Samara Lima

No meu post anterior, comentei que Cadernos de memórias coloniais é escrito em primeira pessoa e tem cunho memorialista. Na obra, somos apresentados à trajetória de infância da narradora-personagem em Moçambique. As recordações mesclam-se com comentários das contingências históricas e sociais. Da mesma forma, o livro se debruça sobre a construção da identidade de Figueiredo, a partir do contato (problemático) com a família, com seu grupo social e a diferença, com os seus questionamentos internos e com o próprio território africano. Ainda que tenha crescido em um ambiente que considerava o negro como um sujeito “abaixo de tudo”, é a partir da relação com o Outro que a narradora busca formar a sua identidade. É certo que é uma identidade maleável, ora construída em oposição ao pai e aos seus pares, ora pela convivência com práticas e discursos racistas. Na narrativa, os discursos são diferenciados a partir da distinção entre “preto” (quando o posicionamento é semelhante ao do pai etc) e “negro” quando a narradora assume seu ponto de vista crítico.
O que a questão da identidade tem a ver com a série de fotos que nos apresentam à Figueiredo criança? Na imagem acima, podemos visualizar a narradora, criança, bem vestida, em um momento de lazer, em algum parque de diversão, olhando fixamente para a câmera. Do mesmo modo, a foto nos impele a observar o menino ao fundo, com uma perna apoiada na outra, atrás das grades, também mirando a objetiva. Nos deparamos com essa foto, que ocupa o centro de uma página inteira, depois de lermos este trecho:
“Quem, numa manhã qualquer, olhou sem filtro, sem defesa ou ataque, os olhos dos negros, enquanto furavam as paredes cruas dos prédios dos brancos, não esquece esse silêncio, esse frio fervente de ódio e miséria suja, dependência e submissão, sobrevivência e conspurcação.
Não havia olhos inocentes.”
Curiosamente, é o olhar da menina que contrasta com o olhar do garoto. Diante da imagem, nos perguntarmos se são realmente “os olhos dos negros” que aparentam olhar sem filtro e furar as paredes. Afinal de contas, é o olhar de Figueiredo com um misto de desprezo e ódio que parece escapar à página, inquietando o leitor e contradizendo o relato. É interessante perceber como o olhar infantil (que contradiz o trecho que lemos) da narradora na foto e o discurso (adulto) do relato embaralham-se. Em entrevista à Rita Veleda Oliveira, a autora afirma que “o caderno é uma narrativa dúplice. Há uma criança que se exprime, mas também há uma mulher adulta: são duas pessoas.”
Nesse jogo de olhares, é como se o olhar maduro da narradora e, em última instância, o olhar da autora, buscasse em retrospectiva compreender as imagens da sua infância: quem é esse “eu” anterior? É Figueiredo, “filha do branco”, que não se separa das condutas racistas do colonizador? Ou a “negrinha loira” que questiona as regras e a partir da negação da figura do pai busca uma socialização com o negro? Ou, ainda, as duas coisas, já que “não havia olhos inocentes”? Dessa forma, poderíamos pensar que a imagem não parece atuar como uma mera confirmação do pacto autobiográfico (entre narrador, personagem e autor), mas sim como um duplo que evidencia “um corpo infantil que é e não é do autor” abrindo-se, assim, à distância entre o sujeito da narração e sujeito da experiência, permitindo, então, um ensaio crítico e distanciado sobre questões de sua própria vida.