Não é autoficção (?)

Antonio Caetano

Créditos de imagem: Ilustração de Eva Vázquez. El Páís.

Ao ler recentemente uma entrevista dada pelo autor e editor Tiago Ferro ao Estadão, decidi escrever esse post com o intuito de expor algumas inquietações que tive. O pai da menina morta, primeiro livro escrito pelo autor, começou a ser pensado a partir de um texto publicado por Ferro na Revista Piauí, no qual descreve, comenta e elabora o luto pela morte de sua filha de oito anos. Há uma diferença crucial entre o artigo para a revista e o romance. No texto para a Piauí, os nomes próprios de sua mulher e das duas filhas são revelados, mas no romance, o narrador é “O Pai da Menina Morta” e os nomes dos demais integrantes da família não aparecem ou são modificados.

Na entrevista a que me referi acima, perguntado sobre sua resistência a considerar sua produção como autoficcional, Ferro afirma não considerar O pai da menina morta uma autoficção, tomando como base duas linhas de pensamento. A primeira linha é de que é inegável em seu texto “a volta do sujeito, aquele mesmo que os franceses haviam matado na década de 1970” (ou seja, o autor), tão em voga nos cenários de “super valorização da experiência” –  considerando, dessa forma, seu romance como um exemplo dentre tantos que enfatizam não a ascensão do gênero da autoficção, mas uma “mudança de ênfase na literatura contemporânea”. A outra linha de pensamento a que Ferro se refere diz respeito a uma caracterização básica para a autoficção: a de que o nome do narrador deve ser o mesmo do autor, exposto na capa. Ou seja, Tiago Ferro nega que seu texto seja autoficcional, mas não nega que esteja “valorizando a experiência” vivida ao escrever sobre o luto da perda da filha.

Tal cenário me faz pensar na pesquisa da colega Caroline Barbosa, em que ela reflete sobre “a recusa da autoficção”, pensando o Com armas sonolentas,de Carola Saavedra. Acredito que as razões que levam autores a negarem que seus textos sejam autoficcionais podem ser as mais diversas, mas  gostaria de expor algumas reflexões acerca do que poderia fomentar um discurso negacionista por parte dos autores em relação à autoficção.

Na entrevista, Ferro diz que a interpretação de sua obra como autoficcional resultaria em uma leitura necessariamente direcionada à relação dicotômica do real e do fictício, restringindo, assim, múltiplas interpretações do texto. Mas como distinguir, ou mesmo conceituar, realidade e ficção? A meu ver, são as maneiras restritas de lidar com esses conceitos, e consequentemente, com a autoficção, que restringem possibilidades de interpretação e reflexão sobre a obra.

Talvez sejam as concepções engessadas do que é autoficção, autobiografia, romance, que afastam ficção de não ficção, ao invés de considerá-las como partes complementares de todo e qualquer relato de si. Por conta da binaridade que se forma temos sempre de considerar onde começa um e termina o outro e a reivindicar e/ou rejeitar um e o outro. Talvez fosse mais interessante nos inclinarmos ao conceito de espaço biográfico na visão de Leonor Arfuch, no qual podemos considerar que a tensão entre o ficcional e o não ficcional “permite a consideração das especificidades respectivas sem perder de vista sua dimensão relacional, sua interatividade temática e pragmática”.  

Já que não é possível ler a obra “simplesmente” como romance (pois o personagem é muito colado ao autor), mas tampouco se trata de um relato autobiográfico, não seria o caso de investir em uma leitura especulativa sobre O pai da menina morta que se pautasse pela ótica múltipla de um espaço biográfico de fronteiras porosas para que assim possamos explorar a ambiguidade de sua condição?

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3 Respostas para “Não é autoficção (?)

  1. Tem algo de extremamente viciado em chamar autoficção algo que não seja uma ficção sobre ficção. Sim, vão dizer que isso existe e se chama metaficção, mas aí o prefixo está distorcido até a galáxia mais próxima. Ao mesmo tempo, qual a escrita não é autobiográfica to begin with? Toda escrita parte de uma decisão de escrever e toda decisão é pessoal, é de quem a toma. Ao mesmo tempo, uma dose saudável de psicanálise faria as pontes entre o pessoal e o impessoal nos textos. Se é que há algo realmente pessoal, uma vez que o sujeito é formado de fora. Eliminar essas ideias pré-científicas seria saudável e levaria a uma teoria mais coerente e coesa. A começar por eliminar a ilusão de Eu.

  2. Antonio Caetano

    Olá @GarudaDeity! Muito obrigado pelo comentário!

    Realmente, há uma pressa em se chamar de autoficção textos cuja narrativa expõe essa tensão entra a figura autoral e o narrador. O termo pegou bem. Se é “erroneamente” utilizado ou não,cabe a nós nos inclinarmos para cada texto e investigar, refletir sobre etc. Entendo o incômodo. Me incomoda também, ou melhor, me intriga, o fato de que muitos autores negam que seus romances/contos sejam autoficção, buscando, inclusive, com o apoio de conceitos da autoficção que são, digamos, datados, burlar e maquiar suas narrativas com certas estratégias – como omitir o nome do narrador – , na esperança de não serem “rotulados” como autores de autoficção, sendo que bebem bastante dessa fonte. O próprio Tiago Ferro parte de sua experiência pessoal da morte da filha e a ficcionaliza. Como você bem disse “Toda escrita parte de uma decisão de escrever e toda decisão é pessoal”.
    Por isso trago o conceito de espaço biográfico que a Leonor Arfuch deslinda. Acredito que aliado à ideia de espaço biográfico podemos, pelo menos, ir pelas beiradas e procurar entender as especificidades de cada texto, cada formato, para refletirmos melhor sobre essas narrativas do eu (suas possíveis características e impactos), sem necessariamente engessar nossas concepções.
    Falando do “eu”, concordo bastante quando você inclui a psicanálise nesse fluxo entre o pessoal e o impessoal. Na minha pesquisa, pelo menos, será essencial.
    Abraço!

  3. Pingback: Autoficção = realidadeficção? | Leituras contemporâneas - Narrativas do Século XXI

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