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Questões teóricas do teatro contemporâneo

Marília Costa

Créditos da imagem: “69 Cômodos”-  grupo Teatro ao Redor. Foto: Thaís Grechi

O teatro aristotélico valorizava o texto em detrimento da encenação. Eis aí o início da tradição de desvalorização do espetáculo na qual teóricos franceses se apoiaram durante muito tempo para afirmar a valorização do texto dramático. Muitos representantes do drama absoluto defendem a imprescindibilidade do diálogo, a estrutura encadeada da fábula e a supervalorização da unidade de tempo. Como analisa Peter Szondi, em seu livro Teoria do drama moderno, com a crise da burguesia e a epicização do drama, os preceitos dramáticos foram reelaborados. Contudo, o teórico alemão Hans-Thies Lehmann acredita que mesmo o afrouxamento dos princípios aristotélicos que vem sendo testado pelo teatro não é suficiente para dar conta das produções contemporâneas. O motivo, segundo ele, é que o teatro épico e o teatro do pós-guerra ainda são baseados no texto e na representação mesmo que com algumas alterações do modelo da antiguidade clássica.

Essa questão interessa a minha pesquisa porque gostaria de aprofundar a discussão sobre o modo como as experimentações contemporâneas como o teatro documental ou o biodrama lidam com a relação entre o espetáculo e o texto.

“O teatro do absurdo, assim como o de Brecht, pertence à tradição dramática; alguns de seus textos ultrapassam as fronteiras da lógica dramática e narrativa, mas o passo para o teatro pós-dramático só é dado quando os recursos teatrais se encontram para além da linguagem com o mesmo peso do texto e podendo ser sistematicamente pensados também sem ele”, afirma Lehmann.

Seu argumento principal é que o teatro épico e o teatro do pós-guerra estão alicerçados nos princípios dramáticos aristotélicos que, mesmo reelaborados, continuam fiéis à  representação e ao que podemos chamar de textocentrismo. Na sua opinião, as produções contemporâneas já podem ser consideradas pós-dramáticas. De acordo com o teórico alemão, o surgimento do cinema será um dos fatores decisivos para a crise na linguagem teatral, pois ampliou as possibilidades de experimentação no palco e  impulsionou a valorização da cena em detrimento do texto na contemporaneidade.

O texto pós-dramático pretende eliminar do texto os princípios de causalidade e ordem. “O teatro está e estava procurando discursos liberados tanto quanto possível das restrições de objetivo (telos), hierarquia e lógica causal”, afirma Lehmann. No livro Teatro pós-dramático,  Lehmann privilegia a oralidade, o texto sendo falado, e não seu registro como texto. Nesse sentido, a fala, o som, o silêncio, a amplitude e o volume são fundamentais na construção dos espetáculos. Na visão do teórico, a íntima relação que o teatro estabelece com a performance e com as artes visuais, é um fator que corrobora para a necessidade de o texto levar em consideração a dimensão visual do espetáculo. Para isso, ele faz referência ao conceito de paisagem textual, comentando a Peça Paisagem da dramaturga Gertrude Stein. Nessa lógica, embora Lehmann considere o texto como um dos elementos importantes da dramaturgia, ele prioriza muito mais o uso do texto a serviço da encenação do que a análise do texto cênico em si.

Mas será possível chamar de teatro apenas a representação cênica? A pesquisadora brasileira Rosângela Patriota critica Lehmann e sua teoria ao comentar que nem toda produção contemporânea abre mão do texto e destaca ainda que é a relação entre a análise do espetáculo e do texto que pode contribuir para um aprofundamento das discussões sobre o teatro como gênero.  A partir disso, um dos desafios teóricos dos estudos acerca do teatro contemporâneo, e de minha própria investigação, é compreender como o texto se relaciona com a cena, investigando como a escritura pode reverberar nas encenações e como as cenas podem impactar a relação com o texto.