Um passeio no bosque da autoficção

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Por Davi Lara

Quem quer que se aventure no bosque da autoficção, logo vai perceber que ele está longe de ser objeto de consenso crítico. Bem longe disso, a autoficção é um conceito controverso que está marcado pela polêmica desde suas origens. Num post recente aqui do blog, Nilo Caciel comenta e resume, sob a forma de verbete, alguns dos momentos decisivos da história crítica da autoficção, dando uma atenção especial ao seu episódio fundador (para ler o post clique aqui). Como Caciel aponta, o termo ganhou uma fortuna crítica errática, que só cresceu nesses quase quarenta anos de história, sem que, no entanto, o tom polêmico diminuísse.

Em um texto de 2007, o crítico francês Jean-Louis Jeanelle (2014, p. 127) lança mão dessa definição irônica do termo: “a autoficção é uma aventura teórica”, definição cuja ironia não deixa de conter uma verdade. Levando-se em conta as muitas divergências em torno do termo, se pode dizer que o pesquisador ou mesmo o leitor curioso que queira se lançar nessa selva teórica terá seu acesso negado a uma grande extensão do seu território se não souber o francês, idioma no qual é escrita a maioria dos textos sobre o assunto. É nesse contexto que o livro Ensaios sobre a autoficção, organizado por Jovita Maria Gerheim Noronha, surge como um importante empreendimento editorial.

Nessa antologia de ensaios, o leitor brasileiro é apresentado a sete ensaios (e uma entrevista) de teóricos franceses, alguns deles traduzidos pela primeira vez para o português. Se não se pode dizer que os ensaios tratem do tema de maneira exaustiva (o que, ademais, seria impossível), pode-se perceber o esforço da organizadora em disponibilizar textos de modo a dar uma ideia panorâmica da situação do debate crítico em torno da autoficção no país de origem do termo. Em alguns ensaios, os autores discordam entre si, defendendo definições conflitantes, ou usando abordagens distintas. Em outros, os ensaístas se preocupam em fazer um apanhado de outros textos sobre o termo, traçando genealogias teóricas, apontando filiações e discordâncias entre as diversas contribuições críticas.

Assim, o leitor vai tomando contato com as principais questões da autoficção. No parágrafo final do post de Caciel, publicado aqui neste blog, o autor lança uma pergunta: quando falamos em autoficção trata-se de um tipo de narrativa nova ou é, ao contrário, um nome novo para uma prática antiga? Como representante desta última opinião, temos Vicente Colonna, autor da dissertação Autofoction & autres mythomanies littérais, escrita em 1989 sob a orientação de Gérard Genette, e reescrita e publicada em 2004 (o texto do livro é um excerto dessa última versão), onde o autor estabelece uma tipologia do gênero autoficcional que remete a narrativas tão antigas como A divina comédia, de Dante, e os escritos de Luciano de Samósata. Do outro lado desta contenda, está Philippe Gasparini, cujo ensaio “Autoficção é o nome de quê?” parte da hipótese de que a autoficção “se aplica, em primeiro lugar e antes de tudo, a textos literários contemporâneos”, pois essa hipótese lhe “parece ser, ao mesmo tempo, a mais fecunda do ponto de vista da poética e a mais conforme à gênese do conceito de autoficção.” (GASPARINI, 2014, p. 181)

Eu mencionei essa questão, mas poderia mencionar outras, como a que envolve o gênero (autoficção é ou não um gênero?), ou a relativa ao nome próprio do autor (tem que existir a homonímia entre autor, narrador e personagem para ser autoficção?). Retomei a interrogação privilegiada também por Caciel, pois o debate em torno da atualidade do termo autoficção tem uma importância especial para mim, já que, em minha pesquisa, o conceito aparece como uma aposta para a compreensão do tempo presente, o qual, ao meu ver, se deixa observar a partir dos dilemas desse “gênero” (se assim o podemos chamar). Seja como for, qualquer que seja o interesse do pesquisador ou do leitor curioso, esses Ensaios sobre autoficção podem servir como um guia de viagem para quem deseja conhecer mais a história e a conformação da aventura teórica, ainda em curso, da autoficção, sem precisar, para isso, continuar a depender dos textos de segunda mão (resenhas e resumos sobre o termo) e entrar em contato direto com alguns de seus principais textos.

NORONHA, Jovita Maria Gerheim (Org.). Ensaios sobre a autoficção. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. 245 p.

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