Fragmentando identidades autorais

Por Nivana Silva

Créditos da imagem: Quantum Cloud V – Antony Gormley (1999)

Não é novidade afirmar que uma das marcas vinculada ao nome de Ricardo Lísias diz respeito ao modo como o escritor transita entre a ficção e a realidade. Essa característica é muito recorrente nas obras do paulistano circunscritas sob a chamada autoficção, que, ao trazerem narrativas com personagens homônimos ao autor, além de fatos biográficos, tornam difusas as fronteiras entre o real e o ficcional, como acontece em O céu dos suicidas (2012), Divórcio (2013) e a série de plaquetes Delegado Tobias (2014). Lembremos que essa última, devido às referências mais que literárias, culminou no (ficcional) Inquérito Policial: família Tobias (2016), um livro-objeto, reunindo documentos de uma investigação, sobre o qual fiz um comentário em outro post.

A exposição de Lísias em Delegado Tobias e nos desdobramentos reais que circunstanciaram a obra é um elemento que – ao lado de outros movimentos, calculados ou não, do autor – contribui, de algum modo, para a inscrição e o reconhecimento de seu nome no campo literário, ao mesmo tempo em que favorece a fragmentação da identidade autoral em múltiplas personas e subjetividades. Para pensar a questão, podemos considerar, inicialmente, que um nome de autor está ligado a uma pluralidade de discursos, firmando um gesto signatário ou, nas palavras do professor Leonardo Pinto de Almeida (2008), “o nome do autor é a marca que possibilita unificar, delimitar, referenciar saberes sob a lápide de um território específico: a assinatura”.

Desenrolando um pouco mais, é possível dizer que, na contemporaneidade, esse nome de autor, ao conectar-se a uma pluralidade discursiva, faz emergir uma multiplicidade de facetas e de posições de sujeito que contribuem para liquefazer uma suposta identidade estável por trás de sua assinatura. Ao que parece, os trânsitos dentro e fora do universo literário, sintetizados na performance autoral, corroboram a fragmentação do autor em várias vozes que subjazem a seu nome.

Sendo assim, as obras que embaralham as fronteiras entre o real e a ficção são emblemáticas, pois, performando “eus”, tendem a inflar ainda mais o jogo entre as identidades e a assinatura. Nesse contexto, talvez possamos arriscar a seguinte hipótese: a pulverização e a sobreposição de vozes do autor colaboram para diluir uma pretensa unidade da identidade autoral, apesar de, ao mesmo tempo, alicerçarem o lugar singular da assinatura, imortalizada no gesto de escrita.

Voltando a Delegado Tobias e desdobramentos, nos deparamos com pontos de dissolução da identidade autoral, na medida em que ela se ramifica e revela personas, ora por meio da ficcionalização do “eu”, ora por meio da exposição do escritor, que insere o registro do “real” no texto, mas, simultaneamente, declara o status puramente ficcional da narrativa. A título de exemplo, cabe mencionar a performance do autor/personagem Ricardo Lísias, no booktrailer que divulgou Inquérito policial: família Tobias, declarando “É um texto de ficção […]. Meu, é literatura policial, eu inventei tudo, não é verdade!”.

Nessa manifestação de facetas e vozes, a identidade do autor encontra-se indecidível, dentro e fora da obra. Entretanto, creio que esse movimento de fragmentação e diluição reverte-se na recepção do trabalho, nas especulações críticas sobre ele, nos protocolos de leitura e, desse modo, vai favorecendo a construção da particular (e imortalizada) assinatura do autor. Trata-se, conforme Almeida, de uma marca que unifica, delimita e referencia, fixando, portanto, um nome. Temos, assim, uma lápide que, apesar da superfície fixa, traz, na profundidade, a fluidez da(s) identidade(s) do sujeito que assina.

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