Arquivo do autor:Samara Lima

O retorno do autor e a volta à biografia

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Sally Mann, “A Thousand Crossings,” “The Turn,” 2005, Larry Mann, the photographer’s husband, is in the foreground.

No post anterior, comentei um pouco a respeito da minha experiência no estágio docente que estou realizando neste semestre. Um dos aspectos que nos propomos a abordar nas aulas foi a conexão entre a maior incidência das escritas de si no presente e a transformação da noção de sujeito.

Klinger propõe um “retorno” do autor, figura que havia sido sepultada no contexto estruturalista. Como se sabe, Barthes foi o grande nome desse momento. Em “A morte do autor”, Barthes adere à tendência de recalcar o autor para valorizar o leitor e a linguagem, rechaçando a figura do autor empírico, suas manifestações sobre a vida, sobre os entornos da obra, da “vida de escritor”. Assim, a rejeição à existência biográfica do autor, a suas “opiniões” sobre a própria obra, também colocava de uma vez por todas, assim se desejava, uma pá de cal na possibilidade de que o autor atuasse como uma espécie de farol privilegiado para a “decifração do texto”.

Contudo, Barthes revisa essa proposição em alguns de seus textos posteriores. É no segundo curso de A preparação do romance, após a publicação de Roland Barthes por Roland Barthes, que Barthes dá corpo ao retorno do autor. Já aí, nessa espécie de autobiografia ensaístico-romanesca, o autor fala de si e tece teorias a partir de diversas formas textuais (fragmentos, fotografias, episódios, reflexões…) para declarar: “Tudo isto deve ser considerado como dito por uma personagem de romance”.

Mas é nas notas de preparação do curso que Barthes se mostra mais interessado em ler a vida do que a obra de alguns escritores, pois está mais envolvido em compreender os hábitos e condições necessárias para a rotina de escrita, recuperar os “planos de vida” que os grandes escritores, como Flaubert e Proust, traçaram enquanto estavam escrevendo. Com essa junção entre vida e obra, Barthes deseja uma nova prática de escrita, uma Vita Nova. Nesse sentido, o “retorno ao autor” é uma “volta à biografia” e a preparação é o laboratório que gesta uma nova forma que quer explorar uma espécie de “nebulosa biográfica”.

Ao anunciar que talvez já fosse possível observar uma mudança em movimento (em si mesmo? em seu próprio presente?), Barthes diz “ver um pouco como certa transformação do Biográfico está em vias de intervir”.

Sabemos que o desejo de escrever uma nova forma (de escrita e de vida), o romance que prepara durante o curso, não se concretizou. Seria possível pensar que Barthes, apesar de seu desejo, luta ainda contra uma interdição contra o retorno do autor, do sujeito, da vida? E se for assim, poderíamos pensar que o movimento de transformação que Barthes vislumbrou em meio às suas considerações sobre a preparação do romance que desejava escrever, ou seja “certa transformação do biográfico”, encontra seu momento propício agora, no início do século XXI?

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Um projeto e um olhar sobre Annie Ernaux e sua escrita “foto-sociobiográfica”

Samara Lima

Créditos da imagem: Sophie Calle. Foto: Jean-Baptiste Mondino

Em agosto deste ano, submeti o relatório final da minha última pesquisa no âmbito da iniciação científica, cujo título era “A literatura fora de si e a expansão dos campos das práticas artísticas contemporâneas”. Um dos investimentos teóricos da pesquisa consistia em refletir sobre a expansão das artes para estudar como a literatura está cada vez mais infiltrando-se em outros campos, inserindo em meio ao texto elementos “estranhos”, tornando possível identificar o que poderíamos chamar de uma “saída da literatura”. Para isso, selecionei a obra Os amantes, de Amitava Kumar, na tentativa de analisar como as fotos documentais estão presentes no enredo (auto)ficcional. Em outras palavras: se ainda estão inseridas no discurso da documentação ou se transcendem a noção da foto como ferramenta de confirmação do relato.

Desde então, tenho pensado em realizar uma pós-graduação no programa de Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia a fim de expandir minhas reflexões sobre a relação entre narrativa e imagem fotográfica nas produções do presente, em especial, nas obras L’usage de la photo (O uso da fotografia), co-escrito com o fotógrafo e ex-companheiro da autora Marc Marie, e Os anos da ganhadora do Nobel de Literatura em 2022, Annie Ernaux.

Em Depois da fotografia: uma literatura fora de si, Natalia Brizuela busca pensar o cruzamento entre a prática literária e as outras artes, como a imagem fotográfica. A autora aponta para o esfacelamento das fronteiras entre as diferentes linguagens e como os limites entre elas estão cada vez mais porosos, caracterizando-se como “um espaço e momento sempre de contágio”. A partir de análise de obras de autores latino-americanos como, por exemplo, Mario Bellatin, Nuno Ramos e Juan Rulfo, a crítica argentina analisa “alguns deslocamentos e metamorfoses nessa atividade da arte que chamamos literatura” e como a fotografia aparece em meio à escrita.

Segundo a autora, o cruzamento entre as linguagens pode acontecer por meio da inclusão de fotos em obras literárias ou como paradigma de uma nova sintaxe e de uma nova literatura utilizando certas características do dispositivo fotográfico – como a indexicalidade, o corte, o ponto de vista, o pôr em cena, a dupla temporalidade (passado-presente/o que foi – o agora), o caráter documental, sua função mnemônica, o ser uma mensagem sem código.

Em L’usage de la photo, um projeto íntimo do casal que consistia em fotografar objetos e escrever depois de fazer amor, as diversas imagens da vida cotidiana são reproduzidas em meio à narrativa e parecem manter um diálogo com o texto. Já em Os anos, tendo como norte fotos e memórias deixadas por acontecimentos, a autora evoca o período pós-guerra até os anos 2000, na tentativa de reconstruir os valores e contradições de sua vida, de sua família e de sua sociedade. Aí, o enredo, a sintaxe e a forma parecem guiar-se pelas fotos, ainda que nenhuma imagem esteja materialmente no livro.

É pensando nessas questões que eu gostaria de estudar a relação entre foto e texto na produção de Annie Ernaux. Mas também em como o uso da imagem visual como suporte ou ponto de ancoragem da história parece corresponder ao desenvolvimento de um projeto estético bastante singular por parte da autora, o qual se baseia na recusa da ficção e na tentativa de desenvolver uma “autosociobiografia”.

Frantumaglia, a crítica e Elena Ferrante

Allana Santana

Créditos da imagem:  Profane Self-Portrait, Luisa Prado

Em minha investigação inicial sobre a narrativa de Ferrante, percebi um procedimento bastante curioso: a maior parte da produção crítica que consultei parece recorrer aos termos utilizados na própria produção da autora italiana – como Frantumaglia e Smarginatura (desmarginação) – como elementos de compreensão do universo romanesco de Ferrante.

Em Frantumaglia, obra que reúne entrevistas e correspondências e outros textos  de não-ficção publicados por Ferrante, temos o seguinte trecho: “Minha intervenção acontecerá apenas através da escrita, mas a tendência é que eu limite até isso ao mínimo indispensável”. Além disso, ainda menciona o seguinte: “Acredito que, após terem sido escritos, os livros não precisam dos autores para nada”.

Essa movimentação da crítica na direção das pistas deixadas por Ferrante em seu texto não ficcional parece entrar em conflito com o que é expresso em Frantumaglia como um projeto da autora, cuja evidência maior é a insistência em manter-se no anonimato, valendo-se do pseudônimo.

Esse movimento feito pela recepção de Ferrante não deixa de evidenciar a importância da figura da autora, ainda que essa ausência se configure como um jogo de sombras, já que Ferrante se manifesta apenas por meio de sua produção escrita, ficcional ou não, rejeitando de forma assertiva chamar a atenção para sua atuação fora da cena da escrita, mas sugerindo, nessa mesma cena, a centralidade de termos como Smarginatura e Frantumaglia para seu projeto de criação.

Duas coisas me inquietam: a primeira diz respeito à autoridade conferida pela crítica à palavra da autora ao fazer dos termos sugeridos por ela, chaves de leituras centrais às obras ficcionais, acentuando assim um paradoxo, já que a própria Ferrante se desdobra por apagar os rastros de uma autoria “forte”,  negando-se a revelar seu nome verdadeiro. Isso também circunscreve o movimento crítico a um tipo de ouroboros interpretativo, constantemente alimentado a partir de novos textos e novas pistas produzidas pela própria intervenção de Ferrante.

Como seria possível, então, fugir a essa armadilha?

A outra inquietação, tem a ver com o fato de que um veio interpretativo forte da obra da autoria italiana está relacionado à discussão do tratamento do feminino em suas obras e de que boa parte de sua recepção crítica é feita também por mulheres. Entretanto, podemos afiirmar que, pelo menos no âmbito americano, o movimento inicial para a legitimação de sua carreira como autora se deve à publicação de um texto crítico pelo americano James Wood, chamado Women on the Verge. Mas a própria Ferrante questiona esse modo de leitura em um texto escrito para sua coluna no The Guardian: “a minha escrita é boa, ou é boa para uma mulher?” Essa também me parece uma questão interessante a ser discutida pela fortuna crítica.

Embora a pesquisa de mestrado esteja só começando, perceber como se dão as relações entre a crítica e a autoria está se tornando uma questão interessante para pensar a produção de Elena Ferrante.

“O homossexual como perseguido pela positividade do HIV mesmo quando se encontra negativado”

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Alejandro Kuropatwa, Untitled, Cóctel series (1996)

A associação entre a epidemia emergente na década de 1980 e os homens gays foi reforçada por diversos setores da sociedade, inclusive por profissionais do campo biomédico (e ainda está presente hoje, infelizmente). O avanço da epidemia fora dos grupos considerados de “risco” fez com que essa associação perdesse força e a noção de comportamento de risco se tornasse o fator preponderante para refletir sobre a questão do HIV/aids.

Ainda assim, homens gays têm sido o principal alvo das representações artísticas quando a temática do HIV/aids é abordada. Mesmo diante de um perfil epidemiológico diverso, literatura, cinema e mídia ainda mantêm, mesmo que de forma furtiva, essa associação entre a epidemia e determinado grupo social. Parte do interesse de minha pesquisa está ligado à exploração deste cenário e a uma situação narrativa recorrente: a ideia da ameaça da infecção por HIV como uma espécie de sombra que paira sobre os sujeitos homossexuais.

Em Você nunca fez nada errado, um relato autobiográfico publicado em 2018, Felipe Cruz refere-se à forma como sua família encararia sua sorologia positiva para HIV como “uma tragédia: a confirmação do destino”. Segundo o narrador, há dois motivos para isso. O primeiro está na identificação física e comportamental do protagonista com um tio morto ainda jovem em decorrência de doenças oportunistas associadas à aids. O outro motivo estaria na orientação sexual, que representaria condição prévia para a confirmação da presença do vírus, “o encontro inevitável com o destino”. A referência à tragédia clássica, pensada pelos primeiros filósofos gregos, acentua ainda a ideia do inescapável.

A frase que dá título a este texto é retirada do romance O complexo melancólico publicado em 2019 pelo escritor carioca Guido Arosa. A sentença expressa uma preocupação recorrente de muitos sujeitos situados na(s) experiência(s) da homossexualidade: a iminência do diagnóstico positivo para HIV. No romance de Guido Arosa, a ideia da inevitabilidade do contágio aparece em diversos momentos da narrativa fragmentada. Em um deles, personagens homossexuais, encarcerados devido a sua orientação sexual, ouvem que “serão mortos pela doença”. Em outro trecho, fica evidente a associação entre os homens gays e a epidemia: “Antes de dizer à minha mãe que tive sífilis, disse apenas que estava ‘doente’ e ela, naquele momento, me olhou como se eu tivesse Aids e sua reação tinha a certeza da minha morte”.

Ainda na narrativa de Arosa, é possível reconhecer, além da representação da relação entre homossexualidade masculina e HIV/aids, também esse “medo perpétuo” do contágio pelo vírus sobre o qual argumentei acima: “Enquanto homossexual, minha fantasia neurótica é morrer vítima do HIV”. Na narrativa, esse medo não tem qualquer elemento que o justifique, exceto a orientação sexual do narrador.

O que mais chama a atenção é o fato de que cada vez mais podemos acompanhar notícias que indicam a mudança evidente do perfil epidemiológico, porém isso não parece atingir ainda as diferentes representações do HIV/aids, nem as sociais, nem mesmo as artísticas. Assim, assumo como pressuposto de pesquisa que é preciso especular o quanto essa representação social do HIV/aids e sua associação com os homens homossexuais ajuda a construir uma representação literária ainda limitada em suas abordagens. Mesmo as narrativas que avançam na forma de dizer, ainda têm dito o mesmo, têm explorado os mesmos conteúdos. As duas narrativas comentadas brevemente neste post são exemplares neste aspecto. Elas avançam na forma como abordam a questão do HIV/aids, mas ainda exprimem um conjunto predominante de ideias sociais recorrentes sobre a questão.

A experiência da prática

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Duane Michals, Heisenberg’s Magic Mirror of Uncertainity, 1998

No momento atual da minha trajetória de pesquisa, estou cumprindo talvez uma das etapas mais desafiadoras desse processo: como parte dos créditos para obtenção do título, devo atuar como docente em uma turma da graduação de Letras, aqui na UFBA. Exercer a função de professora no contexto da graduação é uma experiência nova que tem se mostrado muito recompensadora e produtiva para refletir teoricamente também sobre minha prática durante o período de pós-graduação, onde me vejo como discente e docente de Literatura. 

Discutir algumas das questões que desafiam a teoria literária no presente é também falar das questões que cercam e motivam minha própria pesquisa. Privilegiar esse diálogo e construir reflexões em grupo tem provocado um movimento autorreflexivo em minhas investigações.

Uma tendência para a proliferação das escritas de si vem sendo tematizada por muitos teóricos como uma dessas questões que circundam a produção literária contemporânea e desafiam os críticos. Um mergulho no eu que brinca com a instabilidade entre o pacto autobiográfico e o pacto ficcional e instiga a dúvida no leitor sobre os limites entre o que é real e o que é inventado dentro da narrativa. Pensar a tensão entre essas esferas é um dos pontos que temos explorado durante o curso.

Um dos textos que estimula essas perguntas em sala é a tese de Diana Klinger, apresentada na UERJ e que depois se transformou em livro. No primeiro capítulo, Klinger faz um breve histórico da escrita de si e mostra um pouco de como a produção de subjetividade e a escrita possuem uma relação muito próxima. Não tem muito tempo, comentei em um post sobre os commonplace books que funcionam como formadores e organizadores do sujeito que escreve, prática também comentada pela autora.

Klinger resumidamente percorre a história das escritas de si desde a Antiguidade Greco-romana até o contemporâneo para reforçar seu argumento de que “a escrita performa a noção do sujeito”. O discurso autobiográfico, constituído na modernidade a partir dessa ligação tão intrínseca, seria o “pano de fundo” para as narrativas que podemos encontrar hoje, tão permeadas pela presença de traços da vida do autor em sua obra.

Assim, explorar as escritas de si significa explorar as noções de sujeito e autor, o que a autora também faz para então amparar um possível “retorno” do autor após a sua “morte” no contexto estruturalista, embora a noção de autoria já não seja a mesma. O retorno do autor defendido por Klinger se afasta dos ideais anteriores da confissão e do depoimento e tempera a forte vontade de falar de si com a impossibilidade de alcançar uma “verdade” através da escrita. A literatura toma para si a forma da autobiografia, mas para apontar sua falha diante de uma nova concepção de sujeito, caótico e fragmentado.

Situando essas considerações em minha pesquisa, como poderíamos pensar a relação desse sujeito com a prática de escrita da anotação? Como podemos ler um tipo de romance que se constitui nos bastidores de sua própria escrita, como é o caso de o Romance Luminoso de Mario Levrero? O diário, as notas da organização da vida para a escrita literária podem ser considerados literatura, estão no domínio da ficção?

Em sala, levantar essas características e transformações gera observações e reflexões inusitadas, exemplos e comparações surpreendentes, até ousados. A partir deles, o curso muda um pouco, se adapta, toma outra forma. Também a pesquisa. A experimentação com a forma dos gêneros autobiográficos pelo romance é um dos meus interesses de estudo, isso é certo, mas quais possibilidades novas serão sondadas até o final dessa etapa?  

Sobreviver ao real

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: Pintura habitada (1975), de Helena Almeida

Em “Autoficção e sobrevivência”, Eneida Maria de Souza parte da obra Desarticulaciones, de Sylvia Molloy, para comentar o termo de Doubrovsky. A autora relaciona a autoficção à sobrevivência de duas maneiras. Souza afirma que Molloy elabora uma obra autoficcional sobre a amiga que sofre de Alzheimer como “uma forma de reconquistar sua imagem por meio da palavra” e ao mesmo tempo investe na “sobrevivência das formas”, já que a autobiografia continua presente na tensão provocada pela autoficção.

Para a crítica, a autoficção embaralha “o aspecto referencial da autobiografia e a pretensa autonomia da ficção”, pois os leitores ao mesmo tempo em que se prendem aos aspectos referenciais, ficam presos em um pacto ambíguo no qual o autor desestabiliza o real ao ficcionalizar elementos da vida. Apesar de valorizar essa oscilação, Souza em alguns momentos do texto acaba pendendo para um dos lados,  já que comenta que “Entre a autobiografia e o ‘romance do eu’ a ficção se coloca como intermediária’’, o que  faz parecer que a ficcionalidade é o fiel da balança.

Mas pensando na ideia de sobrevivência, me interessa discutir o que poderia significar essa postura em obras autoficcionais e também nas chamadas escrevivências.

Como a própria Eneida comenta, na obra de Molloy há o interesse de ficcionalizar um momento difícil, uma dor. Vemos essa ação em muitas obras autoficcionais brasileiras como em O pai da menina morta, de Tiago Ferro, O filho eterno, de Cristóvão Tezza, e A chave de casa, de Tatiana Salem Levy. Nessas obras, os personagens buscam sobreviver à dor, reelaborar a vida para poder seguir em frente, e a tensão entre vida e ficção é um  artifício literário que estimula a ambiguidade e torna contraproducente enxergar no autor a mesma dor sem nenhuma mediação. Pelo menos, é isso o que parece sugerir a resistência de muitos autores ao reconhecimento da dimensão autobiográfica de suas produções.

Mas será que esse mesmo efeito está presente nas obras da escrevivência? O termo elaborado por Conceição Evaristo busca trazer visibilidade para a população afro-brasileira que foi apagada ou que era estereotipada dentro da literatura. Dessa maneira, sobreviver na escrevivência representa tanto a sobrevivência dos personagens que passam por situações de racismo e reivindicam o direito de serem ouvidos e vistos, quanto dos próprios autores, sujeitos negros que possuem experiências compartilhadas com seus personagens, como acontece em O avesso da pele, de Jeferson Tenório e Becos da Memória, de Conceição Evaristo.

A ambiguidade é um terreno delicado. Alguns autores parecem assumir a escrevivência para suas obras a partir da experiência compartilhada de negritude com os personagens, mas, ao mesmo tempo, temem que essa vivência reduza suas obras a testemunhos. A noção de sobrevivência, destacada no argumento de Souza, para pensar os projetos da escrevivência e da autoficção tem rendimentos distintos. No entanto, algo parece persistir em ambos: certa suspeita da diminuição do valor literário das produções caso sejam filiados à autobiografia, mesmo que as narrativas  provoquem o olhar do leitor para o lado de fora.

As redes sociais e a autoficção

João Matos

Créditos da imagem: R.B.Kitaj, The Man on the Ceilling, 1989.

Como já tematizei aqui no blog, investigo o conceito de autoficção e o romance de Tiago Ferro, O pai da menina morta. Durante a pesquisa, me chamou a atenção em especial a relação de Ferro com as redes sociais. Em muitos casos, o espaço virtual se torna uma extensão da vida privada. Profissionalmente, a internet ajuda na promoção e divulgação das obras de autores contemporâneos e com Ferro não é diferente.

Ferro utilizou suas redes sociais em 2016 para expor a tragédia familiar que enfrentava à época – a morte de sua filha, vítima de uma gripe. A partir daí, Ferro relatou ter se sentido exausto por conta da exposição de sua tragédia familiar e reafirmou o desejo de não se tornar “o pai da garota falecida”.

Algo dessa rejeição está presente na narrativa de Ferro, que não renega sua tragédia e sua experiência de luto constante, mas também não reduz a imagem de seu narrador ao “pai da menina morta”, como tampouco sua filha é reduzida à condição de vítima. Ferro demonstra, tanto em sua obra quanto nas suas considerações a respeito da mesma, um desejo de homenagear sua filha.

Embora não negue a relação de sua obra com a vida real, Ferro rejeita a associação com o neologismo francês “autoficção”Essa posição do autor é tão ambígua quanto o próprio termo “autoficção”, pois Ferro não aparenta querer que sua autobiografia esteja diretamente associada a seu projeto literário, embora seu romance de estreia esteja diretamente relacionado à tragédia pessoal do autor.

O autor não quer ser apenas o pai da garota falecida, mas também não quer deixar de homenageá-la. Não quer associar sua obra ao conceito de autoficção, embora os gestos do autor, tanto em suas redes sociais como em sua própria obra, apontem para uma complexa relação entre vida e ficção.

Talvez por isso a relação de Ferro com as redes sociais tenha mudado.

O suporte virtual, que antes serviu como espaço para compartilhar a dolorosa experiência de perder a filha e posteriormente como rascunho para a produção de seu texto Já não era mais terça-feira, mas também não era quarta, publicado na Revista Piauí e de seu romance O pai da menina morta, agora é apenas um espaço aberto para compartilhar publicações alheias e divulgar eventos e notícias relacionadas à sua carreira como escritor. 

Me interessa analisar essa presença/ausência, esse modo de ocupar as redes, como se o autor estivesse ausente por meio de uma presença receosa com a exposição inicial de um fato trágico da sua vida, porque identifico essa instabilidade no conceito de autoficção, mas porque considero que as redes são um meio importante para pensar hoje novas formas de se fazer ficção, de se pensar a autobiografia, as figurações de si e os limites entre essa “realidade” e a ficção.

Autoria, dentro e fora da obra

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: “2 Anillos” – Pablo Tamayo, 2015

Como mencionei no post anterior, atualmente estou interessada em analisar a performance pública de autores que tentam inscrever seu nome e sua obra na cena literária atual, considerando como leitores e crítica se comportam diante da importância que a figura autoral assume no presente. O apelo ao autobiográfico e o autogerenciamento da própria imagem nas redes são recursos dos quais os escritores têm lançado mão e são indícios da importância que o tema da autoria assume para a teoria hoje.

Minha investigação vai se concentrar em traçar um panorama da trajetória de construção da carreira literária de Natália Timerman, que publicou seu primeiro romance, Copo Vazio, em 2021. Aí, ela explora uma série de temáticas próprias a nosso presente, como o ghosting (de ghost, fantasma), um comportamento que surge nas redes sociais e se caracteriza pelo “sumiço” de alguém com quem se construiu uma relação por meio dos aplicativos de relacionamentos.

Em Copo Vazio, acompanhamos a história de Mirela, uma jovem arquiteta bem sucedida que, por incentivo de sua irmã, utiliza um aplicativo de namoro por meio do qual encontra Pedro, um jovem doutorando de ciências políticas. Durante três meses tudo parecia correr bem até que num dia qualquer, sem aviso algum, Pedro some: “Um dia ele tá lá, no outro — puf, um passe de mágica — sumiu, e ficam os resquícios, os livros que tavam comigo, uma camiseta velha no armário, como se fossem provas, como se precisasse ter provas de que ele realmente existiu na minha vida, porque eu mesma passo a duvidar”. O ponto de vista é sempre da protagonista, o que leva o leitor a uma imersão na atmosfera psicológica de Mirela e no vazio deixado pelo “fantasma” de um relacionamento sem ponto final. Mergulhamos, segundo Fabiane Secches, “nas profundezas de suas carências e projeções, de seus temores mais íntimos”.

Mas o que me interessa comentar é o fato de que a maior parte das análises, resenhas e entrevistas sobre o livro de Timerman se concentra sobre o tema do ghosting ligando-o à vida pessoal da autora, aproximando o drama de Mirela, a personagem, à própria Timerman, ainda que não haja qualquer indício na obra que pudesse supor algum traço autobiográfico no romance.

Como resposta a essa aproximação entre a ficção e a autobiografia, Timerman escreveu um comentário na sua coluna semanal para o site Uol intitulado O ghosting real que virou livro de ficção: o que é verdade em ‘Copo Vazio’ no qual relata sua resistência inicial ao que  chama de “demanda incessante pela intimidade de um eu”: “Copo Vazio é um livro de ficção, sobre uma personagem que não existe. Eu acho graça que já tenha sido chamada de Mirela algumas vezes, em debates, lives, conversas sobre o livro; acho graça também que o que eu inicialmente quis esconder, que havia de fato levado um perdido, tenha saído em manchetes através da palavra autobiográfica.”

É interessante perceber como a reflexão de Timerman afasta a simplificação de ler a “verdade” por trás da ficção, mas, ao mesmo tempo, confirma o mote autobiográfico da narrativa. Essas voltas em torno do autobiográfico não deixam de ser uma forma de alimentar o desejo contemporâneo pela intimidade, em especial porque é a própria autora que é demandada a falar em entrevistas de divulgação do livro, expondo-se “fora da obra” para  estabelecer diálogos com a recepção. Essa atuação dos autores junto a suas obras merece mais atenção do que a mera crítica negativa a tais posturas e é essa atuação que interessa a minha investigação.

A realidade e a representação no teatro contemporâneo

Marília Costa

Créditos da imagem: Rosas no jardim de Zula

Em minhas pesquisas recentes sobre a autoficção no teatro contemporâneo tenho percebido a importância do teatro documentário, das biografias e da participação de não atores nas produções teatrais do presente, fatores importantes para a incidência cada vez maior do real na cena teatral. A exemplo de espetáculos como Conversas com meu pai de Janaina Leite, By Heart de Tiago Rodrigues e Rosas no jardim de Zula de Talita Braga. A partir disso, surge o questionamento, até que ponto é possível manter a separação entre a representação e a “realidade” imediata no palco? Uma não está irremediavelmente imbricada na outra?

O espetáculo Stabat Mater de Janaina Leite apresentado na MITsp em 2019, tem como ponto de partida o texto teórico Stabat Mater (em latim, estava a mãe), da filósofa e psicanalista Julia Kristeva. O espetáculo tem o formato de uma palestra performance sobre o feminino, aludindo à história da virgem Maria, e tematiza o apagamento da presença da mãe no espetáculo anterior Conversas com meu pai. No palco, além de Janaina Leite também está presente a mãe da atriz e a figura de Príapo, interpretada por um ator pornô. Temas como sexualidade e maternidade são articulados a partir de uma pesquisa ampla sobre o “real” e o teatro. Small (2019), ao comentar a peça de Janaina Leite, pontua que “as oposições verdadeiro/falso e realidade/ficção enquanto valores que se excluem mutuamente já não parecem tão importantes. A noção de verdade neste trabalho é mais complexa e amadurecida.”

Espetáculos como o de Janaina Leite utilizam a estratégia cênica que coloca em jogo o debate da realidade através da ficção e da teatralidade e vice-versa. Desse modo, o espaço híbrido entre o documental e a ficção tão presente e discutido na literatura pode ser pensado também no teatro. Nesse contexto, o real e o ficcional atuam como lados de uma mesma moeda, logo, complementares e não mais opostos entre si. Esse realojamento do lugar da ficção e da realidade é importante para pensar conceitos como o da própria ficção e realidade, o de teatralidade, o de artifício e o de performance.

“Estas coisas chegaram da minha avó. Elas me fazem pensar onde me encaixo nesta estranha geometria do tempo”

Samara Lima

Créditos da imagem: Francesca Woodman, Untitled, 1979-1980

Uma das perguntas iniciais da minha pesquisa de iniciação científica diz respeito ao regime narrativo de muitas imagens do presente e para isso escolhi como objeto de estudo as produções de Francesca Woodman e Nan Goldin. Nesse sentido, encontrei na obra A fotografia como arte contemporânea (2010) da curadora e escritora independente norte-americana Charlotte Cotton uma boa contribuição para a minha investigação. 

A partir da noção da imagem enquanto arte e não um mero registro incontestável da realidade, o livro busca examinar de que maneira a fotografia vem se desenvolvendo no século XXI. Dentre tantas outras coisas, o que me interessa é a discussão sobre a possibilidade de a fotografia artística contemporânea criar histórias.

No capítulo “Era uma vez”, a autora comenta que essa forma de conceber a atividade fotográfica é conhecida como “fotografia de quadros (tableau photography) ou de quadros-vivos (tableau-vivant photography)”. Nelas, existe uma narrativa pictórica concentrada numa única imagem que conta ou apresenta de maneira velada um evento. Segundo Cotton, os “quadros-vivos” mantêm uma relação direta com a era pré-fotográfica na qual imperava a pintura figurativa. Entretanto, essa relação não é entendida como uma mera ação nostálgica, pois o que importa é a maneira como a pintura oferece estratégias eficientes de criar conteúdo narrativo por meio da composição de legendas, adereços, alegorias, gestos e do próprio estilo peculiar à obra de arte.

Pois bem. Pensando nisso é que me proponho agora a fazer um pequeno exercício de construção de narrativa, tendo como base a fotografia em preto e branco da artista norte-americana Francesca Woodman que abre este post.

Na imagem, podemos visualizar duas jovens bastante semelhantes fisicamente, com o rosto oculto virado para a esquerda, os seios desnudos e uma espécie de pano que as cobre da cintura para baixo. Sentadas, elas seguram com os braços levantados um objeto que parece uma pedra. A pose das modelos e suas vestimentas assemelham-se a de uma escultura grega.

Para além de uma simples imitação de uma determinada estátua do corpo feminino, a fotografia parece sugerir uma reflexão sobre a exposição dos corpos das mulheres e sua constante erotização nas artes e na sociedade. Nesta obra e em outras produções, a partir do seu próprio corpo e do seu olhar enquanto produtora de imagens, Woodman (principal modelo de suas fotos) busca uma libertação metafórica sobre o corpo feminino como objeto de desejo do homem, oferecido para consumo e apreciação. É bem verdade que os corpos da imagem trazem consigo certa ambiguidade, já que eles não permitem maiores identificações, pois as modelos estão com os cabelos presos e os rostos encobertos. Esse gesto contrasta com a tradição da cultura europeia em que as mulheres tinham suas faces expostas e até miravam o espectador. Aqui, é como se as modelos em si não importassem, mas sim o que está por trás da cena.

A foto é estática, mas é curioso como contém uma cadeia de acontecimentos que são importantes para sua leitura. No decorrer de minha pesquisa, pude perceber como a pose, o ângulo da imagem, a vestimenta e os acessórios contêm vestígios e dão margens para narrativas. Cotton afirma que muitos profissionais fazem referências óbvias a histórias que estão incorporadas ao nosso consciente coletivo, mas outros preferem “uma descrição mais oblíqua e inconclusa”. Desta maneira, cabe ao espectador estabelecer relações e investir na imagem suas “próprias narrativas e conteúdos psicológicos”, a fim de construir um significado para a cena que está sendo retratada à sua frente.