Marília Costa
Em minhas leituras recentes tenho me deparado com obras híbridas que misturam comentário sobre a literatura dentro do próprio texto literário, colocando o “eu” no centro da narrativa, protegido pela etiqueta da ficção. Trago como exemplo o livro Retrato desnatural (diários – 2004 a 2007) de Evando Nascimento, publicado em 2008 pela editora Record. A obra testa o limite dos gêneros ao mesclar textos com estrutura poética com outros de caráter ensaístico, narrativas e textos que parecem notas.
A obra, na ficha catalográfica do livro, aparece classificada como ficção. Logo, percebemos nesse empreendimento literário uma tentativa de lançar uma provocação ao conceito de ficção atrelado até então a gêneros como o romance e o conto e que em Retrato desnatural é tensionado para dar conta também de textos poéticos, notas e de uma certa dicção de registro do cotidiano presente na forma do diário.
No capítulo inicial do Retrato desnatural, “escrevendo no escuro”, percebemos o “eu” emergindo através da primeira nota:
“Pois
se tornou
imperativamente necessário
escrever na primeira pessoa, mas
sem ingenuidades, com todos os disfarces
o a(u)tor”
O autor-ator está intrinsecamente relacionado à questão da identidade, entendida como encenação e constituição de uma escrita performática. A primeira pessoa aparece a partir das marcas das leituras, dos estudos, de como o autor foi se constituindo ao longo do tempo, citando teóricos, autores de textos literários, pintores, passeando pelas outras artes. Desse modo, a primeira pessoa aparece sem ingenuidades, ou seja, sem subjetivismo exacerbado como era fácil encontrarmos no romantismo, por exemplo.
Minha inquietação é: será possível aproximar essa atuação do sujeito dentro do texto e amescla dos gêneros ficcionais e não-ficcionais para caracterizar um procedimento que alia crítica e ficção e propõe ler de outra maneira a volta do sujeito nas narrativas atuais e ao mesmo tempo pensar em novas formas de escrever ficção?