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Caros leitores do blog,

a partir de hoje estaremos publicando semanalmente um comentário relacionado ao objeto de pesquisa de cada estudante que atua como pesquisador no grupo Leituras Contemporâneas e são orientados pela professora Luciene Azevedo (UFBA), as postagens irão apresentar a indicação de um link, de uma matéria ou de um blog site que instigue o interesse pela literatura contemporânea.  Esses textos servirão como um modo de compartilhar com os leitores do blog  as descobertas de pesquisa dos estudantes e também como um convite a leitura e debate.

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Curtos-circuitos e desconstruções

divulgação e-galáxia

Por Nivana Silva

Publicada pela e-galáxia em formato digital, a revista cultural Peixe Elétrico: livros e ideias, desde Julho de 2015, mobiliza, bimestralmente, reflexões e debates no âmbito das artes, trazendo algo sobre a contemporaneidade de forma “diferente”, conforme ressaltam os editores do periódico. O escritor paulistano Ricardo Lísias assina a publicação, ao lado de Tiago Ferro e de Mika Matsuzake, que também são idealizadores da e-galáxia. Inspirados, especialmente, pela extinta revista argentina Punto de Vista, o trio afirma, no editorial de estreia, ter como principal foco o livro, “no que ele tem de mais amplo e universal: o poder de instigar, provocar e fazer a cultura se mover”, endossando, contudo, que a publicação não visa abranger somente a literatura, mas as artes de um modo geral.

Já no seu quarto volume em formato e-book, Peixe elétrico edita, paralelamente, um blog que apresenta entrevistas, artigos de opinião, comentários e resenhas sobre diversos temas do mundo contemporâneo, sem perder de vista, é claro, o universo das artes. Assim como a publicação bimestral impulsiona “choques”, “sustos” e “conflitos” – palavras-chave que aparecem no já citado primeiro editorial – o blog incita discussões e inspira reflexões nas águas culturais a partir do “curto-circuito” do qual advém a eletricidade dos textos.

Navegando pela plataforma, fui fisgada por uma publicação de fevereiro deste ano – que considero, particularmente, com uma voltagem um tanto alta, devido aos meus interesses de pesquisa. Intitulado “Derrida, um egípcio”, o post, encabeçado por Lísias, traz uma entrevista com o pesquisador Evando Nascimento, grande conhecedor da obra do filósofo franco-argelino Jacques Derrida. O livro homônimo ao título da matéria diz respeito à tradução (realizada por Nascimento) de uma obra do filósofo alemão Peter Sloterdijk, dedicada ao pensador da desconstrução. Com o intuito de discutir o trabalho de Sloterdijk em edições posteriores, a Peixe-elétrico trava um diálogo com o tradutor de Derrida, um egípcio, levando em conta, também, a eloquência do legado derridiano, como sugere Lísias, que, na abertura da entrevista, enfatiza: “tudo o que diz respeito a Derrida me encanta e me parece misterioso”.

A conversa que a partir de então se dá entre Evando Nascimento e a revista coloca dois nomes próprios na mesma cena, Sloterdijk e Derrida, abrindo espaço para um tratamento inicial da obra do primeiro e reiterando a importância do arcabouço crítico derridiano para discussões em vários países, inclusive no Brasil. Fazendo jus ao título da revista e aos curtos-circuitos que ela deseja provocar no leitor, Nascimento relembra, brevemente, algumas contribuições do filósofo da desconstrução nos mais diversos campos do conhecimento, mesmo após a sua morte, em 2004. A inquietante –  e eletrizante – obra de Jacques Derrida, com todas as suas rupturas e questionamentos, abre espaço, ainda hoje, para reflexões acerca da contemporaneidade, da linguagem, da literatura, das artes e, nesse sentido, a entrevista e o tema que a permeia configuram apenas uma amostra do que é possível encontrar em Peixe-elétrico, blog ou e-book. Sendo assim, creio que uma das grandes razões para ler o periódico seja a busca por questões e temáticas, na seara das artes, que nos façam mergulhar longe das águas mansas e que, em direção oposta, fomentem o debate, nada monótono, e instiguem o leitor de várias formas, afinal de contas, como salientam os editores, “do conflito talvez surja alguma luz. Produzir cultura é incomodar”.

Fundo Bruno Tolentino: arquivo pessoal e documental de interesse literário

FINALE - MANUSCRITO COM RASURAS BT

por Nívia Maria Santos Silva

Já pensou se você pudesse entrar em contato com fotos, documentos, manuscritos, até mesmo bilhetes e passaportes, cartas e e-mails de um poeta ou de um escritor de que gosta muito ou sobre o qual realiza uma pesquisa?

O Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da UNICAMP, nos oferece essa possibilidade. Lá se encontra o Centro de Documentação Alexandre Eulalio (CEDAE), no qual podem ser consultados, além de todo esse material que enumerei acima, cartões-postais, cartazes, áudios, recortes de jornais, revistas, livros, anotações, enfim, uma profusão de documentos que formam os Fundos pessoais de escritores, artistas e intelectuais e, até mesmo, de instituições. Foi lá que, em julho de 2015, dei passos importantes para a execução de minha pesquisa ao consultar o Fundo Bruno Tolentino (FBT).

A história arquivística do FBT é recente. Em 2011, o Instituto de Formação e Educação (IFE), detentor dos direitos autorais de Bruno, comunicou sua intenção de doar ao CEDAE o material pertencente a ele. Em 2012, essa doação foi aprovada pela Comissão de Especialistas para a avaliação de mérito e de importância do acervo documental (formado pelos professores Doutores Alcir Pécora, Mário Frungillo e Marcos Lopes) e se consolidou em 2013, quando o presidente do IFE, Marcelo Consentino, e seu diretor, Rodrigo Garcia, efetivaram a entrega do acervo.

O material do FBT ainda não apresenta como instrumento de pesquisa as planilhas de descrição do Fundo, e sim a listagem de documentos, e o sistema de arranjo não foi organizado, pois o acervo ainda não passou pela catalogação técnica do próprio CEDAE. Por isso, as condições de acesso estão sendo realizadas por meio de consulta limitada, e não de consulta livre como ocorre com acervos já catalogados. Isso quer dizer que, para ter acesso ao FBT, diferente do que acontece com os Fundos de consulta livre, foi necessário que eu solicitasse a autorização para consulta e reprodução diretamente aos representantes do IFE. Mas isso não foi problema, eles, prontamente, atenderam meu pedido, e todo esse processo foi devidamente mediado pelo próprio CEDAE que, representado pela sua diretora Flávia Carneiro Leão, deu-me toda orientação e suporte necessários.

Já como a permissão para a consulta, para a reprodução digital e a reserva no CEDAE realizada, parti para São Paulo. Durante a semana em que fiquei na UNICAMP, me deparei com um material rico e de idioma diverso (português, inglês, francês, espanhol e italiano). O FBT apresenta documentos que assinalam as atividades de Bruno enquanto professor, intelectual e, sobretudo, poeta. Em meio a cadernos, impressos, fotos, recortes de jornais e revistas, livros, documentos, cartas, fita cassete etc., há, especialmente, muitos manuscritos de poemas, suas rasuras, reescritas, versões.

O acervo contém, por exemplo, o Indexed Book o qual, chamado de Red Book, é um conjunto de dois cadernos da prisão de Dartmoor, nos quais, podem ser encontrados, escritos a lápis, esboços de poemas, dispostos como em um livro, com capa, epígrafe, dedicatórias e afins, muitos deles escritos e/ou reescritos durante os 22 meses em que esteve preso na Inglaterra por tráfico de drogas. Há textos, inclusive, inéditos e não apenas no Red Book, mas também em papéis avulsos e muitos impressos que trazem poemas que, de tão modificados, passaram a ser versões distantes dos textos publicados, o que nos revela o trabalho de repisar o poema, de retrabalhá-lo, de adiar a sua forma final. Essa prática pode ser confrontada e trazer aproveitamento crítico acerca de seu processo de composição e de sua demora na publicação.

Outro ponto forte do acervo são as correspondências que revelam muito de seu capital social, o contato que o escritor mantinha no campo com conhecidos nomes da literatura brasileira, tanto críticos quanto autores, como Antônio Cândido (que é também seu primo), Antonio Houassis, Nélida Piñon, nomes controversos como Paulo Coelho e, até mesmo, autoridades religiosas como Dom Eugênio Sales. Seus conteúdos evidenciam não apenas a relação que Bruno nutria com outros agentes do campo literário, como também registram sua relação com instâncias de legitimação, como a Academia Brasileira de Letras, e editoras, como Globo. Cabe ainda destacar as fotos, dentre as quais podemos encontrar escritores como Lygia Fagundes Telles, Moacyr Scliar e o poeta Alberto da Cunha Melo. Além de fotos em eventos da/na Academia Brasileira de Letras e de lançamento de seus livros.

Textos críticos sobre o comportamento polêmico de Bruno e sobre sua obra aparecem em recortes de jornais e revistas coletados pelo autor, revelando seu interesse pela recepção crítica. No acervo, há ainda muitas entrevistas que Bruno concedeu para diversos periódicos, sobretudo, nacionais, como O Globo e Veja, assim como clippings que as editoras enviaram para o escritor com toda a citação que sua obra teve nas mídias (matérias, notas, resenhas). De uma forma ou de outra, esse material nos mostra que, ao longo da década de 1990, Bruno Tolentino, era uma presença constante no jornalismo brasileiro, chegando até a ser entrevistado pela revista (para maiores) Ele Ela, com um título de gosto duvidoso, “Bruno Tolentino: a louca espada do verso”.

Uma semana de pesquisa demandou meses de triagem, tamanho foi o material consultado, mas sem dúvida está sendo bastante proveitoso. Os documentos reproduzidos estão sendo agora interpretados e integrados aos capítulos da tese que estão em fase de produção. Sua problematização vem trazendo rendimentos críticos importantes para pesquisa que caminha a passos largos para sua qualificação.

O jogo de espelhos em O motivo de Javier Cercas

Circus - Chaplin

Por Davi Santana

 Resenha

 O motivo

Javier Cercas

Francis, 2005.

         O primeiro livro do escritor espanhol Javier Cercas, O motivo, possui uma relação especial com o livro mais famoso do autor, Soldados de Salamina. Quando este foi publicado, em 2001, Javier Cercas era um escritor quase desconhecido. Lançado em 1987, o livro de contos com que ele estreou na literatura permaneceu numa espécie de limbo, do qual só saiu em 2002, quando Cercas, embalado pelo sucesso imprevisto de Soldados de Salamina, o relançou numa versão reduzida: dos cinco contos que compunham o livro original, apenas um passou pelo crivo do autor maduro, justamente o que emprestava o nome à coletânea.

            Além disto, O motivo é citado em Soldados de Salamina num trecho importante em que Roberto Bolaño, grande escritor chileno que é transformado em personagem por Cercas, fala ao próprio Cercas (que é o protagonista do livro), durante uma entrevista que concede ao escritor espanhol, que havia lido dois dos seus livros, El móvil e El inquilino. Do segundo, ele confessa, não se lembrava de muita coisa, do outro, entretanto, lembrava-se de “um conto muito bom sobre um filho da puta que induz um pobre coitado a cometer um crime para escrever um romance“. Este conto é justamente El móvil, isto é, O motivo (Francis, 2005), conforme a tradução para o português de Bárbara Guimarães que está em minha frente neste momento.

            Se estas obras possuem, como afirmei, um parentesco especial, isso não se dá apenas por causa das relações apontadas acima, que são meramente circunstanciais (muito embora o fato de um livro ser citado dentro do outro, do modo como isso é feito, pareça abrir um espaço interessante de associações, como se o autor estivesse dizendo “Olha, existe algo que une estas obras…”) E. de fato, as obras possuem uma série de semelhanças intrínsecas, muito embora, como afirma Francisco Rico no posfácio a O motivo, quem quer que chegue a esta novela levado pelo livro mais célebre do autor “perceberá mais facilmente as óbvias diferenças do que as não menos claras semelhanças. A principal dessas semelhanças, continua, é que ambos os livros têm como eixo central o ato de escrever uma narrativa – a própria narrativa que se está lendo – em confronto volúvel com a realidade”.

            Assim como Javier Cercas (o personagem) passa todo o relato de Soldados de Salamina preparando a composição de um relato sobre Rafael Sánches Mazas, n’O motivo, acompanhamos o processo de ideação e preparação de uma novela levado à cabo por Álvaro, o protagonista da novela. Álvaro é um advogado de profissão, que elege a literatura como o seu verdadeiro trabalho. Levado por uma ambição desmedida e piegas, ele projeta a escrita de um romance que abalará as estruturas da literatura espanhola.

            Como argumento de seu romance, elege a história de um escritor ambicioso que tenta escrever um romance ambicioso. Além do escritor, sua novela tem mais três personagens, todos moradores do mesmo edifício: um senhor austero que vive sozinho no último andar, onde mantém uma fortuna avaramente trancafiada num cofre, e um casal em crise financeira que mora no mesmo andar do escritor e que vê sua paz conjugal destruída paulatinamente, à medida que o escritor avança na escrita do seu romance.

            A partir daí, o relato desenvolve um paralelismo crescente entre o romance dentro do romance de Álvaro e o que se passa no plano real (i.e., a realidade do universo ficcional), o que cria um jogo de espelhos interessantíssimo. A começar pelo fato de Álvaro escolher como modelos para os personagens de seu romance pessoas reais, que moram no mesmo edifício que ele: o sr. Monteiro, um velho avarento, dono de uma pequena fortuna, que mora sozinho num apartamento do último andar e um casal  (Enrique e Irene Casares) vizinho de andar de Álvaro. Assim, à medida que o relato avança, os acontecimentos que estavam planejados por Álvaro para se darem no romance começam a acontecer também à sua volta.

            Escrito em terceira pessoa num estilo entre irônico e impessoal, esta novela demonstra laivos de virtuosismo no que diz respeito à estruturação do argumento, que é executado de maneira primorosa, a despeito do nível de exigência imposto pela forma. Devido a essa composição rígida, irmã dos romances policiais, eu não poderia revelar o final do romance sem furtar aos leitores do blog que quiserem ler O motivo pela primeira vez o prazer de serem surpreendidos com o desfecho da novela. De modo que me abstenho de uma leitura completa da obra na esperança de que essa resenha estimule novos leitores.

            O que eu posso dizer, no entanto, é que um dos grandes méritos dessa novela é instaurar uma ambiguidade quanto à questão de que se é Álvaro que provoca essas semelhanças, forçando seus vizinhos a agirem conforme o romance que planejara, ou se elas são causadas por uma instância fantástica. Para reforçar essa ambiguidade o autor dá indicações, ao longo do livro, tanto pra uma opção como pra outra. Nesta ambiguidade se percebe a predileção do autor pelo tema do confronto entre a ficção e a realidade; tema que Javier Cercas irá retomar, a partir de outras perspectivas e estratégias, em livros posteriores. O que faz dessa novela uma boa porta de entrada para o universo ficcional do autor, bem como para os interessados em estudar sua obra. Mas o seu interesse não se restringe aos especialistas. Muito pelo contrário, O motivo é uma leitura que tem valor por si só, pela importância dos temas e pela maneira como os aborda.

A língua que cria mundos

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A passagem tensa dos corpos

Carlos de Brito e Mello

Companhia das Letras, 2009.

 

Por Larissa Nakamura

“A morte faz restos, e os restos concernem a mim”

  O texto desta é semana é a resenha do livro A passagem tensa dos corpos de Carlos de Brito e Mello. Trata-se do primeiro romance do autor, vencedor do prêmio  Governo de Minas Gerais de Literatura e finalista do Portugal Telecom,  Jabuti e Prêmio São Paulo de Literatura. Mello é professor universitário e também atua no Coletivo Xepa, associado às artes plásticas.

Antes de tudo, é preciso avisar aos leitores que o livro foge do que se espera de narrativas mais convencionais, principalmente por sua estrutura formal.  Capítulos curtos, linguagem fragmentada, uma pitada de humor negro e cenáriosnonsense. Assim, o leitor percorre a história de maneira vertiginosa e tem uma experiência literária que pode causar estranheza e desconforto. Sem querer darspoilers: é necessário não esperar respostas ou esclarecimentos, pois o livro garante ao leitor somente a possibilidade de diversas suposições e, ao final, ficamos apenas com situações absolutamente irresolutas.

O enredo do livro, que aparenta ser simples, carrega um grande trunfo: o narrador-personagem. A discussão sobre este nos garante a possibilidade de leitura sobre o próprio ato de escrita e o papel que o escritor exige/espera de si enquanto artista.

Mas vamos à trama: o narrador inominado (que aqui pode ser encarado como a Morte ou um espírito fantasma) registra e realiza, apenas com o único órgão/pedaço de corpo que possui, a língua, o trabalho de passagem de pessoas que morreram recentemente nas cidades do estado de Minas Gerais. Tal ofício permite que aos poucos ele possa constituir um corpo e esta é sua principal meta. Certo dia, se depara com a morte de um pai de família. Mas os parentes do morto fazem a vida seguir normalmente, não há enterro e, embora demonstrem plena consciência do que ocorrera, o cadáver continua a apodrecer na sala de jantar dia após dia. Eis que o narrador, não só curioso com o mistério que ronda as condições do falecimento, mas dependente do encerramento do cumprimento do rito da morte pelos familiares para seguir com seu “trabalho”, permanece na casa e, em meio a isso, gradativamente vai revelando o cotidiano esdrúxulo da família, como também breves flashbacks do passado do narrador.

É a figura inquietante do narrador que abre caminhos para uma análise mais densa da obra, embora, claro, haja outros elementos passíveis de investigação. É possível arriscar que embora o argumento principal da trama seja a morte, a leitura nos confere a emergência da vida diante dos despojos do fim. O que resta é muito pouco: o narrador-língua e os fragmentos de histórias são as sobras do que antes fora vivo e persiste por meio da narrativa:  “Sou um excluído que produz um discurso. A palavra é o único indício da minha presença, e é por meio dela que toda ação e toda matéria podem aqui se realizar.”

O narrador é por vezes obcecado ao que é tátil, ao que é vivo e aos restos que os mortais deixam escapar (comida, dejetos, secreções etc.). A língua se apresenta como uma força indispensável à existência, criando mundos e dando sentido a eles, já que o  saldo residual das experiências de vida e de morte é o que alimenta o exercício do narrar.

Mas uma das vantagens do livro é a pluralidade de perspectivas a serem exploradas na leitura. Carlos de Brito e Mello estreia no romance com estilo e linguagem particulares, apresentando um inquietante modus faciendi literário que merece ser apreciado.

Histórias e memórias em Azul-corvo, de Adriana Lisboa

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Por Neila Brail Bruno

Azul-corvo foi publicado pela primeira vez em 2010 pela editora Rocco e relançado em 2014 pela editora Alfaguara. O romance conta a história de uma adolescente de treze anos, Evangelina (também chamada de Vanja), que, após o falecimento da mãe, muda-se do Brasil para os Estados Unidos para viver com o ex-padrasto Fernando no estado do Colorado. O verdadeiro intuito de sua mudança, no entanto, é encontrar o pai biológico. Durante essa busca, Vanja recorda-se de acontecimentos do passado, especialmente no que se refere a fatos relacionados à própria mãe, Suzana, acontecimentos que sempre se destacam, no enredo do livro, pela riqueza de detalhes.

Adriana Lisboa tematiza em Azul-corvo questões históricas diretamente ligadas às operações militares ocorridas na Amazônia durante a Guerrilha do Araguaia. Nesse livro, ao pôr Fernando, um dos protagonistas da história, como guerrilheiro, a autora joga com a mescla entre ficção e realidade, já que muitos outros relatos surgem na narrativa sobre esse período histórico. Tais fatos, apresentados em um texto ficcional, fazem parte de um imaginário coletivo do qual a autora se apropriou para dar mais verossimilhança à história narrada.

 Fernando vai revelando algumas histórias do Partido Comunista do Brasil (PC do B) bem como as torturas impostas aos fundadores da União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo (ULDP): “Quem se negava a colaborar apanhava. Às vezes era colocado de cabeça para baixo dentro de tambores cheios d’água. Enfiado dentro de um daqueles buracos do Vietnã, com arame farpado por cima”.

 No romance, o sujeito que rememora a própria história traz as marcas do passado, que é peça-chave da narrativa e constitui o presente das personagens:“Eu tinha treze anos. Ter treze anos é como estar no meio de lugar nenhum. O que se acentuava ao fato de eu estar no meio de lugar nenhum”.

É na sua vivência de trânsito e de deslocamentos que Evangelina cria o tempo da própria história. A narrativa evolui de modo que as situações vividas pela protagonista nos Estados Unidos com Fernando (tempo presente da narrativa) se entrelacem com as memórias de Fernando e da própria Vanja (tempo passado da história).

Essa imbricação entre o passado e o presente também está configurada na trama do próprio romance, já que as memórias da personagem Evangelina se apresentam a partir de recuos e avanços temporais. Um efeito de anacronia caracteriza a narrativa, pois desde o primeiro capítulo, ao anunciar que “o ano começou em julho”, a personagem regressa várias vezes ao passado na tentativa de justificar o fato de estar presente em uma casa, cidade e país que não lhe pertenciam.

LISBOA, Adriana. Azul-corvo. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.

 

A arte, a técnica e o sujeito

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Por Elizangela Maria dos Santos

As vertiginosas transformações decorrentes dos avanços tecnológicos, os quais se acentuaram no final do século XX e início do novo milênio, provocaram alterações em todos os aspectos da sociedade. Inexoravelmente, a internet tem significativo papel nas mudanças impostas ao mundo. Desde a velocidade das condições de comunicação e transmissão de informações à dissolução de fronteiras diversas, tais como espaço- tempo, e consumo-produção, entramos na era da informação da qual a internet constitui instrumento central.

Uma vez que os sistemas tecnológicos são produções sociais, as reconfigurações provocadas pela internet impactam também (ou essencialmente) as práticas culturais. E muitas das mudanças a que se assistem no campo literário (apenas) foram possíveis por causa do surgimento da internet e suas ferramentas, dos quais são exemplos a literatura eletrônica e as modificações no fazer artístico que “caracterizariam” a arte contemporânea.

Walter Benjamin (2010), em seu artigo intitulado A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica enfatiza as consequências advindas com a reprodução técnica da obra de arte, a partir da fotografia e do cinema.  Os escritos do alemão são sempre citados quando se trata de refletir sobre as relações entre a tecnologia e as práticas culturais e os processos de ressignificação da arte.

Centrando seu argumento no modo de olhar do sujeito, Jonathan Crary (2012) defende que as mudanças em relação aos modelos clássicos de visão, ocorridas no início do século XIX, aconteceram graças a redefinições de práticas sociais que “modificaram as capacidades produtivas, cognitivas e desejantes do sujeito humano”. Essa concepção coloca o sujeito, mais precisamente as transformações na sua forma de visão, como essenciais para que sejam discutidas a importância do espectador e as mudanças em sua maneira de ver, de sentir e de pensar para discutir a arte.

Considerar a internet como peça essencial nas redefinições artísticas é de fundamental importância quando se trata de pensar a relação entre técnica e arte. Contudo, é preciso levar em conta que o próprio surgimento de recursos tecnológicos é fruto de reconfigurações do sujeito, ou seja, das mudanças entre o sujeito-observador e a os modos de representação. Quando há mutação nas formas de visão do sujeito, há transformações que produzem um novo tipo de observador que, inserido em um contexto determinado, percebe possibilidades e pode empregar as capacidades desse sujeito-observador como forças para estar presente na sociedade e em meio às práticas culturais. Esse sujeito que se modifica para estar em contextos específicos explicaria as diferentes possibilidades literárias na contemporaneidade.

As oficinas literárias e a profissionalização do autor

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Por Larissa Nakamura

Aproveitando a deixa do último post escrito por Neila, aqui, no blog, vale a pena comentar o artigo publicado recentemente pela Folha de S. Paulo, intitulado “Escritores consagrados ajudam novos talentos com oficinas”. O texto relata casos de bem sucedidos autores da literatura brasileira que ministram oficinas de criação literária para aspirantes a escritor ou mesmo artistas com experiência no mercado das letras. De modo geral, a razão que parece motivar essas pessoas a frequentar tais oficinas é uma busca por novas referências, ideias, temas, discussões sobre arte etc., o que deve variar de acordo com o método escolhido por cada palestrante.

As oficinas literárias apresentam-se como um cenário em plena expansão ao longo dos anos e funcionam não apenas como um ponto de partida para escritores iniciantes, mas também como atividade remunerada ligada à literatura para autores cada vez mais conhecidos pelo público em geral e pela crítica especializada, segundo a reportagem. Como o post de Neila apontava, há casos de sucesso de autores que frequentaram oficinas literárias e aos poucos consolidaram sua carreira e conquistaram prêmios literários. Apesar disso, é importante frisar que, de acordo com o que afirma Trevisan no artigo, “[…] o treinamento não visa, necessariamente, a profissionalização literária.”

Acreditamos que o tema trazido pelo artigo traz à tona alguns dos elementos mais frequentes na profissionalização do escritor e que garantem a manutenção de sua carreira. É possível afirmar que os escritores que ministram as oficinas já têm certa autoridade, reconhecimento e experiência, ao menos no que tange ao circuito das artes. Assim, osworkshops propiciam aos autores uma oportunidade para se articular e circular entre seus pares.

A participação cada vez maior em atividades diversas relacionadas à literatura (como, por exemplo, a oferta de oficinas literárias), incrementa a profissionalização do escritor e amplia sua circulação e atuação no campo literário, além de assegurar um retorno financeiro para além dos acordos contratuais com as editoras para publicação da obra literária.

Noemi Jaffe, Lourenço Mutarelli, Marcelino Freire e João Silvério Trevisan despontam como alguns dos nomes à frente das oficinas. Não deixa de ser curioso observar como muitas vezes o método adotado pelo autor ao ministrar a oficina pode revelar muito do próprio processo de escrita de cada um. Jaffe afirma que “[…] não conseguiria escrever sem elas [as aulas].”, já que, segundo ela: “Os cursos me obrigam a ler tempo todo e buscar fontes novas para os exercícios.”. Já no caso de Mutarelli, a parte inicial de pesquisa (recolhimento de recortes e panfletos, e posterior colagem dos mesmos de forma aleatória) e a consequente produção textual pelos alunos refletem o mesmo método de escrita do autor, que assim pretende montar parte de seu novo romance. Por fim, Trevisan deixa claro que deseja partilhar no seu próximo curso as etapas de criação do romance que está em andamento, fato que pode servir de inspiração para jovens estreantes na literatura.

Apostamos que os cursos de escrita criativa apresentam-se como um forte marcador de algumas das possibilidades existentes de atuação no campo literário para o escritor que deseja solidificar sua carreira. Por fim, pensamos que tais workshops, propiciam ao próprio ministrante e também aos seus alunos a criação de uma rede de sociabilidade, tão necessária para alimentar a cena literária.

Acesse aqui o link para o artigo.

Oficinas de criação literária: esboços de escritor

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Por Neila Brasil

É notável a crescente oferta de oficinas literárias na cena contemporânea brasileira. No Brasil, um dos nomes de destaque é Luiz Antônio de Assis Brasil, que vem ajudando a formar escritores de diferentes gerações. A partir de 1985, Assis Brasil abriu a primeira turma da “Oficina da PUC”, em Porto Alegre, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Letras. Se, no início, as oficinas eram abertas para o público em geral, hoje é preciso candidatar-se a um processo seletivo.

As oficinas ministradas por Assis Brasil têm ganhado notoriedade ao longo desses trinta anos. Escritores como Michel Laub, Amilcar Bettega, Cíntia Moscovich, Daniel Galera, Paulo Scott e Carol Bensimon são alguns exemplos de autores que têm conseguido destaque no cenário nacional e que passaram pela “Oficina da PUC”. Em depoimento ao site ZH Entretenimento sobre o trabalho de Assis Brasil, o escritor Michel Laub afirmou: “Ele foi a pessoa que mais me ajudou no início da carreira. A oficina me tornou um leitor melhor, no mínimo, e portanto um escritor melhor – considerando que escrever é ler o próprio trabalho o tempo todo, julgando o que presta e o que deve ser jogado fora”.

A oficina literária também pode ser entendida como uma espaço de formação da carreira do escritor. Além da muitas oficinas ministradas por autores que também passaram pela experiência de formação das oficinas,  também é possível encontrar oficinas de criação literária on-line. Adriana Lisboa, escritora carioca ofereceu, pela internet, uma dessas oficinas que consistia em encontros semanais virtuais, com duas horas de duração por encontro, durante quatro meses. Nas oficinas são discutidos elementos básicos da escrita de ficção e o resultado desses encontros deu origem ao e-book 14 novos autores brasileiros, lançado pela Mombak Editora.

Na apresentação ao volume, Lisboa observa que “a maior carência de um escritor acho que é a de um par de olhos ou ouvidos com que se possa compartilhar um trabalho e perguntar aquele sincero ‘e então?’ – para em seguida ouvir, com sorte, uma crítica sincera, pormenorizada, construtiva, arguta (embora não necessariamente agradável). O texto sai daí revigorado, livre do abismo do próprio umbigo. O mundo é vasto, ainda que seja uma bolinha de gude”.

As oficinas podem se configurar como sessões conjuntas de análise crítica dos textos contribuindo assim para a formação e o amadurecimento da carreira literária dos escritores, já que muitos escritores contemporâneos confirmam o quanto essas oficinas podem contribuir para a profissionalização. Podemos, então, arriscar dizer que tais espaços são interessantes para o debate do fazer literário e possibilitam compreender o trabalho de outros escritores, seu surgimento e atuação no campo literário.

As muitas vidas de autor

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Por Marília Costa

Isto não é um cachimbo – Perfis literários  é um projeto criado em maio de 2012 por Luiz Nadal, jornalista e pesquisador de literatura contemporânea, que ficcionaliza a vida e obra de escritores da prosa contemporânea, como Ricardo Lísias, Veronica Stigger, Adriana Lisboa, Bernardo Carvalho, Lourenço Mutarelli entre muitos outros. O modo peculiar de narrar os perfis, misturando a função comunicativa da crônica, reportagem, ficção e crítica literária intriga o leitor. Cada texto parece na verdade uma longa entrevista em que Nadal  reúne além de suas próprias impressões como leitor da obra dos autores que ganham perfis literários no site, opiniões que poderiam ser expressas pelos autores retratados.

O nome do site mantido por Nadal é inspirado no quadro do pintor belga René Magritte que retrata um cachimbo e traz a inscrição “Ceci n’est pas une pipe” ou “isto não é um cachimbo”. Assim como a pintura de um cachimbo não é um cachimbo, mas sim uma pintura de um cachimbo, Nadal sugere que os perfis literários que podemos encontrar ali  não têm a pretensão de retratar os autores, mas consistem em representações.

O modo particular de apresentar os autores contemporâneos em Isto não é um cachimbo – Perfis de autor é atrativo devido ao fato de fazê-lo através da própria literatura. O autor deixa de ser apenas o ourives da linguagem e passa a ser também a pedra preciosa modelada, moldada e refinada pelas palavras e jogos linguísticos, constituindo-se como autor e personagem dentro de uma obra.

Esse jogo de identidades cênicas tecido na cadeia narrativa tende a ser sintomático na contemporaneidade, já que muitos autores que se tornam personagens de Nadal apostam, eles mesmos em suas obras, no teatro de suas performances.

O que Luiz Nadal fez não é diferente do que muitos autores vem fazendo para angariar  um espaço no campo literário, que é construir perfis em redes sociais e publicar informações de fórum intimo, criar histórias a respeito da suas próprias vidas que não são necessariamente reais. É um jogo de influências, o personagem empírico fabrica a figura autoral estimulando poses e a criação de mitos. Essa grande valorização da intimidade dos escritores e obsessão pelo vivido podem ser atribuídas ao retorno do autor contrariando o prognóstico de Barthes.