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Annie Ernaux, Os anos, e a fotografia “anti-histórica”

Samara Lima

Créditos da imagem: Luigi Guirri, Parigi (Paris), 1980

O filósofo tcheco Vilém Flusser sugere que a era da fotografia marcou uma virada decisiva na maneira como entendemos nossa relação com o mundo que nos rodeia, com os processos históricos e a estrutura da nossa cultura.

Em “Photography and History”, traçando uma teoria da imagem que se distingue do pensamento da escrita, o autor considera a fotografia como a primeira entre as imagens pós-históricas. O fato é que, enquanto o texto desenvolve suas cenas em processos e ordenam as coisas em cadeias de causalidade, as fotografias são barragens colocadas no caminho do fluxo da História. Em outras palavras: as imagens fazem parte de uma tradição de pensamento que se opõe às restrições do texto escrito, dos seus tempos, da sua natureza – movimento para a frente e sua forma de leitura a partir da esquerda para a direita.

Aí, Flusser aponta para o perigo de um analfabetismo visual que toma a imagem como cópia da realidade, defendendo uma consciência constante da disjunção entre essas duas instâncias. Ele também comenta a maneira pela qual, no tempo congelado, a foto torna-se atemporal, podendo até oferecer uma forma alternativa àquela aparentemente imparável do curso linear dos acontecimentos.

É bem verdade que muitas fotografias são alinhadas ordenadamente para fornecer um relato e que são diversas as exigências feitas para que elas sirvam ao texto escrito, sendo geralmente interpretadas como ilustrativas ou documentos probatórios. Entretanto, de acordo com o teórico, essas imagens acabam por flutuar livres dessas imposições, pois elas não pertencem nem a um tempo nem a um lugar, mas a uma forma de imaginar e fazer o mundo como uma cena, uma gama de diferentes texturas, memórias e fantasias, que resistem às classificações temporais, produzindo inclusive contradição em vez de evidência.

A leitura desse texto me chamou atenção, pois um dos livros que investigo na minha pesquisa de mestrado é Os anos (2022), de Annie Ernaux.

Já comentei em posts anteriores que a narrativa abarca 60 anos de existência da autora, na tentativa de encontrar a memória coletiva a partir de uma memória individual, unindo a perspectiva de Ernaux, de uma geração (os que cresceram após a Segunda Guerra Mundial) e da nação francesa. O curioso é que essa “autobiografia impessoal”, como a própria escritora classificou a obra, e que quer apresentar a dimensão vivida da História, é construída por meio de descrições de fotografias pessoais de diferentes épocas.

Com a leitura do texto de Flusser, algumas perguntas surgiram para mim: será que o manejo das fotos por parte da autora, ao passo que parece iluminar a História, também  a interrompe? Será que ao reconstruir o tempo comum de toda uma geração e nação, apoiada pelo espaço íntimo desta mulher e por imagens de álbuns familiares, ela também cria uma história paralela que incorpora e transcende o processo histórico que narra? Ou, ainda, de que maneira o caráter anti-histórico da fotografia cria uma tensão com a linearidade da palavra escrita e complexifica o próprio fluxo da História que nos é apresentado?