Arquivo da tag: performance

Lemebel e a crônica

Lemebel e a crônica - imagemPedro Lemebel.

Por Eder Porto

“Ligada ao tempo (chrónos), ou melhor, ao seu tempo, a crônica o atravessa por ser um registro poético e muitas vezes irônico, através do que se capta o imaginário coletivo em suas manifestações cotidianas. Polimórfica, ela se utiliza afetivamente do diálogo, do monólogo, da alegoria, da confissão, da entrevista, do verso, da resenha, de personalidades reais, de personagens ficcionais…, afastando-se sempre da mera reprodução dos fatos. E, enquanto literatura, ela capta poeticamente o instante, perenizando-o”.

Considerando a descrição de Angélica Soares (2007), podemos considerar a crônica um gênero fronteiriço.:

Em geral, o que se observa é que a crônica se desloca na fronteira do jornalismo estilizado e da literatura referencialista, enraizando o seu discurso na urbanidade moderna. Centra sua força contingente no instante e no fragmento para dar conta de toda a diagramação “periódica” da urbe, em crise com seus significados e carente de novos significantes e possibilidades de representação.

Pedro Lemebel, escritor chileno performativo, chama a maioria de seus escritos de crônica:

“Eu digo crônica por ter que chamar de alguma coisa, talvez porque não queira delimitar ou cercar meus retalhos escriturais com uma receita que imobilize minha pluma ou a assinale uma categoria literária. Posso querer definir o que faço como um caleidoscópio oscilante, onde cabem todos os gêneros ou subgêneros que possibilitem uma estratégia de escrita, como a biografia, a carta, o testemunho, a canção popular, a oralidade, etc. . Acho que escolhi a escrita pelas distintas possibilidades que me oferece de inventar. Para dizer em linguagem travesti, é como ter o guarda-roupa da Lady Die no computador”.

Podemos conectar essa espécie de amorfia que caracteriza a crônica e, mais especificamente, a crônica escrita por Pedro Lemebel com as reflexões empreendidas por Julio Ramos no seu livro Desencuentros de la Modernidad en América Latina. Aí, o crítico observa o contexto de surgimento da crônica moderna e afirma que o gênero estabeleceu novos padrões de criação para Literatura. Na crônica de Lemebel, por exemplo, pode-se observar a justaposição fragmentária dos despojos capitalistas na percepção do caos citadino, tal como realça Ramos em sua argumentação. Nas crônicas de Lemebel, é fácil perceber a presença de personagens empurrados para as margens, que desafiam a ordem estético-moral de uma fantasiosa integridade urbana. Também é possível vislumbrar uma representação da cidade que quer virar pelo avesso a lógica do consumo e do mercado – uma “retórica da vitrine” que insiste em expôr o que não tem valor ou que não é passível de ser exibido, segundo os critérios daquela mesma lógica-, constituindo-se o narrador a partir de uma atitude flaneur e convidando o leitor a olhar Santiago a partir dos seus espectros socialmente obliterados.

Abaixo, segue um trecho traduzido por mim da crônica “La loca del carrito (o el trazo casual de un peregrino frenesí)”. Aí podemos perceber que a maleabilidade do gênero acopla-se ao olhar escrutinador do narrador, atiçando a atenção do leitor:

“Ali, pela rua Lira, Carmen ou Portugal, perto do antes glorioso bairro de prostituição travesti San Camilo, sua silhueta desmantelada desequilibra a lógica do apressado transeunte em hora de almoço. Ou melhor, é um reflexo onde o olhar do bom cidadão desconhece com rubor, na desordem de sua peregrina paródia sexual. A bicha do carrinho conduz o seu bote de supermercado colecionando cacarecos que Santiago dejeta em sua flamante modernidade. Por aí agarra uma boneca sem braço, a veste com ternura, pondo-a em sua barca rodoviária. Por aquí se encanta por trapo desfiado que recicla como lenço de cabeça. Com o paninho amarrado em seu queijo sem barbear, toda uma velhinha camponesa ou uma grotesca Mãe da Praça de Maio, desaparece do fragor do tráfico, deixando seu alucinado delírio como uma estampa irreal que esfumaça entre as buzinas neuróticas do Centro.”

Publicidade