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Como nascem as formas: H of H Playbook de Anne Carson

Uriel Lerner

“Os fragmentos escondem tanto quanto revelam”, observou Anne Carson em seu livro Autobiografia do Vermelho. Os livros da autora canadense são difíceis de categorizar. Quando se acha que existem argumentos suficientes para justificar encaixá-los em um gênero literário, encontra-se algo que muda tudo de lugar. Poesia encontra prosa, que encontra ensaio, que encontra tradução. Em H of H há o encontro com uma espécie de diário do autor, diário do livro em si e de sua produção. Playbook, que acompanha o título, pode ser lido como um jogo de palavras: “Livro da (ou “de”) peça”, ao traduzir cada palavra sozinha, ou “manual de instruções”, um guia que orienta uma conduta futura. H of H Playbook é, então, uma espécie de pré-livro ao mesmo tempo que é a obra completa.

Lançado em 2021, H of H Playbook é a versão-tradução da peça trágica de Héracles, do grego Eurípedes. A narrativa contemporânea de Carson, além de ser uma tradução do mito, é também uma exibição do processo de criar um mito, criar uma história. Em H of H, o “manual de instruções” do autor é a experiência visual e sensorial que compõe a narrativa. Trata-se de um livro que exibe seu processo criativo, suas inspirações e abstrações, dando oportunidade ao leitor de acompanhar aquilo que comumente não seria exposto, e que permanece como uma espécie de não obra.

Ao folhear as páginas da publicação, o leitor fica fascinado pela maneira de escrever de Carson e por sua coragem para brincar com tudo o que é possível dentro da página. É diferente, é misterioso, até estranho: um livro com páginas vazias, algumas cortadas ao meio, ilustrações dividindo espaço com texto escrito; fragmentos de texto colados à página, ora apenas uma frase, ora parágrafos inteiros ou textos arranjados em formatações diferentes como tópicos e enumerações. Assim, a forma molda fisicamente a experiência de leitura. Obriga o leitor à pausa ou à pressa, reforça o mistério ao ditar seu ritmo e dar vazão para a abstração poética. O texto em si é fracionado para flutuar pelas páginas, cada fragmento cortado e colado manualmente. As ilustrações são, quase todas, feitas sob o mesmo esquema de cor e material, e revelam os processos individuais de Carson ao pensar sobre sua obra e a história que quer contar, ao pensar sua subjetividade e também a dos personagens em sua narrativa.

É como uma instalação artística, ao mesmo tempo que exibe o processo de pré-escrita do livro em si. Entre pedaços de textos colados à página e ilustrações à mão, a edição final também é o seu “draft”, seu rascunho, exposto de maneira crua: como se as páginas houvessem sido montadas manualmente, passo por passo em colagem. Frases são riscadas e colocadas em outro lugar, mas não desaparecem – o processo de edição permanece exposto. As canetas que marcaram o rascunho também marcam, permanentemente, o resultado final. A tinta que sangra no lado oposto do papel também está presente na obra final, porque também constitui a obra.

O anacronismo presente nas obras de Anne Carson não só permite que o contemporâneo, o moderno e a antiguidade se mesclem dentro da narrativa – onde personagens clássicos como Gerião leem Heidegger (“Autobiografia do Vermelho”), trailers sejam possíveis na antiga Atenas (H of H Playbook), e cenários sejam compostos por sorveterias, vulcões, GPS  – como também é responsável pela pouca importância que Carson dá à formalidade e sobriedade do classicismo, sem deixar de lado a erudição.

As noções de “forma” que Carson abandona e reinventa em seus livros, a maneira como os constrói e como escreve suas narrativas perpassam as noções de “fronteiras” conceituais, fronteiras de tradução, da ficção e não-ficção, da própria criação literária. Ao mesclar múltiplos gêneros literários, texto e ilustração, colagem e narrativa trágica, ensaio e ficção, prosa e poesia, e ao abrir as portas para que o leitor encontre o interior do processo de criação em si, Carson não parece respeitar muito o que é ou deve ser a literatura e por isso mesmo a reinventa.