Ficção e não ficção: escrevivência e fabulação crítica

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: Soldados (2006), de Rosana Paulino.

A noção de escrevivência, criada por Conceição Evaristo, alcança hoje amplo reconhecimento na cena literária do presente e está fortemente entrelaçada às vozes de mulheres negras que se autorrepresentam evocando suas experiências para conectá-las coletivamente.

Um dos objetivos de minha dissertação de mestrado, defendida em março deste ano sob o título de “Escritas de si, escrita de nós: a tensão entre autoficção e escrevivência na literatura contemporânea”, consistiu na tentativa de ampliar a discussão sobre o termo, seu papel político e estético, pensando-o também em relação à produção de outros autores brasileiros, como  Jeferson Tenório e Geovani Martins, e a obras de literatura estrangeira como Garotas, Mulher, Outras, de Bernardine Evaristo.

Explorando um pouco mais a expansão da noção, observei que é possível ainda coaduná-la às questões sobre a autodefinição da subjetividade negra, a partir de bell hooks, e ao modo como Grada Kilomba pensa a descolonização. No campo da  historiografia, a fabulação crítica estimula a pensar as tensões entre o fato e a ficção na elaboração das vozes dos sujeitos negros, como o faz Saidiya Hartman.

Partindo da análise do corpo de Saartjie Baartman, conhecida como Vênus Hotentote, Hartman comenta os registros acerca da existência da jovem cativa nascida no sudoeste africano e exibida entre 1810 e 1815 como uma atração de circo na Europa por conta de suas características físicas. O que Hartman encontra nesse arquivo diz respeito apenas a cifras e a dados sobre as relações comerciais que destituíam o corpo de Baartman de qualquer memória ou subjetividade.

Aí, então, começa o movimento da fabulação crítica: para reparar a violência que permeia os dados de arquivo acerca desses sujeitos, a fabulação crítica surge como uma maneira de romper o silêncio e realizar um movimento de contra-História, pautada no que Hartman chama de uma “ética de representação histórica”, que se encarrega de reconstruir uma narrativa sobre a vida desses sujeitos (considerados apenas corpos para a força de trabalho ou para exibição pitoresca ou traduzidos em cifras financeiras). Assim, as narrativas são construídas com base nas lacunas que permeiam o arquivo já existente e propõem uma intersecção entre a ficção e a história.

Dois movimentos paralelos: na literatura do presente e na cena historiográfica atual. Essa hibridez entre o ficção e a não ficção, a literatura e a história, o estético e o político permeia tanto a escrevivência quanto a noção de fabulação crítica de Hartman. O que esse movimento nos diz sobre a subjetividade do sujeito negro, seus modos de falar e sobre a maneira como são ouvidos?  Essa questão  mobiliza a investigação que eu gostaria de realizar a partir de agora em uma nova pesquisa de doutorado.

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