Por Bruno Loureiro
Há pelo menos um ano – ou mesmo um tanto menos que isso, não tenho certeza -, minha compreensão sobre as margens que delimitariam supostas fronteiras dos elementos presentes no contexto literário contemporâneo eram outras completamente diferentes daquelas que vejo hoje; ou pelo menos percebo que tais delimitações duras não condizem com o sentido anteriormente simples e direto de minhas interpretações. Assim, pude observar alguns cantos mais nebulosos, outras reentrâncias e a matéria gasosa que delimita essas fronteiras – observem, então, antes eu mesmo acreditava serem sólidas! -, tudo isso com algumas lentes um tanto opacas, é verdade, e tive a impressão de que na própria ferramenta havia algo de muito desregulado. Mas foi com aquilo mesmo, instrumento o qual ousei chamar microscópio, que pude observar, durante as horas de leitura dedicadas à Estação Atocha, de Ben Lerner, os elementos que gostaria de comentar aqui.
A narrativa, construída a partir de um ponto de vista autorreferencial, acompanha um americano, Adam, que foi contemplado com uma bolsa de estudos de um ano, durante o qual escreveria um poema sobre a Literatura e a Guerra Civil espanholas. Acontece que o personagem desconhece qualquer coisa relacionada à guerra e nem mesmo pode se reconhecer como especialista da literatura espanhola. O período dessa vida que acompanhamos é movimentado por automedicação, uso de haxixe e pelo relato, às vezes, cômico, das situações nas quais se vê envolvido o protagonista por não conseguir entender o que de fato está sendo falado ao seu redor, pois o próprio conhecimento do idioma é falho.
Durante a narrativa, o elemento autorreferencial alimenta a ficção. Muitas são as semelhanças entre a vida do autor e de seu personagem e a ambiguidade entre autor e personagem confirmam o toque autoficcional. É uma jogada de vai e vem constante onde, se num momento, as questões reais se mesclam à ficção e afirmam sua autoridade sobre os elementos supostamente ficcionais – nomes de amigos em comum, eventos cotidianos da viagem que ambos (personagem e autor) fizeram, ou mesmo o lugar onde nasceram e a profissão dos pais – como experiências biografadas, em outro momento, a mera biografia é negada. O primeiro indício dessa negação que também constitui uma tensão é o que dá a identidade inicial do personagem em seu ambiente ficcional – seu cartão de visita – pois o nome do protagonista é Adam.
Apesar da negação da homonímia entre personagem e autor, essa mescla constante do ser e não ser é uma das marcas que direcionam a uma compreensão e interpretação autoficcional da narrativa – interpretação cuja a definição não é “dura” -, “a possibilidade de apagar, ao menos embaralhar, os limites entre uma verdade de si e a ficção… a leitura simultaneamente referencial e ficcional de um mesmo texto”, segundo Luciana Hidalgo. Um contato íntimo distanciado; a ficção e a realidade
diluídas num único fluido, uma mescla na qual a separação dos elementos reais e ficcionais dificilmente podem ser separados: ficção e evento biografado. Esse movimento de vai e vem brinca com a ideia de texto biográfico e torna imprecisa a definição do texto como puramente ficcional.
Assim, ao optar por uma narração em primeira pessoa, na qual se põe nos olhos do personagem, Lerner em momento nenhum assume a narrativa como um texto autobiográfico, pelo menos de forma direta. Pelo contrário, os aspectos autobiográficos são sempre contextualmente suspeitos, ainda que se revelem com frequência considerável.
Em seu texto Autoficção e literatura contemporânea, Azevedo relaciona o advento da chegada dos blogs com o artificio autoficcional, “como o mais novo dispositivo propulsor de artificialismos que investe na espetacularização do sujeito”, onde os autores poderiam criar personas próprias, “com subjetividades construídas para serem apenas vitrines de exposição de um eu produzido artificialmente, uma identidade fake”. Não existe aí uma relação direta com a ficção de Ben Lerner. Há porém um contexto muito interessante internamente construído na obra do autor americano, onde o personagem reconstrói a própria personalidade, por estar num contexto onde não é conhecido e suas poucas relações serem, simplesmente, superficiais – não uma superficialidade por não haver de fato uma relação, mas por serem relações recentes. Ele se “autoficcionaliza”, cria uma ficção de si mesmo, torna-se outro. Enquanto nos blogs, a persona fake é criada num ambiente virtual e é oferecida como o real, na narrativa, o personagem (Lerner/Adam) tenta inventar um outro de si mesmo, já que está num lugar onde não o conhecem e ele poderia ser quem quisesse: na Espanha, na escrita do romance.
Nesse sentido, a vida é ficcional, é uma vida criada para existir naquele contexto (durante a estada de Adam por um ano na Espanha, durante a leitura do romance de Lerner), onde Lerner/Adam se põem como espectadores do próprio teatro.
Não existe uma grande transformação no personagem de Estação Atocha. Ele permanece muito próximo do que era quando disse a palavra que abre o romance, mas o que importa talvez não seja sua transformação, sua educação sentimental, mas simplesmente o desvelamento do trabalho de tornar-se autor de si mesmo que deriva numa dupla entrada de leitura do texto: biográfico e ficcional. É essa estranheza que me faz perguntar a mim mesmo a respeito dessa leitura e, também, a respeito de algumas outras narrativas contemporâneas: o que é, então, este romance?
Parabéns pelo texto, Bruno. Não conhecia esse autor, Ben Lerner, que me foi apresentado pelo seu post. Logo, não posso falar sobre “Estação Atocha” senão em termos de curiosidade, e uma das observações que mais incitou a minha curiosidade foi o trecho, no início do último parágrafo, em que você diz que o protagonista não passa por nenhuma transformação significativa ao longo da narrativa. Esse é um dado bastante significativo em se tratando de um romance de formação, que, ainda por cima, flerta com a autoficção. Me parece que, dentro da autoficção, existe uma linha de força (da qual fazem parte Javier Cercas e Vila-Matas, os dois autores que eu estudo) que tende a negar o padrão clássico das autobiografias de fazer um autorretrato edificante. Eu me perguntao quais a consequências desse desvio não só para a representação do eu, como para a prática mesma da literatura, posto que esse eu que se retrata, na autoficção, tende a se identificar como um autor (ou simplesmente um escritor) e colocar em cena sua própria ética de escritura.