O texto como uma colcha de retalhos

Gustavo Nascimento


Créditos da imagem: Aurélien Mole, Land I, II, III, 2019.

Em parte das obras que seguem o princípio da escrita não-criativa, os textos são formados a partir de uma montagem de trechos apropriados de diversas outras obras, formando assim uma grande malha de textos. Esse procedimento pode levar o nome de mash-up, que consiste no produto artístico final da montagem. O termo inicialmente cunhado para a área da música faz referência a criação pautada na mistura entre instrumentos ou vozes musicais de diferentes fontes na formação de uma nova composição. Na literatura, a prática do mash-up surge como um tecido de escolhas e seleções das leituras do escritor.  Algumas obras mesclam as apropriações fruto da escrita não-criativa a procedimentos convencionais da escrita criativa como a criação de personagens e enredo, diferentes da obra apropriada.

No livro Opisanie Swiata, Veronica Stigger faz um mash-up partindo de fotos, cartas e pôsteres  para a construção de uma obra que é formada junto a outros textos, literários ou não. Nesse sentido, o texto funciona como uma colcha repleta de retalhos que são costurados, no caso de Stigger, por meio de um enredo que monta um novo contexto para os trechos e fotos dos quais a autora apropriou-se. Desse modo, ao assumir novo contexto e sentido, a escrita sampler repensa a ideia de finitude de uma obra, e permite novas configurações de leitura.

“Uma obra feita como uma colcha de retalhos que se torna, através de sua construção, um tecido entrelaçado dando forma e corpo a uma outra colcha. Uma colcha em que os retalhos estão presentes, integrados e ativos num material que se desprende do material anterior e da pressuposta individualidade de cada fragmento.”

O trecho acima foi extraído do Manifesto da literatura sampler de Frederico Coelho e Mauro Gaspar. Uma questão importante levantada no manifesto é o desprendimento da individualidade dos materiais apropriados. No livro de Stigger, a fonte do material  apropriado pode passar despercebida. O leitor pode ser surpreendido ao descobrir ao final do livro que não apenas as fotografias fazem parte da lista de apropriações, mas também cartas e conversas. O fato de a autora não definir muito bem a localização das citações, nem a página em que as invasões de outros textos acontecem, torna a descoberta ainda mais enigmática para o leitor.

A apropriação no livro da Veronica Stigger questiona também os limites do ficcional, já que  a ideia de que um livro ficcional precisa ser original é repensada a partir dos materiais utilizados pela autora. Em Opisanie Swiata, o enredo apresenta uma alternância de vozes narrativas e simula a composição de um diário. Ao final da obra, encontramos uma lista a que Stigger nomeia “Deveres” e que funciona também como uma pergunta ao leitor.

Podemos nos lembrar ainda de Roland Barthes ao comentar a morte do autor, já que o fato de Stigger aproveitar como fonte da narrativa conversas em casa ou na rua reforça a ideia do teórico francês de que um texto é um tecido de citações, não contém um princípio original criador, mas é produto de uma  composição oriunda de muitas fontes culturais. Barthes ao pensar nesse tecido de citações não está se referindo à literatura, mas já teoriza a questão da não originalidade autoral.

Algumas obras que utilizam procedimentos não-criativos, como os mash-up literários constroem uma outra lógica na construção de textos literários. Textos nos quais a função-autor é evidenciada principalmente pela maneira como o autor conjuga suas leituras a partir de uma prática curatorial. Nesse sentido, o texto aproxima-se de uma colcha de retalhos pela quantidade e diversidade de matérias-primas que dão forma a uma nova obra. O recorte e a colagem ganham nessa cena um papel primordial para a construção de uma nova obra, na qual o procedimento é o grande protagonista, às vezes mais que o enredo e a construção dos personagens.

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