Por Nilo Caciel
Na quarta capa do seu livro Fils, lançado em 1977, Serge Doubrovsky propõe o termo autoficção para classificar a sua obra e a define assim: ‘‘Ficção, de acontecimentos e de fatos estritamente reais; por ter-se confiado a linguagem de uma aventura de linguagem, avessa ao bom comportamento, avessa à sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontros, fils de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou de depois da literatura, concreta, como se diz da música. Ou ainda, autoficção, pacientemente onanista, que espera conseguir agora compartilhar seu prazer.’’
Doubrovsky forjou o termo em resposta à ‘‘casa cega’’ presente em O Pacto Autobiográfico (1975) de Philippe Lejeune. No Pacto, Lejeune produz uma tabela, criando um sistema de distinção entre romance e autobiografia, usando como critério a presença ou não da homonímia entre o autor, o narrador e o personagem. Na referida tabela, o teórico deixa em branco uma casa na qual, segundo Lejeune, poderia coexistir a existência da homonímia e a forma ficcional. A casa fica em branco exatamente porque Lejeune afirma que não é capaz de citar sequer um exemplo dessa coexistência. Anos mais tarde, o próprio Doubrovsky declara ter se sentido ‘‘desafiado’’ a preencher essa ausência no esquema proposto por Lejeune.
Doubrovsky, ao tecer análises posteriores ao lançamento de Fils, vai modulando e ampliando sua compreensão do termo autoficção, afirmando que seu livro é produto de um momento histórico que estabeleceu ‘‘um corte epistemológico, ou mesmo ontológico, onde se observou que uma introspecção sincera e rigorosa era uma ilusão’’ (DOUBROVSKY, 2010. p. 122)
Doubrovsky dá maior precisão a essa observação no comentário sobre o tema feito pelo autor em um programa de televisão por ocasião do lançamento de Le Livre brisé:
Quando se escreve uma autobiografia, tenta-se contar a própria história, da origem até o momento em que se está escrevendo, tendo como arquétipo Rousseau. Na autoficção, pode-se fatiar essa história, abordando fases bem diferentes e dando-lhe uma intensidade narrativa de um tipo muito diferente que é a intensidade romanesca. (DOUBROVSKY, 1989. p. 194)
É possível observar, então, que o escritor com o passar do tempo, dá à autoficção uma definição que acolhe um número muito maior de obras, diferente da sua primeira definição, na qual ele parecia se referir ao termo como uma classificação muito específica de seu livro.
O termo rapidamente ganhou uma dimensão teórica. Jacques Lecarme, um dos pioneiros nos estudos relativos à autoficção, analisando o trabalho de Doubrovsky, refere-se à autoficção como uma ‘‘autobiografia desenfreada’’, atribuindo-lhe o caráter de ‘‘exercícios de ambiguidade que dão lugar a uma irredutível ambivalência’’, própria do momento atual. (LECARME, 1993. p. 77).
Mas Vincent Colonna, que ao defender uma tese sob a orientação de Gerard Genette, inseriu definitivamente o conceito na academia, rejeita a hipótese também defendida por Doubrovsky de que a autoficção se restringiria ao contemporâneo.
Seria a autoficção um traço do momento histórico atual ou prática antiga? Apesar do termo hoje já estar presente nas falas de escritores, críticos e acadêmicos, e mesmo ter sido apropriado por outras artes, sua definição continua turva, sem parecer tratar-se de um gênero, nem de um conjunto de textos de uma época específica. Como disse Philippe Gasparini (2009, p. 218), ‘‘palavra-narrativa, palavra-teste, palavra-espelho, que devolve todas as definições que lhe atribuímos’’.
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