. Penso que o “desvio estilístico” para a proposta autoficcional não deixa de, dentre outras coisas, estar relacionado a um modo de testar a recepção da leitura de sua obra, o que também pode ser uma estratégia, agora, com a reapresentação das “velhas” formas.
    Há uma outra característica “inicial” não tratada no post (porque, a princípio, não aparece em “A vista particular”), que diz respeito à reapropriação de textos de autoria de Lísias dentro de um romance também seu. Isso acontece em “Duas praças” e é algo notável também na fase autoficcional, pois em “Inquérito policial: família Tobias”, a começar pelo próprio título, existem referências e repetições vinculadas à série “Delegado Tobias”. Cito isso para reiterar que, de fato,não há uma delimitação precisa entre as velhas e novas formas.
    Concordo com vc quando diz que nenhuma tomada de posição é gratuita e gostaria de pensar mais sobre isso, afinal está relacionado ao próprio jogo da assinatura de Lísias e a sua identidade autoral, temas que me interessam na investigação.

  3. Pingback: Literatura e performance: um “dentro-fora”¹ do texto | Leituras contemporâneas - Narrativas do Século XXI

  4. EDSON RIBEIRO DA SILVA

    É possível ver nesse eu-autoral que supera a autoficção em direção à literatura de testemunho um fenômeno recorrente da literatura contemporânea, mas que têm desnorteado certos teóricos que buscam categorizar certas experiências estéticas. Seria uma forma de antificção dentro de gêneros como o romance, a novela e o conto. Um caso notável é “Dora Bruder”, de Patrick Modiano. É evidentemente uma obra romanesca em que o eu que narra é o próprio Modiano mostrando como obteve os documentos sobre a garota judia desaparecida durante a ocupação nazista. Aí chamam o livro de historiográfico porque narra o real através de um autor que se mostra como tal. É um passo além da autoficção. A passagem da memória individual para a coletiva. Lísias quer ser testemunha da sua época. Escreve obras que querem ser arte literária e que são romances sim. Essa atitude performática de o autor poder nomear-se como narrador é um recurso que não desfaz o romance como gênero.

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