Autoficção e desdramatização

Marília Costa

Créditos da imagem: Cena do espetáculo Conversas com o pai (2014). 

Na dramaturgia brasileira contemporânea, nota-se maior interesse e valorização de dados biográficos na elaboração da cena teatral. As experiências pessoais dos atores/diretores servem como mote para os enredos ficcionalizados no palco, que geralmente são compostos por elementos que enfatizam a mistura dos gêneros, dos recursos midiáticos e do metateatro. A partir dessa perspectiva, o espetáculo Conversas com meu pai (2014) é interessante para pensar algumas das estratégias de desdramatização propostas por Jean-Pierre Sarrazac em “O drama não será representado”.

“O drama não será representado” é o primeiro capítulo do livro Poética do drama moderno do dramaturgo e pesquisador francês Jean-Pierre Sarrazac. O ponto de partida da discussão proposta por Sarrazac é a peça “Seis personagens à procura de um autor” do dramaturgo, poeta e romancista italiano Luigi Pirandello. Dentro do contexto sócio-histórico em que a peça é escrita (em 1921, início do século XX), a peça é considerada inovadora por apresentar mecanismos do metateatro, já que a peça comenta o teatro dentro do teatro provocando uma reflexão sobre os limites da representação.

Sarrazac não acredita no fim do drama e rechaça a nomenclatura pós-dramático para caracterizar produções contemporâneas. O teórico reconhece uma alteração na forma dramática que prefere chamar de desdramatização.  Será que poderíamos aproveitar as reflexões de Sarrazac para a análise do espetáculo Conversas com meu pai (2014)? 

O monólogo Conversas com meu pai estreou em 2014 no SESC Copacabana no Rio de Janeiro e foi concebido com base no material (bilhetes, diários, vídeos, fotos, áudios etc.) que a atriz Janaina Leite acumulou nos sete anos em que a comunicação com o pai passou a ser silenciosa. Por conta de um câncer na garganta, o pai perdeu a capacidade de falar e os dois passaram a se comunicar por meio de frases escritas em pequenos pedaços de papéis que foram guardados por Janaina em uma caixa de sapato. Um ano depois do diagnóstico do pai, Janaina, por conta de uma doença, precisou submeter-se a uma operação que teve como consequência a perda auditiva. No início da peça, a personagem revela a existência de um segredo, que no decorrer das cenas o espectador descobre tratar-se de um possível incesto, acontecimento que todo o tempo transita entre a memória e a imaginação de Janaina, dúvida que permanece até o final da peça sem resolução, deixando a plateia pairando sobre a incerteza, o real e o imaginário.

No drama de Pirandello, as personagens à procura de um autor surgem do fundo da plateia em direção ao palco, mas os espaços não chegam a se confundir. Em Conversas com meu pai, o recurso é mais extremo, a peça já começa fora do espaço cênico tradicional, no hall do teatro, fazendo parecer que aquele ambiente e o público já estão engendrados como parte da convenção teatral. A personagem se comunica diretamente com o público, em um gesto de quebra da quarta parede, mas que nesse monólogo vai além, colocando a plateia como interlocutor e parte da cena, sentada em círculo ao redor da atriz. Nesse momento, é explorado um dos temas centrais do espetáculo: o silêncio, que se instaura a partir dos problemas de saúde do pai e da filha. Paradoxalmente, é quando ele perde a fala e ela perde a audição que os dois, enfim, começam a se comunicar com profundidade.

Em cotejo com Seis personagens à procura de autor, a peça Conversas com meu pai também promove rupturas na fábula. A palavra fábula tem origem latina e na concepção tradicional corresponde tanto ao material anterior à composição da peça, o mito (o tema do qual a peça vai tratar), quanto à estrutura narrativa que o autor vai utilizar (a forma como ela é escrita). Brecht defendeu uma ruptura da ideia de que as ações tinham que ter uma ordem cronológica e causal como preconizou Aristóteles. Ou como afirma Sarrazac: “A peça não é mais esse organismo do qual a fábula seria a ‘alma’, e que sempre avançaria conforme um processo linear definido por um começo, um meio e um fim”. 

Em “Seis personagens à procura de um autor” percebe-se a desdramatização através da ruptura da fábula, do texto estruturado em ações divididas em atos e cenas. A nota de Pirandello que abre a peça aponta para isso: “A comédia não tem atos nem cenas”. 

Também em Conversas com meu pai percebe-se a ruptura na fábula, na forma como a peça é escrita e encenada. A estrutura elaborada por Aristóteles – exposição, aumento da tensão, crise, nó, catástrofe e desenlace – é desconsiderada, a história começa a ser encenada em um movimento “de trás para diante”. Além disso, a atriz instrui o público a ir para outro ambiente no qual a outra cena é iniciada.

Essa foi a terceira versão da peça. Essa aqui, que está terminando agora. E então eu levanto e saio daqui. Vocês vão para a outra sala. Vocês também vão para a outra sala comigo, é para isso ser feito, agora, porque existe a outra versão que eu criei. Existe a segunda versão. Eu estou mostrando de trás para diante.

Na outra sala (terceiro espaço cênico, considerando o hall como o primeiro e a sala anterior como o segundo), o cenário é composto por uma piscina de plástico, plantas, um microfone, uma mesa, cadeiras de praia, uma gaiola e uma série de objetos pessoais da atriz, na parede, uma foto 3×4 ampliada. Além disso, imagens documentais aleatórias são transmitidas em um telão durante toda a cena: “o pai – e uma mulher – a filha -, em silêncio, pescam, close nas mãos do homem que escreve pequenos bilhetes, close nos olhos da mulher, o rio, uma casa no meio da floresta, um peixe sendo aberto com as vísceras expostas, o pai e a filha, em silêncio, dividindo uma cerveja, etc, etc”.

A partir dos elementos mencionados, percebe-se no espetáculo Conversas com meu pai um investimento no procedimento autoficcional pela maneira como os dados biográficos são mobilizados na cena teatral, o que implica em uma mudança formal, que segundo Sarrazac, pode-se chamar de desdramatização. A ambiguidade entre vida e ficção faz parecer que o palco é uma reprodução da casa do pai da atriz, o que é acentuado pelos recursos cênicos: uma foto gigante na parede, as imagens projetadas no telão, os objetos pessoais que compõem o cenário. Nessa perspectiva, pode-se identificar nesse drama a “convergência de distintos gêneros, diversificação das formas de autorrepresentação, problematização da dualidade factual-ficcional, inclusão de novos suportes e mídias” como afirmou Stelzer ao buscar uma caracterização para peças teatrais autoficcionais. 

Publicidade

4 Respostas para “Autoficção e desdramatização

  1. Michel Silva Guimarães

    Marília, parabéns pelo seu texto. Em termos aristotélicos, está maravilhosa a ordenação das matérias. Vou levar seu ensaio como modelo para minhas aulas de Pesquisa em Artes Cênicas. Aguardo ansioso uma nova postagem com uma articulação maior com Stelzer, você manteve a tensão e a atenção do leitor, rsrsrs.
    Compartilho com você um link pra um pdf que fiz do “O Futuro do Drama”, do Sarrazac. É o livro onde ele estreia as teorias dele, hoje ampliadas e exploradas no “Poética do drama moderno”. Compartilho porque é uma edição portuguesa, talvez você ainda não a tenha.
    https://www.dropbox.com/s/10rjucyx18r4tng/SARRAZAC%2C%20Jean-Pierre.%20O%20futuro%20do%20drama.pdf?dl=0
    Foi uma alegria ler seu texto e te descobrir como interlocutora.
    Abraços virtuais!!!

    • Michel, obrigada pela leitura, pelo comentário e pelo PDF. Estou muito feliz em ter você como interlocutor. Por favor, entre em contato com Luciene, ela sente muito a sua falta. Abraços!!

  2. Pingback: A autoficção e o teatro | Leituras contemporâneas - Narrativas do Século XXI

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s