Marília Costa

Recentemente, tive a oportunidade de assistir ao espetáculo “Espontaneamente – genealogia da memória” com a Cia. de teatro Improviso Salvador, que fazia parte da programação do Festival Lusoteropolitana. A peça foi encenada no Teatro Sesc Pelourinho e ao adentrar o local me deparei com o primeiro estranhamento: o palco estava repleto de cadeiras e os atores orientavam o público a sentar ali. Logo de início o elenco solicitou que o público usasse a imaginação, pois eles estavam sem cenário e por isso improvisavam, pois o cenário tinha ficado preso no Teatro Castro Alves para vistoria por conta de um incêndio dias antes da apresentação. A ausência do cenário foi mais um recurso para a quebra da quarta parede, já que a interação dos atores com a plateia vai se tornando mais intensa até que o público torna-se parte da cena.
Durante o espetáculo, os atores relatavam experiências pessoais amorosas, infantis e outras que envolviam traumas e relações familiares. Tudo estava baseado na improvisação das histórias, com toques de humor à narrativa dos dramas. Não demorou muito para que os atores começassem a apontar para a plateia que se acomodou no palco e solicitar que as pessoas compartilhassem memórias que tivessem relação com as experiências dos atores. A dinâmica se manteve: uma pessoa da audiência contava sua história de amor e os atores a encenavam no palco com improvisos.
Dois procedimentos chamam a atenção. A peça demorou muito para começar e pareceu de início estar atrasada, mas, na verdade, o espetáculo já tinha começado no hall do teatro. Os atores disfarçados de público interagiram com os espectadores que estavam aguardando a abertura da sala e fizeram uma sondagem para saber quem tinha histórias interessantes para compartilhar. Depois de iniciado o espetáculo, a audiência acompanha um processo de dupla ficcionalização da vida no palco, já que o enredo é improvisado a partir dos dados biográficos das próprias vidas dos atores e também do público. Esse é o procedimento artístico fundamental dessa encenação teatral.
Assistir a esse espetáculo me fez lembrar de outra experiência: “By Heart” de Tiago Rodrigues, já comentada em um post anterior. A mobilização de não atores para ocupar o centro do palco cria uma “situação teatro” e transforma o espetáculo em um Work in process. O termo, utilizado por Renato Cohen para pensar a performance, indica como ensaio e espetáculo fazem parte de um mesmo momento de construção e se abrem para a convocação do público que participa de modo ativo da representação.